São Paulo, domingo, 07 de julho de 2002

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A MORAL CONCRETA

Divulgação
Desenho do artista polonês Tadeusz Kulisiewicz, encomendado por Brecht para as apresentações em Paris


por Roland Barthes

O Círculo de Giz Caucasiano" é, certamente, uma das peças mais importantes do teatro de Brecht, que já conta com algumas obras-primas. Sua amplitude, sua beleza, a mistura de simplicidade e de sutileza de seu argumento, a generosidade de sua intenção, o sentido positivo de sua conclusão, a encenação perfeita, tudo é feliz nessa obra, que realiza a dupla intenção do teatro de Brecht: despertar e alimentar a consciência política do espectador e, ao mesmo tempo, garantir seu prazer mais franco, pois o teatro é feito para divertir. A obra, composta como uma longa narrativa, compreende três histórias diferentes, ligadas entre si por laços sutis. A primeira história é exposta no prólogo: dois colcoses caucasianos discutem amigavelmente sobre a exploração de um pedaço de terra: quem deverá cultivá-la? É a essa pergunta que a peça propriamente dita responde, representada diante dos trabalhadores dos dois colcoses, como um auto moral. Essa moral é retirada de uma velha lenda chinesa, "um pouco adaptada", como diz maliciosamente um dos narradores. Trata-se, com efeito, de um apólogo que guarda uma analogia formal com o conhecido julgamento de Salomão. Mas essa forma antiga recebe aqui um conteúdo novo, que lhe confere valor. A peça na verdade se compõe de duas histórias diferentes que convergem apenas no final e se iluminam com uma significação inteiramente moderna. A primeira parte apresenta a história de Grucha, a cozinheira do governador de Grusínia. Durante uma revolta palaciana, ela acolhe o filho do governador, indignamente abandonado por sua própria mãe. Ela foge com ele, o salva de mil emboscadas e o cria com amor, até o dia em que uma nova revolução devolve à mãe natural os direitos sobre a criança. Ela que vem reclamá-la para cinicamente recuperar a herança de seu marido, o governador decapitado.

Mãe de coração
É nesse momento que se insere na trama da narrativa a segunda história (numa espécie de flashback, procedimento narrativo a que o cinema nos acostumou). Essa segunda história é, de certa forma, a biografia de Azdak, um trapaceiro sutil e simpático, feito juiz por uma inversão de situação. Azdak profere veredictos saborosos, inesperados, de profundo bom senso, mas sem nenhuma base na legalidade. Ora, é precisamente Azdak que terá que distinguir entre as duas mães: a mãe de sangue e a mãe de criação. Ele o fará por meio de um símbolo material, o do círculo de giz. A criança disputada é colocada dentro do círculo e cada uma das duas mães deve puxá-la para si. Naturalmente, é Grucha, a mãe de coração, que solta a criança, por medo de machucá-la, e é a ela que Azdak concede a criança, dando assim aos camponeses dos colcoses o exemplo de um julgamento fundado não no direito formal e eterno, mas na compreensão exata da história.
Ao longo do fio narrativo, a obra desenvolve episódios dramáticos de força e vida admiráveis: ora cômica, ora delicada, ora vingativa, ora maliciosa, mas sempre profundamente calorosa. A peça seduz sem cessar por uma humanidade autêntica, que jamais se presta às imposturas dos "bons sentimentos", mas sabe encontrar em cada situação a via de uma moral concreta, de uma solidariedade efetiva, e não apenas nominal, entre os homens. Citarei alguns grandes momentos, cujo efeito foi particularmente sensível aos espectadores parisienses: a fuga de Grucha para as montanhas, de uma delicadeza tão rude, tão pouco melodramática, e no entanto tão pura; a cena do riacho, na qual Grucha e seu noivo, o soldado Simão, se encontram num diálogo de um pudor desconcertante; o casamento de Grucha com um camponês falsamente moribundo, quadro em que a verve e a sátira arrebatam um riso libertador; a eleição de Azdak pelos Couraceiros, quando o caráter de Azdak, pedra angular do edifício dramático, se desenha com tanta sedução.
Naturalmente, uma certa crítica incapaz de negar o sucesso do espetáculo apressou-se a acusar seu aspecto formal, para melhor escamotear o conteúdo político. Deformação contra a qual protestam não apenas toda a vida de Brecht, toda sua obra e seu pensamento, mas ainda os próprios temas do "Círculo de Giz", visivelmente alimentados pelas lições do materialismo dialético. Há inicialmente o tema da bondade, daquilo que Brecht chama na própria peça "a terrível tentação da bondade". Como, numa sociedade má, ser bom sem fazer o jogo dos maus? Essa é uma questão central em quase todas as peças de Brecht. Há quase sempre na origem do teatro de Brecht um ato bom, generoso, assumido espontaneamente por um indivíduo pobre,


