São Paulo, domingo, 07 de agosto de 2005

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+ sociedade

Nem a ajuda financeira ao Oriente Médio nem a solução de conflitos na região mitigarão o terrorismo

O ressentimento e o Ocidente

GUSTAVO IOSCHPE
ESPECIAL PARA A FOLHA


O Ocidente tem várias culpas, mas nenhuma delas justifica o terrorismo. Procurar os próprios erros no confronto com terroristas é um péssimo início para uma jornada longa e dura
Há dois tipos de terrorismo. Um, de longa tradição histórica, é político. Usa o terrorismo para propagandear sua causa e inculcar o medo na população civil inimiga. Normalmente é utilizado por movimentos de libertação nacional. A associação desse terrorismo com o islamismo é errônea. Estão neles Hamas e os tchetchenos mas também IRA [Exército Republicano Irlandês], ETA [grupo separatista basco], o Exército de Libertação dos Tigres do Tamil Eelam [do Sri Lanka] e tantos outros.
A solução para o problema está nas tradicionais ações de polícia e inteligência mas também, onde possível, na negociação política. São grupos que florescem na ausência de um horizonte político para o atendimento de suas demandas.
[Karl von] Clausewitz [teórico militar da Prússia, 1780-1831] escreveu que a guerra é a continuação da política por outros meios. Quem não faz política e não tem Exército para guerrear recorre a bombas. Quando se vislumbra o horizonte político, esses grupos costumam depor suas armas e virar uma força partidária. Foi assim com a OLP [Organização para a Libertação da Palestina], está sendo assim com o Hamas e o IRA (via Sinn Fein). Esse é um terrorismo restrito às suas fronteiras ou, no máximo, alveja sua população-alvo em outros países. Não faria sentido ao Hamas atacar espanhóis ou ao ETA atingir ingleses, e eles não o fazem. É um problema local, portanto.
O outro tipo de terrorismo, mais recente, é civilizacional. Seu objetivo não é chamar atenção para algum conflito. Quando muito, usam-nos como desculpa. Como ressalta [o diretor do Centro Rainha Sofia para o Estudo da Violência] José Sanmartín no livro "El Terrorista", este se sente perpetuamente vitimado. Percepções, nesses casos, são mais importantes do que a realidade.
Sendo no Ocidente, os ataques desse tipo de terrorismo têm localização geográfica indeterminada. Só precisam acontecer em locais públicos de grande concentração de pessoas, já que o seu objetivo principal é difundir o pânico. Sua mensagem é: ninguém está seguro.
George W. Bush e seus asseclas, auxiliados por certa intelectualidade capenga, transformam esses ataques em epopéias maniqueístas; bem contra o mal, liberdade contra tirania etc. Eu já acho que os objetivos são mais rasteiros: uma tentativa inútil de vingança, o impotente revide daquele que se sente humilhado, uma tentativa de autoglorificação heróica de celerados tomados por uma crença deturpada.
Esse é um tipo de terrorismo ligado intimamente a algumas seitas religiosas, todas muçulmanas. As lideranças internacionais, sempre com preocupações políticas e politicamente corretas, insistem em relacionar o terrorismo à pobreza. Estudo recente de Alan Krueger e Jitka Maleckova sugere o contrário. Analisando dados de membros do [grupo islâmico] Hizbollah e de pesquisas de opinião pública nos territórios palestinos, o resultado foi que a participação em entidades terroristas estava associada a níveis sócioeconômicos e educacionais acima da média, e o apoio a essas iniciativas na população civil não caía nos substratos mais avantajados.

Minoria de raivosos
Dizer que esse terrorismo está associado ao islamismo não quer dizer, como Berlusconi, que o islamismo é uma religião terrorista ou inferior. Pelo contrário. Ela condena explicitamente, por exemplo, o suicídio, arma de grande número dos homens-bomba. Mas parece ser só no islamismo que uma minoria de raivosos desiludidos encontra o caldo de cultura para desenvolver seus explosivos. Africanos e latino-americanos são tão ou mais pobres que sauditas e palestinos (ou ingleses), mas não recorrem ao terrorismo.
O diferencial entre esses povos parece ser um horizonte histórico de glórias terrenas. Ao contrário de latino-americanos e africanos, a civilização muçulmana já foi um grande poder mundial. Ao contrário do judaísmo, o islã é uma religião expansionista. Ao contrário do asceta cristão, ao herói da fé muçulmana é prometido não apenas o paraíso, mas conquistas materiais em vida. O fracasso nesse mundo não é sinal da redenção futura, mas sim de que algo está errado.
Algumas seitas muçulmanas têm dificuldade em digerir sua condição de inferioridade econômico-militar frente ao Ocidente. Os infiéis deveriam ser subjugados pela jihad, mas, pelo contrário, vêm vencendo batalha após batalha, desde que Suleiman parou às portas de Viena em 1529. De lá pra cá, não só acabou a expansão geográfica da fé maometana como ela foi perdendo seus próprios territórios, até ter de ceder, ao Ocidente, Jerusalém, cidade de onde o profeta teria subido aos céus.
É verdade que os muçulmanos foram, historicamente, mais benevolentes com as minorias sob seu domínio (especialmente judeus e cristãos, povos do livro) do que a Europa cristã. Mas sempre estando no papel de dominadores, com os minoritários sendo "dhimmis", cidadãos de segunda categoria.
A revolta contra o mundo ocidental, depois da ascensão deste, parece ter sido controlada enquanto os dois blocos viviam em dimensões separadas, e os radicais muçulmanos podiam desprezar a decrepitude moral ocidental à distância. Com a abertura das fronteiras das últimas décadas, essa distância acabou, e o Ocidente infiltra-se no mundo muçulmano, ameaçando suas tradições, colocando em risco seu patriarcalismo, abrindo novos e sedutores horizontes. Para uma minoria, essa invasão parece ser um chamado às armas. Para uma minoria ainda menor, é razão que chega para matar e morrer.
Se esse diagnóstico estiver correto, o terrorismo islâmico não será controlado com ajuda financeira aos países árabes. Pelo contrário, seria apenas jogar sal na ferida. Tampouco será refreado com a solução de problemas políticos, quer sejam eles a ocupação dos palestinos ou do Iraque. (Não que essas ocupações não devam ser encerradas. Devem. Mas não eliminarão os "shahids", os mártires.) Também devemos imaginar que esses terroristas atacarão igualmente cidades ocidentais que foram contra a Guerra do Iraque. Paris e Berlim estão na mira. Ryad, Istanbul e Cairo, pontas-de-lança do Ocidente na região, também.
Só haverá vitória definitiva contra os terroristas em três cenários improváveis: que a nação muçulmana volte a ultrapassar o Ocidente, que extinga seu contato com ele, ou que se chegue a uma síntese entre ambas as culturas que apazigúe os medos existenciais dos que se sentem acuados e deslegitime os terroristas em seu meio. Até que isso aconteça, precisamos ter firmeza na defesa do nosso estilo de vida e encaminhar o assunto por meio das instituições de polícia e inteligência. O Ocidente tem várias culpas, mas nenhuma delas justifica o terrorismo. Procurar os próprios erros no confronto com terroristas genocidas é um péssimo início para uma jornada que já será naturalmente longa e dura.
Gustavo Ioschpe é mestre em economia internacional pela Universidade Yale (EUA) e autor de "A Ignorância Custa um Mundo" (Francis).

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