São Paulo, domingo, 7 de junho de 1998

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AUTORES
A ilusão de um novo dia


Stanley Cavell analisa o mito do eterno retorno no filme "Feitiço do Tempo"


STANLEY CAVELL
especial para a Folha

Já que, para as duas vertentes filosóficas (as chamadas correntes analítica e continental -uma classificação bem ao gosto de Borges), parece incontestável que o ramo analítico não é capaz de levar a sério os diversos modos em que a filosofia pode ser composta, não fico nada surpreso quando me perguntam, de tempos em tempos, se para mim é a filosofia ou a arte de escrever que vem primeiro. O que me surpreendeu foi minha própria resposta a essa indagação, ao sugerir que um dos primeiros fatos que me seduziram na filosofia analítica foi precisamente sua desconfiança da escrita pela escrita. A escrita deveria acolher novas formas e novas versões de velhas formas para desconfiar de si mesma. Não sei dizer ao certo quando me dispus a determinar qual escrita é capaz de sobreviver nesse terreno agreste da filosofia.
Mas, de vez em quando, tenho a sensação de que negligenciei assuntos mais promissores, e isso me leva a aceitar certos convites que, do contrário, me pareceriam uma simples distração. Gostaria de relatar aqui uma dessas escapadelas, cuja moral continua a me alentar.
Para seu número de 29 de setembro de 1998, a revista semanal do "The New York Times" planejava celebrar sua existência centenária com uma publicação intitulada "Os Próximos Cem Anos", cujas matérias seriam baseadas nas especulações de várias pessoas sobre o destino de suas disciplinas e interesses no próximo século. A tarefa que me ofereceram, algo entre uma adivinhação e um jogo de salão sem regras para a solução correta e sem recompensa pela vitória, era a seguinte: escolha um filme rodado nos últimos 25 anos que ainda será visto e festejado daqui a cem anos e escreva 50 palavras sobre o tema.
Resolvi que enviaria uma resposta se ela satisfizesse algumas condições, a saber: a) para entrar no espírito brincalhão do artigo, mas com seriedade bastante para assiná-lo, a escolha de um filme teria de ser marcada pela surpresa e registrar um protesto contra os gastos astronômicos de Hollywood, que ameaçam inviabilizar os filmes menores, de maior rigor artístico e intelectual; b) para fazer jus à gravidade da escolha, as palavras por ela inspiradas teriam de ser, para todos que se importam com o fato de elas partirem de mim (para mim, por exemplo), compatíveis com aquilo que me levou a escrever sobre o cinema ao longo dos anos, sob condições mais propícias.
Uma escolha que parecia satisfazer tais condições era "Groundhog Day" ("Feitiço do Tempo", de 1993, dirigido por Harold Ramis, com Bill Murray e Andy MacDowell), que me inspirou as seguintes 50 ou 60 palavras: "Um pequeno filme que vive de suas piadas e narra uma maravilhosa história de amor. Ele cria uma versão da pergunta que faço aqui -o que irá subsistir? A sua versão é indagar como, cercados de convenções em que não exatamente acreditamos, algumas vezes nos surpreendemos a entrar naquilo que Emerson concebia como um novo dia".
Apesar da autonomia que procurei dar a esse pequeno texto -ao sugerir misteriosamente uma conexão entre encontrar o amor e estar apto para o futuro-, percebi que ele repercutiria, no máximo, naqueles que notassem quão literalmente ele se amolda à narrativa do filme, no qual um homem que se acha condenado (como por um sortilégio) a repetir, todos os dias, as ações do dia anterior aprende aos poucos (como por uma bênção) que lhe fora dada a oportunidade de inserir mudanças em suas respostas ao mundo dessas ações, talvez para aproximá-las de seus desejos, ou melhor, para viver as vidas necessárias à escolha da vida que lhe foi atribuída, com o máximo de perfeição. Tempo bastante para aprender a viver, sem compromisso.
