São Paulo, domingo, 07 de junho de 2009

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+(s)ociedade

Mar adentro

AUSÊNCIA DE CORPOS E IMAGENS QUE MATERIALIZEM A TRAGÉDIA DO VOO 447 PROVOCA UMA SENSAÇÃO DE VAZIO EXISTENCIAL QUE REMONTA A HOMERO

ALCIR PÉCORA
ESPECIAL PARA A FOLHA

Há um silêncio insistente pegado ao tropel das notícias que acompanham o voo 447 da Air France, desaparecido em meio ao Atlântico, na noite do último domingo. Talvez porque, a rigor, não possam ser inteiramente notícias, relatos de acontecimentos que se dão a conhecer.
Pois há um vazio instalado no lugar da catástrofe. Um vazio residual, um silêncio ineludível entre as vozes e imagens. Vazio de causas do acidente, vazio de comunicação do avião sinistrado, vazio de imagens do desastre; vazio de comunicados terroristas; vazio, por ora, até de paranoia.
A falta de terreno para as notícias salta ainda mais à vista nas galerias de fotos que os jornais tentam montar, com obrigatória criatividade, para dar uma dimensão mais humana, mais factual e discursiva para o desastre.
O que mostram são fotografias de aviões semelhantes ao usado no voo 447 (que mais acentuam a consciência de não ser ele o verdadeiro do que a semelhança com ele), de radares modernos em navios, ou de militares com binóculos a perscrutar a presumível cena da queda, sempre com a mesma insuficiência de quem nos mostrasse os olhos em lugar da coisa supostamente avistada.

Marcas da ansiedade
No lugar do acidente, há a proliferação de imagens dos familiares a descer dos ônibus ou a cruzar escoltados os aeroportos do Rio e de Paris, com os olhos cobertos de dor e perplexidade. Mas a própria abundância dessas imagens vicárias marca sobretudo a ansiedade pelas notícias que não vêm, pela insistência da tragédia em não se consumar, de não apresentar justificativas para a sua ocorrência.
Não há muitos objetos capazes de representar vicariamente a extensão cabal do desastre. Há o céu e há, sobretudo, o mar. Mas o mar confunde, indistingue, abstratiza, mais do que evidencia a tragédia.
Assinalam um traçado no mar, mas ele não parece suficiente para expressar o trágico. Mencionam uma cadeira, objetos coloridos, uma parte metálica de alguns metros, mas metros não contam para o mar.
Compreende-se o apego aos objetos partidos para valer como demonstração patética do desastre invisível.
Não era por outro motivo que Aristóteles, na "Retórica", notava a eficácia de exibir camisas ou outros objetos com o sangue das vítimas para tornar presentes aos jurados a violência dos criminosos diante da ausência dos corpos mortos no tribunal.
Mas não há sangue, não há culpados, não há traços humanos especialmente comoventes.
De tudo o que se vê, evidencia-se tão somente o alto-mar. Sua magnificência está mais próxima da metáfora metafísica, seja da morte, seja da fortuna, que dos afetos trágicos. Mais do que piedade e compaixão, o mar exibe a sua própria grandeza.
Por isso, no mar, em busca dos sinais dos mortos do voo 447, mais se encontram os sinais de nossa própria insuficiência. No mar, como no espaço abissal, é difícil sustentar um drama subjetivo individualizado: nele se enxerga melhor a nossa condição comum do que nossa vida particular.
Como suplicar ao seu sem fundo que se apiede, como o vingado coração de Aquiles [na "Ilíada", de Homero] diante das súplicas do pai para restituir o corpo do filho amado?
Que esperança de enternecê-lo e de prantear os corpos dos mortos, para que os façamos parte de nossas cerimônias e os aceitemos então como parte de nossas memórias e, portanto, como experiências que se pode viver, mesmo insuperadas?

Sem catarse
Desse modo, não há tragédia, pois não há relato de ação; não há catarse possível, pois não há erro, nem há vítimas que se dão a ver, assim como nos faltam os despojos sujos, tocantes, de vida interrompida.
Tampouco há sublime pós-moderno, pois não há absolutamente o horror do inenarrável: há apenas a narração exígua do que semostra imenso à vista.
Os jornalistas, mais ou menos obrigados a recompor uma história dramática, senão uma grande tragédia -não por má intenção ou indiferença, mesmo ao contrário, para dar uma dimensão sensível à dor-, estão cada vez mais na pele do pintor inepto de Horácio, que apenas sabendo pintar árvores, não sabia como fazer para plantá-las na paisagem marítima.
Mas há apenas a dor dos que a sentem, mais nada.


ALCIR PÉCORA é professor de teoria literária na Universidade Estadual de Campinas (SP) e autor de "Máquina de Gêneros" (Edusp).


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