São Paulo, domingo, 07 de maio de 2006 |
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Psicologia das massas
Hugo Chávez e Evo Morales atualizam na América Latina uso político do cidadão, estudado por Freud
Nos anos que se seguiram
ao fim da Segunda Guerra
-quando os horrores do
nazismo estavam ainda
presentes no imaginário coletivo
principalmente com o Holocausto e
com a biopolítica empreendida pelo
nacional-socialismo-, Adorno realizou uma pesquisa de grande envergadura sobre a personalidade autoritária, ainda nos tempos do seu exílio americano. Entre as muitas coisas aqui levantadas, se destacava algo inédito, qual seja, a relação entre
autoritarismo e sociologia política.
O que foi surpreendente na época foi a evidência de que a dita personalidade não tinha nenhuma afinidade eletiva com uma ideologia, podendo aquela aderir seja a discursos de direita ou de esquerda. Vale dizer, existiria o autoritarismo declinado tanto com o discurso conservador quanto com o socialista. Assim, das denúncias de Kruschov sobre os crimes de Stálin até a malfadada revolução cultural empreendida pelo "Livro Vermelho" de Mao Tse-tung, passando pelo destino funesto dos diversos regimes africanos que realizaram as revoluções anticoloniais, a lista do autoritarismo de esquerda é tão longa quanto a da direita. O que me importa aqui ressaltar, no entanto, é o que se encontra subjacente no imaginário desses discursos autoritários e de que maneira as massas são levadas de roldão pela sedução desses discursos. O pensamento de Freud, 150 anos após o seu nascimento, pode talvez nos ajudar nessa empreitada e indicar assim a sua atualidade. Digo isso, porque assistimos hoje a uma disseminação de lideranças autoritárias, cujos discursos nacionalista e supostamente antiimperialista têm o dom ainda de fascinar as massas. De Hugo Chávez, na Venezuela, a Evo Morales, na Bolívia, a mesma retórica se tece em torno da defesa dos descamisados e dos interesses nacionais. O discurso populista teve em Vargas, no Brasil, e em Perón, na Argentina, dois forjadores dessa tradição latino-americana. Collor ensaiou essa retórica, mas quebrou a cara e foi defenestrado do poder. Garotinho gaguejou também esse discurso e está encenando a comédia de morrer de fome pela sua sofreguidão pelo poder. Chávez e Morales se filiam a essa mesma tradição, procurando manipular os despossuídos em torno do ideário nacionalista, visando a harmonizá-los com a nação e a pátria amada, para lhes oferecer um troco para a sua auto-estima esculhambada. O que significa isso? Que essa modalidade de liderança e discurso se apresenta por meio de uma figura paterna onipotente, que seria capaz de proteger os humilhados e ofendidos de seu desamparo secular. Epopéia maniqueísta Assim, o discurso se transforma numa epopéia maniqueísta, de tonalidade moralista, de retorno ao paraíso perdido do início do século 19, quando se empreenderam as lutas contra o jugo colonial. O projeto bolivariano de Chávez nos revela bem isso. O que se promete, porém, é que o pai da nação vai refundar o povo e o Estado, contra os vilões da pátria ultrajada e da terra arrasada. Esse discurso não é novo na modernidade. Marx, no "Dezoito Brumário de Luís Bonaparte", já ironizava isso, enunciando a famosa tese de que a história se repete, inicialmente como tragédia e depois como farsa. Foi isso que foi encenado na Alemanha e na Itália, com a crise produzida após o fim da Primeira Guerra, dando ensejo à emergência do nazismo e do fascismo. Na mesma onda, tanto Jean-Marie Le Pen quanto Nicolas Sarkozy estimulam hoje a xenofobia francesa contra os imigrantes, como resposta oportunista ao desamparo provocado pelo desemprego crescente, oriundo da globalização. No que tange à nacionalização das reservas de gás e de petróleo, realizada na segunda passada por Evo Morales, na Bolívia, o que está já em pauta é o seu desgaste perante as massas -prometeu mais do que podia cumprir durante a campanha presidencial-, talvez na iminência da convocação da Assembléia Constituinte. Diante da possibilidade de perda dessa próxima eleição, nada melhor do que realizar um ato político espetacular, para alentar, quem sabe, a mal-ajambrada auto-estima dos bolivianos, quase descrentes. Porém todas essas soluções autoritárias, que florescem na modernidade, são a contrapartida de um vazio produzido no centro do poder (Leffort). Com efeito, com a morte de Deus, com o assassinato do Pai do patriarcado e com o destronamento do Rei da tradição teológico-política, as massas marcadas pela orfandade -e que não conseguem exercer plenamente a sua soberania política- aceitam de bom grado a sedução autoritária. Dessa maneira, alguém vai cuidar delas, e o vazio do poder será preenchido por um líder carismático, versão de um novo Deus e de um Pai onipotente. As massas, na sua servidão voluntária (La Boétie), podem, enfim, não entrar em pânico, como enunciava Freud, na "Psicologia das Massas e Análise do Eu", como efeito maior que se produz quando aquelas não mais acreditam no carisma de seu líder. Joel Birman é psicanalista e professor do Instituto de Psicologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro e do Instituto de Medicina Social da Universidade do Estado do RJ. É autor de "Freud e a Filosofia" (Zahar). Texto Anterior: A última muralha Índice |
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