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A CLASSE MÉDIA NO DIVÃ
Avessa a discussões teóricas, psicanálise brasileira só rompeu isolamento nos anos 70, com a industrialização, os estudos no exterior e a vinda dos argentinos
RENATO MEZAN
COLUNISTA DA FOLHA
Quem observa hoje a paisagem da psicanálise no Brasil, vigorosa e fértil, talvez
se surpreenda ao saber que
as sementes dessa planta exótica demoraram a germinar: por quase oito
décadas, a cultura se reduziu a alguns pomares, e somente nos últimos 25 ou 30 anos ela ganhou impulso, desenvolvendo-se até a condição atual. Vale, portanto, recapitular os principais momentos desse
processo, a fim de avaliar onde estamos, e arriscar algumas idéias sobre
para onde vamos.
A história da psicanálise em nosso
país pode ser dividida em três etapas. A primeira se estende de 1899,
quando Juliano Moreira fez na Bahia
uma exposição sobre os novos métodos de Freud, até a chegada a São
Paulo, em 1937, da psicanalista Adelheid Koch. A segunda vai até o final
da década de 70, quando se inicia a
fase na qual nos encontramos.
Durante as primeiras décadas do
século 20, as idéias de Freud se tornaram conhecidas pelos médicos e
por uma parcela do público mais
cultivado. No "Manifesto Antropofágico", por exemplo, Oswald de Andrade utiliza algumas delas. Mas não
se distinguem de outras novidades
européias, percebidas por uns como
úteis à modernização do Brasil e, por
outros, como perigosas ameaças ao
espírito nacional: no caso, é em torno da importância da sexualidade
na vida psíquica e no desencadeamento das neuroses que se travaram
as discussões mais acirradas.
Foi o psiquiatra Durval Marcondes o principal agente da passagem à
fase seguinte. Marcondes percebeu a
importância de organizar os interessados na "jovem ciência" e integrá-los ao movimento psicanalítico internacional: iniciou correspondência regular com Freud, fundou com
alguns outros a Sociedade Brasileira
de Psicanálise de São Paulo (1927),
publicou o primeiro número de
uma revista especializada e se empenhou em trazer para o Brasil um
analista didata, para que ele e seus
companheiros pudessem ter acesso
pessoal à experiência do divã.
Fim dos diletantes
Após muitas idas e vindas, esse
projeto realizou-se em 1937, quando
Adelheid Koch se transferiu para
São Paulo e começou a analisar os
pioneiros locais. Esse fato marcou o
fim da era dos diletantes e o início da
implantação efetiva da psicanálise
no Brasil.
Após a guerra, no Rio de Janeiro e
em Porto Alegre formaram-se outras sociedades; alguns jovens psiquiatras viajaram para Londres e
Buenos Aires para seguir cursos de
formação "stricto sensu", enquanto
aqui se fixaram analistas europeus.
De 1950 até fins da década de 70, as
instituições se fortaleceram e aos
poucos se ampliou o número de psicanalistas, que, ao final do período,
somavam duas ou três centenas em
todo o Brasil. Fortemente influenciados pelo pensamento de Melanie
Klein, esses analistas se dedicaram
sobretudo ao trabalho clínico "intramuros". Também divulgaram as
idéias psicanalíticas pelos meios
existentes, do rádio às incipientes revistas femininas, e produziram, em
quantidade pequena, mas constante, artigos científicos e textos para
congressos.
À diferença do que ocorreu na Argentina, aqui não se desenvolveu um
pensamento psicanalítico original;
as teorias kleinianas e, mais adiante,
o trabalho de Wilfred Bion, apresentado por ele mesmo e por seu "embaixador" Frank Philips, pareciam
suficientes aos analistas brasileiros
como fundamento teórico e como
ferramenta clínica. Operosos, discretos, muitos deles excelentes clínicos, mas sem maiores ambições teóricas, os analistas do segundo período asseguraram o enraizamento da
psicanálise entre as especialidades
terapêuticas e a continuidade do que
Durval Marcondes iniciara.
Testemunho desse horizonte nada
ambicioso são as traduções de Freud
para o português da editora Delta e
posteriormente da Imago, concluída
em 1978. Importantes por colocar
Freud ao alcance de profissionais e
de estudantes, elas espelham em sua
falta de rigor o desinteresse pelas
questões mais abstratas e um certo
viés empirista inspirado nos britânicos, mas temperado à brasileira
-para o qual a teoria, uma vez
aprendida, não precisa ser muito
questionada e não deve atrapalhar o
contato direto com o paciente.
A situação da psicanálise mudou
radicalmente a partir do fim da década de 70, por uma conjugação de
fatores de diferentes ordens. Em primeiro lugar, a industrialização do
Brasil criou uma classe média urbana "desparametrada" (no dizer de
Sérvulo Figueira), porque confrontada a novos valores e padrões de
comportamento.
Essa classe média formou a clientela das psicoterapias, entre as quais,
naquele momento, a psicanálise não
era preponderante: as terapias de
grupo e corporais gozavam de maior
popularidade. O fato novo, porém,
foi o surgimento de uma demanda
crescente por tratamento psicológico, à qual os analistas tiveram (também) de responder.
Na mesma época, do lado da oferta, dois processos de início independentes vieram a convergir. O primeiro foi a irrupção do lacanismo, trazido por brasileiros que haviam estudado em Paris e na Universidade de
Louvain (Bélgica): em São Paulo,
Rio de Janeiro e Pernambuco surgiram, por volta de 1975 e 1976, os primeiros grupos dessa tendência. O
segundo foi a chegada de muitos
analistas argentinos, fugindo da barbárie que tomara de assalto seu país.
