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+Sociedade
Conto das arábias
Bairro na periferia de Paris, Belleville revela que a imagem da Europa dominada por muçulmanos é um grande mito
SIMON KUPER
Qualquer pessoa interessada em entender a situação
dos muçulmanos
na Europa deveria
fazer uma visita a Belleville.
Esse bairro parisiense decadente a leste do centro da cidade é repleto de restaurantes
que servem cuscuz, livrarias islâmicas e cidadãos franceses de
origem árabe.
Cerca de 1,5 milhão de muçulmanos nominais [identificados com o grupo étnico, não
necessariamente com a religião] vivem na região de Paris
-mais do que em qualquer outra cidade da Europa.
Mas as ruas estreitas de Belleville também são repletas de
pessoas de origem chinesa, judaica, africana subsaariana e
francesa de classe média.
Uma classe de crianças sai de
um jardim de infância; criancinhas de quatro cores de pele diferentes se dão as mãos, enquanto suas professoras dão
ordens em francês.
É claro que nem toda a vida
muçulmana na França ou na
Europa se assemelha a Belleville. Nos guetos étnicos da periferia de Paris, muçulmanos nominais podem chegar à idade
adulta sem nunca entrar na casa de um francês branco.
Mas Belleville é importante.
Um cenário comumente traçado para o futuro da Europa é o
da "Eurábia", no qual uma
maioria religiosa muçulmana
comandaria o continente.
Mas a maioria dos cientistas
políticos e demógrafos franceses acha mais provável um cenário de "mistura", à moda de
Belleville.
Tá dominado?
O cenário da "Eurábia" vem
tendo mais publicidade, em especial nos EUA. Bernard Lewis,
célebre estudioso do islã, citou
o número de imigrantes de países muçulmanos e seus índices
de natalidade relativamente altos para concluir: "A julgar pelas tendências atuais, a Europa
terá maiorias muçulmanas na
população no mais tardar até o
final do século 21".
O livro "Reflections on the
Revolution in Europe - Immigration, Islam and the West"
[Reflexões Sobre a Revolução
na Europa - Imigração, Islã e o
Ocidente], do comentarista político do "Financial Times"
Christopher Caldwell, é a apresentação mais nuançada e sofisticada feita até agora da tese
da "Eurábia".
Os muçulmanos chegaram à
França em grande número na
década de 1960, vindos principalmente do norte da África. O
país tem hoje 5 milhões de habitantes de origem muçulmana
-ou 8% da população.
Contudo há duas razões
principais pelas quais o cenário
de Belleville parece ser mais
provável que o da "Eurábia".
A primeira é de natureza populacional: nenhum demógrafo sério prevê que os muçulmanos virem maioria em qualquer
país da Europa ocidental.
A segunda diz respeito a atitudes: apenas uma minoria minúscula de muçulmanos parece
desejar estabelecer um califado
medieval na Europa.
Ouvidos em pesquisas, a
maioria dos muçulmanos da
França diz que se sente francesa. Muitos deles já não observam a religião islâmica.
Embora aqui e ali tenham
tornado a França um pouco
mais norte-africana ou islâmica, a influência parece ser em
sentido inverso: os imigrantes
muçulmanos estão sendo contagiados pelo espírito francês.
Para começar, a demografia.
A ideia de que os muçulmanos
estariam produzindo bebês em
escala industrial para tomar
conta da Europa é um clichê
desatualizado.
Os autores que defendem a
tese da "Eurábia" se preocupam com o declínio da fertilidade europeia, mas o fato é que o
declínio da fertilidade muçulmana é muito mais acentuado.
Em 1970, as mulheres na Tunísia e na Argélia [no norte da
África] tinham a média de sete
filhos cada. Hoje, segundo o
"World Factbook" da CIA, elas
têm, em média, menos de 1,8 filho. O índice de natalidade
francês é quase dois.
Os demógrafos parisienses
Youssef Courbage e Emmanuel
Todd mostraram em seu livro
de 2007 "Le Rendez-Vous des
Civilisations" [O Encontro das
Civilizações] que, depois que a
maioria dos homens em um
país é alfabetizada, a maioria
das mulheres também se alfabetiza, e, em seguida, a fertilidade diminui.
Essa transição demográfica
já aconteceu na maioria dos
países muçulmanos. Pela última contagem, as argelinas residentes na França tinham 2,57
filhos, ou seja, apenas um pouco acima do índice francês.
Além disso, a taxa de fertilidade das mulheres norte-africanas na França vem caindo
desde 1981.
Poucos minaretes
Uma imagem constantemente usada na literatura sobre a
"Eurábia" é a do chamado do
muezim para as orações ecoando de telhados europeus.
Não se ouve muito isso em
Belleville. Como em outras partes do país, parece que faltam
mesquitas para os muçulmanos do bairro.
Menos de 5% dos muçulmanos franceses frequentam a
mesquita todas as sextas-feiras,
escrevem Jonathan Laurence e
Justin Vaisse em seu estudo sobre a integração muçulmana na
França, "Integrating Islam"
[Integrando o Islã].
Farhad Khosrokhavar, diretor de estudos da Escola de Altos Estudos em Ciências Sociais, em Paris, estima que entre 15% e 20% dos muçulmanos
franceses nem sequer praticam
o islã. Jejuar durante o Ramadã
é considerado um dever básico
da religião, mas apenas cerca de
70% dos muçulmanos franceses afirmam fazê-lo.
Em suma, o islã europeu tem
muitos dos mesmos problemas
que o cristianismo europeu.