A alusão à extasiante descoberta nietzschiana da vontade do eterno retorno é inequívoca, assim como (portanto) a sua ressonância em Emerson, na doutrina do repúdio à conformidade, na disposição de medir os fatos pelo padrão da felicidade. Talvez ainda mais próximo esteja Thoreau ao zombar daqueles que, por estar na moda, proclamam terem nascido pela segunda vez, como se dois fosse algo muito especial.
O herói -ou vítima- de "Feitiço do Tempo", lá pela metade de sua odisséia (depois de a mesma alvorada repetir-se uma dezena de vezes), descobre que é incapaz de morrer, ou seja, que o despertador sempre tocará para ele às seis da manhã, não importa a morte que tenha arquitetado para si próprio no dia anterior. Ele afirma ser Deus para a mulher por quem está apaixonado, o que o lança no desespero, pois ele renasce eternamente para sua antiga vida.
Assim, pode-se dizer que esse pequeno filme é uma versão da pergunta de que Emerson e Nietzsche se encarregaram -a pergunta pelo futuro, a possibilidade de um novo ponto de partida na vida humana, pública ou privada. Emerson alude a essa vocação para um novo dia, para uma nova alvorada ao meio-dia. Thoreau, cujo eco nesse caso é mais famoso que seu original, conclui seu "Walden" com a frase: "O sol é apenas uma estrela matutina". Nietzsche codifica notavelmente a idéia ao falar do filósofo do futuro -evocado explicitamente no seu "Para Além do Bem e do Mal"-como "o homem do amanhã e do depois de amanhã", frase que traduz corretamente "Morgen" e "Übermorgen", mas na qual o uso nietzschiano do prefixo "über" incide sobre a idéia do amanhã, do tempo transformado, como "Übermensch" incide sobre a idéia da humanidade transformada.
Ora, se eu realmente imaginara, em 50 ou 60 palavras, promover a união entre filosofia e cinema, não tive mais que decepção. Esta não se fez tardar, na forma de uma carta impaciente ao "The New York Times" alguns números mais tarde, citando minha escolha do "Feitiço do Tempo" como um exemplo de uma sugestão cínica ou petulante, resultado de uma intenção trivial ou inconsequente. Ou será que não foi decepção, mas somente uma reação já em parte esperada a uma armadilha só em parte dissimulada? Neste caso, minha decepção começara antes, numa armadilha contra a qual estivera menos precavido.
Menos equívoca foi a minha descoberta, cerca de um ano mais tarde, da viva repercussão do filme que eu escolhera. Ela veio depois de duas horas de espera numa fila irritantemente lenta de um guichê de aeroporto, quando foi anunciado pelos alto-falantes o cancelamento do vôo. O casal à minha frente, no correr de nossa crescente solidariedade durante as horas na fila, contou-me que esse mesmo vôo fora cancelado dois dias antes, quando eles também se encontravam na fila. Um deles comentou: "Hoje é nosso "Groundhog Day'±".
Satisfeito como estava com a popularidade que o filme alcançara, minha própria irritação com o cancelamento do vôo causou em mim aquilo que chamaria de um Mau Dia Transcendental, no qual tenho de reconhecer, mais uma vez, as remotas chances de popularizar o pensamento de Emerson e Thoreau. De novo, e no gesto de uma simples brincadeira, a tese de Emerson cai por terra. Não vemos que, todo dia, nos adaptamos a repetições "inconvenientes", algumas da quais são os laços invisíveis de nossas existências. O sol de Thoreau ("morning star") lamenta por nós ("mourns for us").
Um efeito tardio de minha escolha iluminou, por sua vez, essa face sombria da memória. Outro dia, um conhecido contou-me que, ao despedir-se de seu amigo para um encontro marcado comigo, perguntou-lhe se não conhecia o meu trabalho. O amigo pensou por um instante e disse: "Não é aquele que gosta do 'Groundhog Day?' ".


Stanley Cavell é filósofo americano e professor da Universidade de Harvard; escreveu "Esta América Nova, Ainda Inabordável" (Ed. 34), entre outros. Escreve uma vez por mês.
Tradução de José Marcos Macedo.



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