Esses profissionais se instalaram
nos grandes centros mas também
em Vitória, Salvador, Curitiba e outras capitais, dando início a um movimento de capilarização que iria a
médio prazo mudar por completo a
face da psicanálise no Brasil.
Nem os lacanianos nem a maioria
dos argentinos aderiram às instituições já existentes, vistas pelos dois
grupos como cientificamente estagnadas e politicamente reacionárias.
As novas organizações (entre outras, o curso de psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae, em São Paulo)
ampliaram enormemente as oportunidades de formação, atraindo
muitos psicólogos que nelas viam
um meio de se tornarem analistas de
modo mais estimulante e inteligente
do que nas sociedades tradicionais.
Estas reagiram, é claro, ao desafio:
primeiramente, tentando sufocar ou
desautorizar as novas iniciativas
-"isso não é psicanálise!"; depois,
com mais sabedoria, reformulando
suas regras internas no sentido de
uma maior democratização e abrindo-se às novas correntes de pensamento que haviam surgido no campo freudiano, como Donald Winnicott (1896-1971), a psicologia do
"self" de Heinz Kohut (1913-1981), a
psicanálise francesa etc.
Vitalidade
Assim entramos no período contemporâneo, da década de 80 para
cá. A psicanálise se expandiu com
uma vitalidade que não dá mostra
de esmorecer, e insisto nessa visão,
em que pesem avaliações mais pessimistas feitas ora por adversários dela, ora por "compagnons de route".
O que me leva a pensar assim? Primeiramente, um sinal inequívoco de
boa saúde: o número significativo de
publicações, muitas oriundas de teses escritas por profissionais experientes, outras abrigadas em revistas
de bom nível científico ou resultantes de exposições em colóquios, congressos e jornadas que acontecem
praticamente a cada semana pelo
país afora.
As publicações são um bom termômetro, tanto pelo conteúdo
quanto porque, para que existam, é
necessário um conjunto de fatores
reais -eventos não se realizam sem
participantes, livros não se vendem
sem um público leitor, nem revistas
sem assinantes-, que por sua vez
comprovam a existência de massa
crítica e de interlocução entre os
componentes dela.
Trata-se de algo equivalente à rede
da qual falava Antonio Candido no
clássico "Formação da Literatura
Brasileira" (1959): um conjunto de
referências no qual se possam incluir os que vão chegando, indispensável para a formação de um sistema
(literário ou de outra natureza). Hoje podemos dizer que tal sistema já
existe na psicanálise brasileira. Por
outro lado, a enorme variedade dos
temas abordados nas publicações e a
originalidade das melhores dentre
elas indicam que a psicanálise brasileira nada fica a dever ao que se faz
em outros países.
Quanto à inserção dos analistas na
sociedade e na cultura, ela vem se intensificando: colegas trabalham em
hospitais e instituições de saúde;
convênios começam a reembolsar
tratamentos; na universidade, em
especial na pós-graduação, o lugar
da disciplina freudiana está assegurado. Mais sutilmente, a penetração
do "ethos" analítico no meio local é
atestada pela freqüente solicitação
pela imprensa escrita, falada e eletrônica da opinião de analistas a
propósito de acontecimentos e processos sociais, desde crimes que chocam a população até a avaliação de
mudanças no comportamento e nas
relações interpessoais.
Mas nem tudo são rosas. As investidas da concorrência -a psiquiatria organicista e terapias de índole
comportamental- são às vezes
agressivas, desqualificando a psicanálise como obsoleta, pouco eficaz e
inconsistente do ponto de vista teórico. Isso força os analistas a reverem
seus conceitos, a criticarem posições
tidas por intocáveis, a afiarem melhor seus instrumentos de trabalho
-o que, a meu ver, é salutar. Também há exemplos de colaboração
entre analistas e psiquiatras no tratamento de certos pacientes, cada qual
operando em sua faixa própria.
Nada há de extraordinário em que
a evolução da sociedade coloque novos problemas a quem lida com os
sofrimentos que a vida impõe às
pessoas. O importante é que, sem renegar o passado e suas conquistas,
possamos abrir mão do que se revelar inoperante e desenvolver métodos, conceitos e parcerias que nos
possibilitem enfrentar as questões
atuais -drogadições, novas formas
assumidas por antigas patologias
(como a chamada síndrome do pânico), males que se tornaram mais
comuns (anorexia, depressões), modalidades inéditas de relacionamento amoroso, novas atitudes perante a
sexualidade ou os valores.
O que herdamos dos analistas que
nos precederam vem servindo, acredito, como referência, em vez de se
ter tornado objeto de reverência.
Mas tampouco é preciso ceder nos
pontos essenciais do pensamento
analítico: a eficácia silenciosa (e às
vezes ruidosa) do inconsciente, o peso das amarras que nós mesmos
construímos para infernizar nossa
vida e a dos outros, a função liberadora do conhecimento de si, a força
criadora do desejo e da fantasia.
Talvez não sejam idéias muito
consentâneas com esses tempos em
que se querem soluções rápidas e indolores para os problemas da existência, mas isso não lhes retira a verdade: ao contrário, torna-as ainda
mais indispensáveis para não nos
deixarmos iludir pelas miragens da
pós-modernidade.
Renato Mezan é psicanalista, professor titular da Pontifícia Universidade Católica
(SP) e autor de "Freud - A Trama dos Conceitos" (Perspectiva), entre outros. Escreve regularmente na seção "Autores", do Mais!.
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