É verdade que a mistura que
se vê em Belleville não conta
toda a história do islã na França. Pegue o trem para a cidade
pobre de Dreux, a uma hora a
oeste de Paris, e você verá algo
que, à primeira vista, se assemelha mais à "Eurábia".
Em alguns lugares, Dreux
lembra uma cidade árabe na
chuva. Cerca de metade de seus
32 mil habitantes é de origem
estrangeira.
A maioria não escolheu viver
num gueto étnico. Mas, quando
as fábricas locais começaram a
fechar, os franceses brancos foram os que tiveram mais facilidade em encontrar empregos
em outros lugares.
Franceses de origem árabe
com frequência sofrem com o
desemprego, em parte porque
têm pouca instrução, em parte
pela discriminação.
Em 2004, o sociólogo Jean-François Amadieu, da Sorbonne, enviou 500 currículos respondendo a anúncios buscando
profissionais de vendas na região de Paris. Os currículos
eram idênticos, exceto por uma
coisa: alguns dos candidatos tinham nomes norte-africanos e
outros tinham nomes franceses tradicionais.
Os nomes masculinos franceses brancos receberam cinco
vezes mais ofertas de emprego
do que os norte-africanos.
Quando Amadieu repetiu o experimento em 2006, a razão foi
de 20 para um. Mas mesmo
Dreux não é a "Eurábia".
A pobreza, e não a religião, é a
preocupação principal dos muçulmanos nominais franceses,
como as pesquisas mostram, de
modo consistente.
Mais dinheiro que fé
O que os diferencia da população francesa em geral não é
tanto sua religião quanto suas
circunstâncias sociais e econômicas: vivem em conjuntos habitacionais isolados e pobres,
com altos índices de criminalidade. Estudiosos concordam
que os tumultos na periferia étnica de Paris em 2005 não foram uma "intifada europeia" de
muçulmanos fundamentalistas
atacando o Ocidente.
Foram, sobretudo, uma espécie de levante marxista de franceses pobres que, dentro da tradição revolucionária anárquica
do país, exigiam o status socioeconômico que pensavam
que deveria acompanhar sua
condição de franceses.
A mulher
Se traçássemos um perfil da
mulher muçulmana francesa
média de hoje, o resultado seria
algo mais ou menos assim: ela
tem dois ou três filhos, que frequentam escolas não religiosas.
Ela é relativamente pobre,
mas, de modo geral, está satisfeita, embora se sinta indignada com a discriminação. Sente-se mais religiosa do que há uma
década, porém não usa lenço na
cabeça -mas tem amigas que o
fazem. Opõe-se ao terrorismo,
embora provavelmente conheça simpatizantes. Vota nos socialistas e se preocupa mais
com problemas econômicos do
que com qualquer coisa que
acontece no Oriente Médio.
Desde 2007, os muçulmanos
franceses têm estado longe dos
noticiários. Isso ajudou a inaugurar uma nova fase: uma religião, no caso o islã, é formatada
para adequar-se às normas sociais dominantes. Exemplo disso foi a proibição do uso do véu
nas escolas francesas.
Outro, escreve o principal estudioso do islã no país e morador de Dreux, Olivier Roy, é a
evolução de um novo tipo de
casamento muçulmano francês: é realizado na mesquita,
mas com o casal de mãos dadas,
com a noiva vestida de branco e
segurando um buquê de flores
-exatamente como num casamento cristão.
Durante a "formatação"
-como Roy descreve esse processo-, a sociedade descarta
aspectos da religião que considera "bárbaros" (como a amputação das mãos de criminosos)
ou simplesmente "esdrúxulos"
(como o véu).
A formatação pode ser feita
de baixo para cima ou pode ser
imposta de cima para baixo.
Alguns opõem resistência a
ela: muitos muçulmanos franceses se opuseram à proibição
do véu nas escolas, embora o
Ministério do Interior tivesse
estimado que menos de 1% das
garotas muçulmanas usasse
lenço na cabeça na escola.
Mas
a maioria das pessoas aceita a
nova formatação. Se não o fizesse, não haveria adesão a ela.
Em junho passado, o presidente Nicolas Sarkozy lançou
uma nova etapa na formatação
do islã. Ele criticou um item de
vestimenta que poucos franceses chegam a ver: a burca.
Em Paris, uma piscina pública na periferia proibiu uma mulher de nadar de "burquini",
uma roupa de banho que a cobria dos pés à cabeça. Quando a
República começa a voltar sua
atenção a fenômenos tão periféricos, é provável que já estejamos numa etapa posterior da
formatação.
É possível passar horas no
bulevar de Belleville e nunca
ver uma burca. O Ministério do
Interior estimou o número de
francesas que trajam burcas em
exatamente 367.
Cerca de um quarto delas são
mulheres que se converteram
ao islã; foi o caso da mulher
proibida de frequentar a piscina por usar o "burquini", que é
ainda mais raro.
O que ocorre agora é que a
República está traçando as
fronteiras do islã francês.
Os muçulmanos podem continuar a ser muçulmanos se
quiserem, mas também devem
ser transformados em "pequenos franceses", como aquelas
criancinhas de Belleville de
mãos dadas com seus coleguinhas brancos e franceses de
origem chinesa.
É o mesmo caminho trilhado
pelos italianos, judeus e poloneses que vieram para o país
em diferentes momentos nos
últimos 150 anos. Todos foram
considerados estrangeiros em
algum momento. De lá para cá,
todos foram assimilados.
Essa perspectiva agrada a
muitos muçulmanos franceses.
Como disse o escritor Abdellah
Taïa em seu apartamento em
Belleville: "Se sinto angústia à
noite, não é por ser árabe ou
muçulmano".
A íntegra deste texto saiu no "Financial Times".
Tradução de Clara Allain.
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