São Paulo, domingo, 07 de maio de 2006

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A CLASSE MÉDIA NO DIVÃ

Avessa a discussões teóricas, psicanálise brasileira só rompeu isolamento nos anos 70, com a industrialização, os estudos no exterior e a vinda dos argentinos

RENATO MEZAN
COLUNISTA DA FOLHA

Quem observa hoje a paisagem da psicanálise no Brasil, vigorosa e fértil, talvez se surpreenda ao saber que as sementes dessa planta exótica demoraram a germinar: por quase oito décadas, a cultura se reduziu a alguns pomares, e somente nos últimos 25 ou 30 anos ela ganhou impulso, desenvolvendo-se até a condição atual. Vale, portanto, recapitular os principais momentos desse processo, a fim de avaliar onde estamos, e arriscar algumas idéias sobre para onde vamos.
A história da psicanálise em nosso país pode ser dividida em três etapas. A primeira se estende de 1899, quando Juliano Moreira fez na Bahia uma exposição sobre os novos métodos de Freud, até a chegada a São Paulo, em 1937, da psicanalista Adelheid Koch. A segunda vai até o final da década de 70, quando se inicia a fase na qual nos encontramos.
Durante as primeiras décadas do século 20, as idéias de Freud se tornaram conhecidas pelos médicos e por uma parcela do público mais cultivado. No "Manifesto Antropofágico", por exemplo, Oswald de Andrade utiliza algumas delas. Mas não se distinguem de outras novidades européias, percebidas por uns como úteis à modernização do Brasil e, por outros, como perigosas ameaças ao espírito nacional: no caso, é em torno da importância da sexualidade na vida psíquica e no desencadeamento das neuroses que se travaram as discussões mais acirradas.
Foi o psiquiatra Durval Marcondes o principal agente da passagem à fase seguinte. Marcondes percebeu a importância de organizar os interessados na "jovem ciência" e integrá-los ao movimento psicanalítico internacional: iniciou correspondência regular com Freud, fundou com alguns outros a Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (1927), publicou o primeiro número de uma revista especializada e se empenhou em trazer para o Brasil um analista didata, para que ele e seus companheiros pudessem ter acesso pessoal à experiência do divã.

Fim dos diletantes
Após muitas idas e vindas, esse projeto realizou-se em 1937, quando Adelheid Koch se transferiu para São Paulo e começou a analisar os pioneiros locais. Esse fato marcou o fim da era dos diletantes e o início da implantação efetiva da psicanálise no Brasil.
Após a guerra, no Rio de Janeiro e em Porto Alegre formaram-se outras sociedades; alguns jovens psiquiatras viajaram para Londres e Buenos Aires para seguir cursos de formação "stricto sensu", enquanto aqui se fixaram analistas europeus.
De 1950 até fins da década de 70, as instituições se fortaleceram e aos poucos se ampliou o número de psicanalistas, que, ao final do período, somavam duas ou três centenas em todo o Brasil. Fortemente influenciados pelo pensamento de Melanie Klein, esses analistas se dedicaram sobretudo ao trabalho clínico "intramuros". Também divulgaram as idéias psicanalíticas pelos meios existentes, do rádio às incipientes revistas femininas, e produziram, em quantidade pequena, mas constante, artigos científicos e textos para congressos.
À diferença do que ocorreu na Argentina, aqui não se desenvolveu um pensamento psicanalítico original; as teorias kleinianas e, mais adiante, o trabalho de Wilfred Bion, apresentado por ele mesmo e por seu "embaixador" Frank Philips, pareciam suficientes aos analistas brasileiros como fundamento teórico e como ferramenta clínica. Operosos, discretos, muitos deles excelentes clínicos, mas sem maiores ambições teóricas, os analistas do segundo período asseguraram o enraizamento da psicanálise entre as especialidades terapêuticas e a continuidade do que Durval Marcondes iniciara.
Testemunho desse horizonte nada ambicioso são as traduções de Freud para o português da editora Delta e posteriormente da Imago, concluída em 1978. Importantes por colocar Freud ao alcance de profissionais e de estudantes, elas espelham em sua falta de rigor o desinteresse pelas questões mais abstratas e um certo viés empirista inspirado nos britânicos, mas temperado à brasileira -para o qual a teoria, uma vez aprendida, não precisa ser muito questionada e não deve atrapalhar o contato direto com o paciente.
A situação da psicanálise mudou radicalmente a partir do fim da década de 70, por uma conjugação de fatores de diferentes ordens. Em primeiro lugar, a industrialização do Brasil criou uma classe média urbana "desparametrada" (no dizer de Sérvulo Figueira), porque confrontada a novos valores e padrões de comportamento.
Essa classe média formou a clientela das psicoterapias, entre as quais, naquele momento, a psicanálise não era preponderante: as terapias de grupo e corporais gozavam de maior popularidade. O fato novo, porém, foi o surgimento de uma demanda crescente por tratamento psicológico, à qual os analistas tiveram (também) de responder.
Na mesma época, do lado da oferta, dois processos de início independentes vieram a convergir. O primeiro foi a irrupção do lacanismo, trazido por brasileiros que haviam estudado em Paris e na Universidade de Louvain (Bélgica): em São Paulo, Rio de Janeiro e Pernambuco surgiram, por volta de 1975 e 1976, os primeiros grupos dessa tendência. O segundo foi a chegada de muitos analistas argentinos, fugindo da barbárie que tomara de assalto seu país.
Esses profissionais se instalaram nos grandes centros mas também em Vitória, Salvador, Curitiba e outras capitais, dando início a um movimento de capilarização que iria a médio prazo mudar por completo a face da psicanálise no Brasil.
Nem os lacanianos nem a maioria dos argentinos aderiram às instituições já existentes, vistas pelos dois grupos como cientificamente estagnadas e politicamente reacionárias.
As novas organizações (entre outras, o curso de psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae, em São Paulo) ampliaram enormemente as oportunidades de formação, atraindo muitos psicólogos que nelas viam um meio de se tornarem analistas de modo mais estimulante e inteligente do que nas sociedades tradicionais.
Estas reagiram, é claro, ao desafio: primeiramente, tentando sufocar ou desautorizar as novas iniciativas -"isso não é psicanálise!"; depois, com mais sabedoria, reformulando suas regras internas no sentido de uma maior democratização e abrindo-se às novas correntes de pensamento que haviam surgido no campo freudiano, como Donald Winnicott (1896-1971), a psicologia do "self" de Heinz Kohut (1913-1981), a psicanálise francesa etc.

