São Paulo, domingo, 07 de julho de 2002

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"O Negócio do Livro", do americano Jason Epstein, radiografa as mutações do mercado editorial

Metamorfoses de Gutenberg


A inviabilidade do modelito de mercado não equivale ao fim do livro nem da leitura


Marisa Lajolo
especial para a Folha

O livro, esse misterioso objeto de papel, tinta, cola e linha, vem atraindo muita atenção. Talvez não tanto a atenção de leitores, maiores ou menores de idade, que fazem as delícias de autores, editores e livreiros: enquanto estes profissionais lamentam a carência de leitores e leituras, o livro começa a atrair a atenção de uma multidão de estudiosos.
O mais novo membro da tribo aqui traduzido é Jason Epstein. Ele promete discutir -e de fato discute, esbanjando competência e bom humor- passado, presente e futuro do mercado editorial em "O Negócio do Livro". São pouco mais de 150 páginas muito agradáveis, cheias de referências e reflexões úteis.
A originalidade da obra vem do ponto de vista a partir do qual ela é escrita: seu autor fala do livro com a autoridade de quem viveu uma vida entre eles, não apenas como leitor, mas como profissional responsável pela transformação de textos em obras: Jason Epstein foi editor. Primeiro na Doubleday, depois na Random House e, tendo ainda em seu currículo a fundação da "New York Review of Books", ele sabe muito bem do que está falando: o mundo em extinção dos editores, livreiros e consumidores de livros tal como o conhecemos até hoje ou -no caso brasileiro- tal como lamentamos não o ter conhecido...
Do alto de sua escrivaninha nova-iorquina, Epstein descreve como esse mercado se foi construindo e transformando ao longo dos tempos. Cinquentões de hoje talvez ainda se lembrem daquelas livrarias pequenas e médias, com vendedores atentos e cultos, que recomendavam títulos e discutiam livros com seus não menos cultos e desapressados fregueses. Desaparecidas estas livrarias, a freguesia teve de transferir-se para as "megastores" contemporâneas, com funcionários uniformizados que vendem papéis pintados com tinta com os quais não têm lá muita intimidade.
No cenário da produção do livro, a paisagem também muda radicalmente. Epstein fala com uma certa nostalgia do tempo em que um editor de literatura era um profissional de quem se esperava que descobrisse escritores de público regular e constante ao longo dos anos. A essa geração de profissionais, contrapõe-se a necessidade contemporânea de os editores descobrirem (ou produzirem?) escritores de best-sellers, já que é muito cara a manutenção do estoque e mais caro ainda o aluguel de bons pontos comerciais. A pá de cal no velho regime é que já que o respeitável público aprendeu a trocar vertiginosamente de carro, por que deveria manter-se fiel a autores, obras ou gêneros?
Nesse ponto, "O Negócio do Livro" se encontra com outras perspectivas de estudos contemporâneos. A história do livro e da leitura, a sociologia e os estudos literários, todos unanimemente apontam o fato de que a grande transformação que Gutenberg operou no mundo dos livros e dos leitores foi a substituição da leitura intensiva pela extensiva. Ou seja, em vez de ler muitas vezes os mesmos livros, depois de Gutenberg, passou-se a ler uma vez só (e cada vez mais rapidinho...) muitos livros.
Esta obra de Epstein permite, na originalidade de seu ponto de vista, uma rara e muito bem-vinda reflexão sobre a articulação da infra e da superestrutura. Com ela aprendemos que discutir leitura e literatura, maior ou menor índice de leitores, é também discutir valor de uso e valor de troca, mercado imobiliário, volatilização e imobilização de capitais.
Nada mais oportuno em um país como o Brasil de hoje, onde grandes editoras são compradas pelo capital internacional, ao mesmo tempo em que programas de governo investem milhões na acertada compra de obras literárias para escolares. Somos um país de pouco mais de 2.000 livrarias para 170 milhões de habitantes; aqui -salvo os raros e honrosos best-sellers nacionais- a tiragem média de um título de um escritor conhecido não ultrapassa os 5.000 exemplares.
Mas antes que se imagine que o livro de Epstein (ou esta modesta resenha dele) engrossa o coro dos profetas da desgraça, vale a pena alertar para a armadilha simplória de considerar como essencial o que é histórico. Epstein nos ensina que livros foram, por um bom tempo, feitos, vendidos e lidos de um determinado jeito, e que esse jeito parece inviável hoje. Mas a inviabilidade deste modelito de mercado não equivale ao seu fim nem ao da leitura, menos ainda dos leitores, fiéis anjos-da-guarda de escribas e escritores.
Em seu fecho, "O Negócio do Livro" se pergunta se, emigrado para as voláteis malhas da net, o mercado do livro não está mudando de rosto sem mudar a fisionomia, como dizia o velho e livresco dom Casmurro.
Ao discutir livrarias virtuais e as experiências de escritores que vendem on-line sua produção (como fizeram no Brasil João Ubaldo e Mário Prata), Jason Epstein registra que esse novo movimento, afastando os intermediários que se multiplicaram na esteira de Gutenberg, pode resultar numa nova intimidade entre leitores e escritores, intimidade completamente ausente em um mercado de megalivrarias e dominado por megabest-sellers.
Podem-se temperar as instigantes reflexões que "O Negócio do Livro" suscita com uma sessão de vídeo: na açucarada comédia "Tem Mens@gem para Você", Meg Ryan e Tom Hanks vivem no technicolor de Hollywood o que Jason Epstein registra no preto-e-branco deste livro que, sem dúvida, enriquece muito a já consistente reflexão contemporânea sobre o mundo dos livros e dos leitores.


Marisa Lajolo é professora de teoria literária da Universidade Estadual de Campinas e autora, entre outros, de "O Preço da Leitura" (ed. Ática), em parceria com Regina Zilberman.


O Negócio do Livro
176 págs., R$ 20,00 de Jason Epstein. Trad. Zaida Maldonado. Editora Record (r. Argentina, 171, CEP 20921-380, RJ, tel. 0/xx/21/2585-2000).



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