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PONTO DE FUGA
A roupa do rei
JORGE COLI
especial para a Folha
Uma leitora reclama da linguagem obscura, frequente nos
catálogos de arte contemporânea. É curioso como somos seduzidos e mistificados por
aquilo que não compreendemos. Os textos obscuros têm a
faculdade de sugerir verdades
profundas. Trata-se, antes, de
um instrumento de poder: o insondável dispõe a submissão
do leitor e impõe-se como fonte
suposta de revelação. Além do
catálogo, ele espraia-se em
areias as mais diversas: na fala
professoral, na tese douta, no
jargão do especialista. Diante
dele, sucumbimos a um caráter
encantatório: o autor torna-se
sacerdote elevado e inatacável,
pois, se nós, leitores, confessarmos incompreensão, demonstramos imediatamente inferioridade. Muitas vezes, a elegância na escrita é desprezada:
idéias "sérias" dispensariam a
qualidade do estilo, quando, de
fato, o estilo é fonte de inteligência específica. Além de
qualquer outro, o pensamento
complexo e difícil exige a frase
ordenada, o controle dos parágrafos, a escolha justa das palavras. Mais ainda, a clara elegância destrói qualquer mistificação. No oposto, o texto hermético promete profundezas
que não recobre. Sereias de
água rasa, as escritas inacessíveis possuem, contudo, hipnótico fascínio. Não é muito fácil,
como o faz a leitora, irritar-se e
desvendar o rei que está nu.
ENVELHECER - Alguns espíritos intelectuais mais sofisticados desdenham os filmes de
Quentin Tarantino. Infantilismo, caráter artificial, cacoetes
que se repetem -os argumentos contrários desmoronam,
entretanto, diante de qualidades que saltam aos olhos sem
preconceitos. A banalização da
violência -que, em verdade, é
nosso lote quotididano- parece, no apogeu de "Pulp Fiction", herdar e radicalizar o
admirável "A Honra do Poderoso Prizzi", de John Huston,
em que o humor e a desarmante inocência "normalizam" crimes executados como quem bebe água. Mas "Jackie Brown"
não repete fórmulas. Há os que
morrem impunemente, como
em brincadeiras. Mas há os que
sobrevivem e, estes, envelhecem. O ator Robert Forster fora
a obsessão sexual de Marlon
Brando num outro filme de
Huston, "Reflections in a Golden Eye", há 30 anos atrás. Ele
reaparece aqui com suas rugas,
com implantes capilares, cúmplice de Pam Grier, também
madura, numa densidade humana que só é trazida pela idade. Uma das amargas lições de
"Jackie Brown" é que o envelhecimento significa apenas sobrevivência.
DESERTO - Antonio Meneses, com a Orquestra do Estado
de São Paulo, interpretou, no
teatro São Pedro (SP), o concerto de Elgar. Seu violoncelo
possui a mais suntuosa e aristocrática paleta sonora. Mas é
a estupenda intuição das obras
que faz de Antonio Meneses
um dos grandes violoncelistas
de nosso tempo. O maestro
Minczuk dirigiu também músicos impecáveis numa admirável "Quinta" de Tchaikovsky.
Preços populares e teatro longe
de estar lotado. É melancólico:
na cidade de São Paulo não há
700 pessoas para um concerto
de qualidade tão elevada.
SONS - "Boleiros" está para o
cinema assim como a redação
de um escolar de oito anos está
para a literatura. Salva-se a
música inventiva, centrada nos
metais.
Jorge Coli é historiador da arte.
E-mail: coli@correionet.com.br
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