Vitalidade
Assim entramos no período contemporâneo, da década de 80 para cá. A psicanálise se expandiu com uma vitalidade que não dá mostra de esmorecer, e insisto nessa visão, em que pesem avaliações mais pessimistas feitas ora por adversários dela, ora por "compagnons de route".
O que me leva a pensar assim? Primeiramente, um sinal inequívoco de boa saúde: o número significativo de publicações, muitas oriundas de teses escritas por profissionais experientes, outras abrigadas em revistas de bom nível científico ou resultantes de exposições em colóquios, congressos e jornadas que acontecem praticamente a cada semana pelo país afora.
As publicações são um bom termômetro, tanto pelo conteúdo quanto porque, para que existam, é necessário um conjunto de fatores reais -eventos não se realizam sem participantes, livros não se vendem sem um público leitor, nem revistas sem assinantes-, que por sua vez comprovam a existência de massa crítica e de interlocução entre os componentes dela.
Trata-se de algo equivalente à rede da qual falava Antonio Candido no clássico "Formação da Literatura Brasileira" (1959): um conjunto de referências no qual se possam incluir os que vão chegando, indispensável para a formação de um sistema (literário ou de outra natureza). Hoje podemos dizer que tal sistema já existe na psicanálise brasileira. Por outro lado, a enorme variedade dos temas abordados nas publicações e a originalidade das melhores dentre elas indicam que a psicanálise brasileira nada fica a dever ao que se faz em outros países.
Quanto à inserção dos analistas na sociedade e na cultura, ela vem se intensificando: colegas trabalham em hospitais e instituições de saúde; convênios começam a reembolsar tratamentos; na universidade, em especial na pós-graduação, o lugar da disciplina freudiana está assegurado. Mais sutilmente, a penetração do "ethos" analítico no meio local é atestada pela freqüente solicitação pela imprensa escrita, falada e eletrônica da opinião de analistas a propósito de acontecimentos e processos sociais, desde crimes que chocam a população até a avaliação de mudanças no comportamento e nas relações interpessoais.
Mas nem tudo são rosas. As investidas da concorrência -a psiquiatria organicista e terapias de índole comportamental- são às vezes agressivas, desqualificando a psicanálise como obsoleta, pouco eficaz e inconsistente do ponto de vista teórico. Isso força os analistas a reverem seus conceitos, a criticarem posições tidas por intocáveis, a afiarem melhor seus instrumentos de trabalho -o que, a meu ver, é salutar. Também há exemplos de colaboração entre analistas e psiquiatras no tratamento de certos pacientes, cada qual operando em sua faixa própria.
Nada há de extraordinário em que a evolução da sociedade coloque novos problemas a quem lida com os sofrimentos que a vida impõe às pessoas. O importante é que, sem renegar o passado e suas conquistas, possamos abrir mão do que se revelar inoperante e desenvolver métodos, conceitos e parcerias que nos possibilitem enfrentar as questões atuais -drogadições, novas formas assumidas por antigas patologias (como a chamada síndrome do pânico), males que se tornaram mais comuns (anorexia, depressões), modalidades inéditas de relacionamento amoroso, novas atitudes perante a sexualidade ou os valores.
O que herdamos dos analistas que nos precederam vem servindo, acredito, como referência, em vez de se ter tornado objeto de reverência. Mas tampouco é preciso ceder nos pontos essenciais do pensamento analítico: a eficácia silenciosa (e às vezes ruidosa) do inconsciente, o peso das amarras que nós mesmos construímos para infernizar nossa vida e a dos outros, a função liberadora do conhecimento de si, a força criadora do desejo e da fantasia.
Talvez não sejam idéias muito consentâneas com esses tempos em que se querem soluções rápidas e indolores para os problemas da existência, mas isso não lhes retira a verdade: ao contrário, torna-as ainda mais indispensáveis para não nos deixarmos iludir pelas miragens da pós-modernidade.


Renato Mezan é psicanalista, professor titular da Pontifícia Universidade Católica (SP) e autor de "Freud - A Trama dos Conceitos" (Perspectiva), entre outros. Escreve regularmente na seção "Autores", do Mais!.


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