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Racismo e cotas
Pacto entre proprietários de escravos constitui o pecado original da sociedade e da ordem
jurídica do Brasil
LUIZ FELIPE DE ALENCASTRO
COLUNISTA DA FOLHA
Em 2010, os negros brasileiros passam a formar a maioria da população do país. A mudança vai muito além
da demografia. Ela traz ensinamentos sobre o nosso passado
e desafios para o nosso futuro.
No século 19, o Império do
Brasil aparece como a única
nação que praticava o tráfico
negreiro em larga escala.
Alvo da pressão britânica, o
comércio de africanos passou a
ser proscrito por uma rede de
tratados que a Inglaterra teceu
no Atlântico. Na sequência do
tratado de 1826, a lei de 7 de
novembro de 1831 proibiu o comércio de africanos no Brasil.
Entretanto, 760 mil indivíduos vindos da África foram
trazidos entre 1831 e 1856, num
circuito de tráfico clandestino.
Ora, a lei de 1831 assegurava
a liberdade imediata aos africanos introduzidos no país após a
proibição.
A partir daí, os alegados proprietários desses indivíduos livres eram considerados sequestradores, incorrendo nas
sanções do artigo 179 do Código Criminal de 1830.
Porém, o governo imperial
anistiou, na prática, os senhores culpados do crime de sequestro, deixando livre curso
ao crime correlato, a escravização de pessoas livres.
Imoral e ilegal
Os 760 mil africanos desembarcados até 1856 -e a totalidade de seus descendentes-
continuaram sendo mantidos
ilegalmente na escravidão até
1888. Ou seja, boa parte das
duas últimas gerações de indivíduos escravizados no Brasil
não era escrava. Moralmente
ilegítima, a escravidão do Império era ainda -primeiro e sobretudo- ilegal.
Tenho para mim que esse
pacto dos sequestradores constitui o pecado original da sociedade e da ordem jurídica brasileira. Firmava-se o princípio da
impunidade e do casuísmo da
lei. Consequentemente, não
são só os negros brasileiros que
pagam o preço da herança escravista.
Outra deformidade gerada
pelo sistema refere-se à violência policial.
Depois da Independência, no
Brasil, como no sul dos EUA, o
escravismo passou a ser consubstancial à organização das
instituições nacionais.
Entre as múltiplas contradições engendradas por essa situação, uma relevava do Código
Penal: como punir o escravo
delinquente sem encarcerá-lo, sem privar o senhor do usufruto do trabalho do cativo que
cumpria pena de prisão?
O quadro legal definiu-se em
dois tempos. Primeiro, a Constituição de 1824 garantiu, no
artigo 179, a extinção das punições físicas. "Desde já ficam
abolidos os açoites, a tortura, a
marca de ferro quente e todas
as mais penas cruéis."
Conforme os princípios do
iluminismo, ficavam preservadas as liberdades e a dignidade
dos homens livres. Num segundo momento, o artigo 60 do Código Criminal reatualiza a pena
de tortura: "Se o réu for escravo
e incorrer em pena que não seja
a capital ou de galés, será condenado na de açoites...".
Com o açoite, com a tortura,
podia-se punir sem encarcerar:
estava resolvido o dilema.
Oficializada até o final do Império, essa prática punitiva
atingiu as camadas desfavorecidas, travando o advento de
uma política fundada na liberdade individual e nos direitos
humanos. Uma terceira deformidade gerada pelo escravismo
afeta o estatuto da cidadania.
É sabido que até a Lei Saraiva, de 1881, os analfabetos, incluindo negros alforriados, podiam ser eleitores de primeiro
grau, que elegiam eleitores de
segundo grau, os quais podiam
eleger e ser eleitos parlamentares. Depois de 1881, foram suprimidos os dois graus de eleitores. Em 1882, o voto dos analfabetos foi vetado.
Decidida no contexto pré-abolicionista, a proibição buscava barrar o acesso do corpo
eleitoral aos libertos. Gerou-se
uma infracidadania que perdurou até 1985, quando foi autorizado o voto do analfabeto.
Mas a exclusão foi mais impactante na população negra,
em que o analfabetismo registrava, e continua registrando,
taxas proporcionalmente mais
altas do que entre os brancos.
Nascidas no século 19, as arbitrariedades engendradas pelo escravismo submergiram o
país inteiro. Por essa razão, ao
agir em sentido contrário, a redução das discriminações que
ainda pesam sobre os negros
consolidará nossa democracia.
Democracia
Não se trata aqui de uma lógica indenizatória, destinada a
garantir direitos usurpados de
uma comunidade específica
-como foi o caso, em boa medida, nos julgamentos sobre as
terras indígenas. Trata-se, sobretudo, de inscrever a discussão sobre as cotas no aperfeiçoamento da democracia.
Nesse sentido, a arguição de
inconstitucionalidade impetrada no Supremo Tribunal Federal [que analisa a constitucionalidade do sistema de cotas
da Universidade de Brasília] revela-se obsoleta.
Na verdade, as cotas raciais
beneficiaram e beneficiam dezenas de milhares de estudantes nas universidades privadas
no quadro do ProUni e 52 mil
estudantes nas universidades
públicas, funcionando há vários anos, com grande proveito
para a comunidade acadêmica
e para o país.
Os incidentes suscitados pelas cotas raciais são mínimos e
muitíssimo menos graves do
que as truculências perpetradas nos trotes universitários.
Como no caso do plebiscito
sobre o presidencialismo e o
parlamentarismo, o debate sobre as cotas raciais atravessa as
linhas partidárias. Aliás, as primeiras medidas de política afirmativa relativas à população
negra foram tomadas, como é
conhecido, pelo governo FHC.
A existência de alianças
transversais deve nos conduzir,
mesmo em ano de eleição, a um
debate onde os argumentos
possam ser analisados a fim de
contribuir para a superação da
desigualdade racial que pesa
sobre a democracia brasileira.
LUIZ FELIPE DE ALENCASTRO é historiador e
professor na Universidade de Paris 4. Este artigo é um resumo da fala apresentada no STF, como representante da Fundação Palmares.
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