São Paulo, domingo, 07 de junho de 2009

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Rádio pirata

"Ouvintes Alemães!" reúne os discursos de Thomas Mann contra Hitler transmitidos do exílio, na Califórnia, entre 1940 e 45

MÁRCIO SELIGMANN-SILVA
ESPECIAL PARA A FOLHA

Ouvintes Alemães!", de Thomas Mann, merece ser lido não só pelos interessados nesta "charneira histórica" que foi a Segunda Guerra e que até hoje gera um número espantoso de filmes, romances e teses , mas também pelos que admiram o escritor nascido em Lübeck.
Esta obra compila os seus discursos escritos no exílio californiano e transmitidos na Alemanha nazista em guerra, de 1940 a 1945.
Com essas falas, que destilavam ódio e uma "ironia negra" contra Hitler e seus capangas, Mann tentou fazer a luta a partir do front que ele melhor dominava: o literário. Elas são construídas como um contradiscurso ao nazismo. Mann se apresenta como o representante da tradição de Dürer, Bach, Goethe e Beethoven.
É essa "outra face" da Alemanha que ele mobiliza na sua guerra contra a barbárie, que também teria "raízes profundas na vida alemã", a saber, no "romantismo".
Nesse sentido, a tradução brasileira acerta ao escrever no título "Discursos contra Hitler" (e não simplesmente, como no original alemão, "emissões para a Alemanha"). Trata-se de um livro "hitlercêntrico": tudo nele gira em torno do führer. "O único empecilho para uma paz justa para todos é Hitler", ele, "o terrorista", o "bufão homicida", é ele quem "é o inimigo da humanidade".
O autor de "Doutor Fausto" escreve que ele representa um "satanismo megalomaníaco", o "diabolismo insondavelmente mau": "Esse coisa-ruim não vai para o inferno com a alma de Fausto, a alma da humanidade, mas sozinho". Vemos aqui figuras literárias mobilizadas para conquistar, em meio aos adeptos do nazismo, almas não tão seguras de seu amor ao "inimigo da humanidade."
Para poder conquistar esses aliados, Mann faz questão de separar os nazistas e o nazismo da Alemanha e dos alemães.
Contraditoriamente, ele afirma que a Alemanha nazista não seria alemã: "Nunca houve uma distância tão grande entre os interesses de um povo e os de seus governantes como hoje entre vocês, alemães".
Mann, aliás, alterna entre se colocar como um alemão e como um emigrado que se naturalizou americano e agora tenta apresentar aos alemães o caminho da "liberdade".

"Povo alemão"
É até surpreendente como em determinadas passagens ele se coloca como um verdadeiro inimigo do nacionalismo.
Pois, se não é menos verdadeiro que Mann (1875-1955) ainda escreve pérolas como ao afirmar que existe um "povo alemão", com seu "caráter e destino", marcado pela "capacidade de invenção, bravura, amor à obediência, competência militar, em suma, com toda a força do povo alemão" (talvez uma deixa para conquistar nazistas para seu time), por outro lado, escreve e fala também em alto e bom som: "Eu não sou nacionalista"!
"Faz tempo que tudo o que é nacional se tornou província."
E ainda ele ousou escrever, tendo em vista seu público-alvo, que "a cultura alemã não é a mais alta nem a única, mas uma entre muitas, e o desejo de ser admirada foi sempre seu impulso mais profundo".

Diário de guerra
Nessas linhas, Mann toca em uma corda sensível da questão histórica alemã fáustica do desejo de reconhecimento.
Contra o nacionalismo, fala, com Nietzsche, que a Europa deve se tornar una para conquistar a liberdade, e não o terror, e ser transformada em um "imenso campo de concentração", como Hitler, para Mann, estava fazendo.
Apesar de representar uma parte bem pequena de suas transmissões, Mann descreve os horrores dos guetos judaicos e dos campos de concentração e de extermínio.
Ao falar sobre uma execução de 800 homens em Mauthausen, sua pena de autor se revolta: "Isso mostra que a bestialidade nazista sempre ultrapassa tudo o que se atribui a ela: nunca se corre o perigo de exagerar; com o pior, fica-se ainda pela metade da verdade".
Essas emissões podem ser lidas também como um diário de guerra, já que elas acompanham passo a passo as notícias vindas do front.
Mann, a princípio, vê como uma tarefa quase impossível vencer as tropas nazistas. Mas, aos poucos, sobretudo após o engajamento norte-americano, percebe que o fim é só uma questão de tempo.
Ele discute largamente -antes de autores como Karl Jaspers e Hannah Arendt- a questão da culpa alemã. Ele profetisa que a memória daquela guerra será diferente, mais profunda. Diante de sua destruição e bestialidade, ela seria "desesperadoramente inesquecível".
Mann acreditava em uma "ampla e terrível culpa nacional", mas exigia o julgamento individual dos culpados pelo regime. Daí separar a culpa da responsabilidade e manter a diferença entre os nazistas e o "povo alemão".
Ele exige uma depuração e uma purificação -ou seja, julgamentos que estejam "à altura de atos criminosos nunca antes vistos no mundo".

Punição aos intelectuais
Reconhece, no entanto, em 1945, a "impossibilidade de expiar" totalmente os horrores daquela ordem. Mais inocentemente, acredita que também os intelectuais que serviram ao regime -como Heidegger, nós poderíamos lembrar- seriam punidos.
Também é inocente ou estrategicamente inocente sua crença nas palavras de Stálin e de seu embaixador Maisky, segundo as quais os russos não teriam interesse nenhum nos territórios europeus que estavam libertando.
Por outro lado, é surpreendente como ele tenta, em 1944, convencer ouvintes alemães que a guerra de bombardeios, à qual a Alemanha estava sendo submetida, era justificável.
Nesse ponto ele apela para Nêmesis: a justiça divina.


MÁRCIO SELIGMANN-SILVA é professor de teoria literária e literatura comparada na Universidade Estadual de Campinas (SP). É autor de, entre outros, "O Local da Diferença" (ed. 34).

OUVINTES ALEMÃES!
Autor: Thomas Mann
Tradução: Antonio Carlos dos Santos e Renato Zwick
Editora: Ed. Zahar (tel. 0/xx/21/2108-0808)
Quanto: R$ 39,90 (224 págs.)


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