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Rádio pirata
"Ouvintes Alemães!" reúne os discursos de Thomas Mann contra Hitler transmitidos do exílio, na Califórnia, entre 1940 e 45
MÁRCIO SELIGMANN-SILVA
ESPECIAL PARA A FOLHA
Ouvintes Alemães!",
de Thomas Mann,
merece ser lido
não só pelos interessados nesta
"charneira histórica" que foi a
Segunda Guerra e que até hoje
gera um número espantoso de
filmes, romances e teses , mas
também pelos que admiram o
escritor nascido em Lübeck.
Esta obra compila os seus
discursos escritos no exílio californiano e transmitidos na
Alemanha nazista em guerra,
de 1940 a 1945.
Com essas falas, que destilavam ódio e uma "ironia negra"
contra Hitler e seus capangas,
Mann tentou fazer a luta a partir do front que ele melhor dominava: o literário. Elas são
construídas como um contradiscurso ao nazismo. Mann se
apresenta como o representante da tradição de Dürer, Bach,
Goethe e Beethoven.
É essa "outra face" da Alemanha que ele mobiliza na sua
guerra contra a barbárie, que
também teria "raízes profundas na vida alemã", a saber, no
"romantismo".
Nesse sentido, a tradução
brasileira acerta ao escrever no
título "Discursos contra Hitler" (e não simplesmente, como no original alemão, "emissões para a Alemanha"). Trata-se de um livro "hitlercêntrico":
tudo nele gira em torno do führer. "O único empecilho para
uma paz justa para todos é Hitler", ele, "o terrorista", o "bufão homicida", é ele quem "é o
inimigo da humanidade".
O autor de "Doutor Fausto"
escreve que ele representa um
"satanismo megalomaníaco", o
"diabolismo insondavelmente
mau":
"Esse coisa-ruim não vai para o inferno com a alma de
Fausto, a alma da humanidade,
mas sozinho". Vemos aqui figuras literárias mobilizadas para
conquistar, em meio aos adeptos do nazismo, almas não tão
seguras de seu amor ao "inimigo da humanidade."
Para poder conquistar esses
aliados, Mann faz questão de
separar os nazistas e o nazismo
da Alemanha e dos alemães.
Contraditoriamente, ele afirma que a Alemanha nazista não
seria alemã: "Nunca houve
uma distância tão grande entre
os interesses de um povo e os
de seus governantes como hoje
entre vocês, alemães".
Mann, aliás, alterna entre se
colocar como um alemão e como um emigrado que se naturalizou americano e agora tenta apresentar aos alemães o caminho da "liberdade".
"Povo alemão"
É até surpreendente como
em determinadas passagens ele
se coloca como um verdadeiro
inimigo do nacionalismo.
Pois, se não é menos verdadeiro que Mann (1875-1955)
ainda escreve pérolas como ao
afirmar que existe um "povo
alemão", com seu "caráter e
destino", marcado pela "capacidade de invenção, bravura,
amor à obediência, competência militar, em suma, com toda
a força do povo alemão" (talvez
uma deixa para conquistar nazistas para seu time), por outro
lado, escreve e fala também em
alto e bom som:
"Eu não sou nacionalista"!
"Faz tempo que tudo o que é
nacional se tornou província."
E ainda ele ousou escrever,
tendo em vista seu público-alvo, que "a cultura alemã não é a
mais alta nem a única, mas uma
entre muitas, e o desejo de ser
admirada foi sempre seu impulso mais profundo".
Diário de guerra
Nessas linhas, Mann toca em
uma corda sensível da questão
histórica alemã fáustica do desejo de reconhecimento.
Contra o nacionalismo, fala,
com Nietzsche, que a Europa
deve se tornar una para conquistar a liberdade, e não o terror, e ser transformada em um
"imenso campo de concentração", como Hitler, para Mann,
estava fazendo.
Apesar de representar uma
parte bem pequena de suas
transmissões, Mann descreve
os horrores dos guetos judaicos
e dos campos de concentração
e de extermínio.
Ao falar sobre uma execução
de 800 homens em Mauthausen, sua pena de autor se revolta: "Isso mostra que a bestialidade nazista sempre ultrapassa
tudo o que se atribui a ela: nunca se corre o perigo de exagerar;
com o pior, fica-se ainda pela
metade da verdade".
Essas emissões podem ser lidas também como um diário de
guerra, já que elas acompanham passo a passo as notícias
vindas do front.
Mann, a princípio, vê como
uma tarefa quase impossível
vencer as tropas nazistas. Mas,
aos poucos, sobretudo após o
engajamento norte-americano,
percebe que o fim é só uma
questão de tempo.
Ele discute largamente -antes de autores como Karl Jaspers e Hannah Arendt- a questão da culpa alemã.
Ele profetisa que a memória
daquela guerra será diferente,
mais profunda. Diante de sua
destruição e bestialidade, ela
seria "desesperadoramente
inesquecível".
Mann acreditava em uma
"ampla e terrível culpa nacional", mas exigia o julgamento
individual dos culpados pelo
regime. Daí separar a culpa da
responsabilidade e manter a diferença entre os nazistas e o
"povo alemão".
Ele exige uma depuração e
uma purificação -ou seja, julgamentos que estejam "à altura
de atos criminosos nunca antes
vistos no mundo".
Punição aos intelectuais
Reconhece, no entanto, em
1945, a "impossibilidade de expiar" totalmente os horrores
daquela ordem. Mais inocentemente, acredita que também os
intelectuais que serviram ao regime -como Heidegger, nós
poderíamos lembrar- seriam
punidos.
Também é inocente ou estrategicamente inocente sua crença nas palavras de Stálin e de
seu embaixador Maisky, segundo as quais os russos não teriam
interesse nenhum nos territórios europeus que estavam libertando.
Por outro lado, é surpreendente como ele tenta, em 1944,
convencer ouvintes alemães
que a guerra de bombardeios, à
qual a Alemanha estava sendo
submetida, era justificável.
Nesse ponto ele apela para Nêmesis: a justiça divina.
MÁRCIO SELIGMANN-SILVA é professor de
teoria literária e literatura comparada na Universidade Estadual de Campinas (SP). É autor
de, entre outros, "O Local da Diferença" (ed. 34).
OUVINTES ALEMÃES!
Autor: Thomas Mann
Tradução: Antonio Carlos dos Santos e Renato Zwick
Editora: Ed. Zahar (tel. 0/xx/21/2108-0808)
Quanto: R$ 39,90 (224 págs.)
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