São Paulo, domingo, 7 de junho de 1998

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PONTO DE FUGA
A roupa do rei

JORGE COLI
especial para a Folha

Uma leitora reclama da linguagem obscura, frequente nos catálogos de arte contemporânea. É curioso como somos seduzidos e mistificados por aquilo que não compreendemos. Os textos obscuros têm a faculdade de sugerir verdades profundas. Trata-se, antes, de um instrumento de poder: o insondável dispõe a submissão do leitor e impõe-se como fonte suposta de revelação. Além do catálogo, ele espraia-se em areias as mais diversas: na fala professoral, na tese douta, no jargão do especialista. Diante dele, sucumbimos a um caráter encantatório: o autor torna-se sacerdote elevado e inatacável, pois, se nós, leitores, confessarmos incompreensão, demonstramos imediatamente inferioridade. Muitas vezes, a elegância na escrita é desprezada: idéias "sérias" dispensariam a qualidade do estilo, quando, de fato, o estilo é fonte de inteligência específica. Além de qualquer outro, o pensamento complexo e difícil exige a frase ordenada, o controle dos parágrafos, a escolha justa das palavras. Mais ainda, a clara elegância destrói qualquer mistificação. No oposto, o texto hermético promete profundezas que não recobre. Sereias de água rasa, as escritas inacessíveis possuem, contudo, hipnótico fascínio. Não é muito fácil, como o faz a leitora, irritar-se e desvendar o rei que está nu.

ENVELHECER - Alguns espíritos intelectuais mais sofisticados desdenham os filmes de Quentin Tarantino. Infantilismo, caráter artificial, cacoetes que se repetem -os argumentos contrários desmoronam, entretanto, diante de qualidades que saltam aos olhos sem preconceitos. A banalização da violência -que, em verdade, é nosso lote quotididano- parece, no apogeu de "Pulp Fiction", herdar e radicalizar o admirável "A Honra do Poderoso Prizzi", de John Huston, em que o humor e a desarmante inocência "normalizam" crimes executados como quem bebe água. Mas "Jackie Brown" não repete fórmulas. Há os que morrem impunemente, como em brincadeiras. Mas há os que sobrevivem e, estes, envelhecem. O ator Robert Forster fora a obsessão sexual de Marlon Brando num outro filme de Huston, "Reflections in a Golden Eye", há 30 anos atrás. Ele reaparece aqui com suas rugas, com implantes capilares, cúmplice de Pam Grier, também madura, numa densidade humana que só é trazida pela idade. Uma das amargas lições de "Jackie Brown" é que o envelhecimento significa apenas sobrevivência.

DESERTO - Antonio Meneses, com a Orquestra do Estado de São Paulo, interpretou, no teatro São Pedro (SP), o concerto de Elgar. Seu violoncelo possui a mais suntuosa e aristocrática paleta sonora. Mas é a estupenda intuição das obras que faz de Antonio Meneses um dos grandes violoncelistas de nosso tempo. O maestro Minczuk dirigiu também músicos impecáveis numa admirável "Quinta" de Tchaikovsky. Preços populares e teatro longe de estar lotado. É melancólico: na cidade de São Paulo não há 700 pessoas para um concerto de qualidade tão elevada.

SONS - "Boleiros" está para o cinema assim como a redação de um escolar de oito anos está para a literatura. Salva-se a música inventiva, centrada nos metais.


Jorge Coli é historiador da arte.
E-mail: coli@correionet.com.br



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