O crítico francês analisa a montagem da peça durante a turnê parisiense do Berliner Ensemble em 1955


oprimido; e a obra consiste precisamente em nos mostrar como esse ato é pouco a pouco sufocado ou eliminado pela lógica implacável de uma sociedade bárbara. Grucha também cedeu à terrível tentação da bondade e, sem o veredicto de Azdak, não escaparia de ser esmagada pelo direito formal dos senhores. Azdak é, de fato, o personagem que confere significado positivo à peça; é ele quem, de algum modo, recobra essa perigosa tentação da bondade, à qual cedeu Grucha. Ele só pode fazê-lo, aliás, ao preço de uma "ilegalidade": numa sociedade má, em que o direito formal não passa de uma hipocrisia a serviço dos poderosos, apenas um juiz trapaceiro pode tornar justa a Justiça. O personagem de Azdak explicita brilhantemente a idéia de que à noção de justiça eterna e mistificadora se opõe uma justiça concreta, adaptada às próprias contradições da história. Finalmente, existe no "Círculo de Giz" uma última e grande lição, aquela que a moralidade transmite aos camponeses dos colcoses: é o trabalho, não o direito, que determina a propriedade; a terra pertence a quem a cultiva melhor; a natureza deve se submeter às necessidades dos homens.

Claro-escuro
Esta grande obra é, pois, uma obra de reconciliação, e mesmo os elementos propriamente bárbaros do mundo aqui descrito por Brecht têm um aspecto bem mais caricatural que horrível. Toda a encenação, ao mesmo tempo brilhante e refletida, visa ao deleite do espectador. As máscaras certamente causam estranheza mas também fixam na sátira os traços dos poderosos ou de seus valetes. Os panos de fundo, leves, arejados, as cores do figurino, ao mesmo tempo douradas e opacas, a iluminação enfim, muito franca e constante do início ao fim da peça, sem jamais provocar um efeito de claro-escuro, tudo isso confere à obra a distância de uma velha lenda muito clara, que nos é representada com verdade e beleza, sem que jamais tenhamos a tentação de nos perder no pitoresco ou no melodrama.
Os atores são todos admiráveis, toda a imprensa o destacou: sua arte participa também dessa evidência e dessa simplicidade soberanas, que comovem o espectador à medida que o tocam sem confundi-lo e lhe deixam toda sua liberdade de julgamento.
O sucesso do "Círculo de Giz" foi total. Isso não quer dizer que algumas aprovações não tenham repousado sobre um equívoco. Mas pouco importa. O importante é que Brecht e o Berliner Ensemble tenham, pela segunda vez, conquistado o grande público parisiense e que esse teatro "capital" se implante cada vez mais entre nós.

Roland Barthes (1915-1980) foi um dos principais pensadores e críticos franceses de sua época. Seus escritos sobre semiótica contribuíram para tornar o estruturalismo um dos movimentos intelectuais mais fortes do século 20. Publicou 17 livros, entre os quais se destacam "O Grau Zero da Escrita" (ed. Martins Fontes), "Mitologias" (ed. Bertrand Brasil) e "Elementos de Semiologia" (ed. Cultrix). Este texto foi publicado na edição de agosto-setembro de 1955 da revista "Europe" e integra a edição de "O Círculo de Giz Caucasiano".

Tradução de Roberta Saraiva Coutinho.


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