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São Paulo, domingo, 07 de setembro de 2003

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+ brasil 504 d.C.

O embaraço da forma

Ensaios reunidos no livro "Tempo de Clima", escritos ao longo dos anos 40, revelam a precocidade do antropólogo Ruy Coelho

Soa inexplicável que Ruy Coelho não pareça ter dado um grande salto; terá sido a falta de estímulo de um ambiente intelectual acanhado?

Luiz Costa Lima

A reunião dos artigos que Ruy Coelho (1920-90) escrevera para a revista "Clima" (1941-44) em "Tempo de Clima" (ed. Perspectiva) torna flagrante a falta de uma história da crítica no Brasil pós-década de 1930. Estabeleço essa demarcação curta porque, quanto ao passado próximo, dispomos do estudo de Roberto Acízelo sobre a perduração da retórica em plena segunda metade do século 19, dos ensaios de Antonio Candido sobre Sílvio Romero, de João Alexandre Barbosa sobre Veríssimo e do livro de José Luiz Lafetá sobre a crítica na década de 1930. A rigor, a falta é mais ampla: de uma obra, possivelmente coletiva, sobre o exercício da crítica a partir da revista "Niterói". Enquanto não se cumprir um ou outro projeto, continuaremos sujeitos ao esquecimento de figuras como Ruy Coelho, para não dizer de toda a revista de que fora colaborador.

Insanável lacuna
Ora, a impossibilidade generalizada de acesso aos números de "Clima" provoca uma insanável lacuna: já assinalou Leda Tenorio da Mata, em ""Clima" e "Noigandres" - A Crítica Literária Brasileira entre Dois Fogos" (Colóquio/Letras, janeiro-junho 1988), que "Clima" e "Invenção" (1962-6) foram os porta-vozes das duas correntes que têm dominado a compreensão do fenômeno literário entre nós: aquelas que, respectivamente, enfatizam os princípios de "formação" e de "transformação". Enquanto essa carência subsistir, "Tempo de Clima" terá a função complementar de divulgar as idéias de um dos melhores participantes da direção, que encontraria em Antonio Candido o nome mais marcante. Das duas partes que formam o livro -"Literatura e Arte" e "Cinema", além de uma pequena "nota política"-, a primeira é a decisiva. E, dentro dela, o ensaio, relativamente longo, sobre Proust. Não se estranhe, pois, que nele nos concentremos. Apontemos, de imediato, para duas surpresas que nos reserva: (a) sabendo-se que fora escrito quando o autor mal completara 20 anos, é não só espantosa a bibliografia com que lida, como a capacidade argumentativa que desenvolve. Por isso mesmo (b) soa inexplicável que, após sua publicação (1941), o autor não pareça haver dado algum grande salto intelectual. Terá sido porque, encaminhando-se para a antropologia, em que se doutoraria em 1954, deixou de ter na literatura seu interesse principal, como sucederia, nos anos de 1950, com Sérgio Buarque de Holanda? Ou a razão subsidiária terá sido a falta de estímulo de um ambiente intelectual acanhado? Na impossibilidade de examinar a hipótese, limito-me a considerar a surpresa positiva. Embora o ensaio destacado siga o formato habitual -vida, obra, idéias- já a primeira parte surpreende pela inteligência com que é feita. Ruy Coelho preocupava-se menos com uma contextualização convencional do que em dela captar os ingredientes sociopolíticos que se entranharam na formação e obra do romancista francês. Destaque-se o dado: depois da derrota e queda de Napoleão 3º, em 1871, a solução democrática adotada não era "propriamente (uma) forma fixa de organização", mas sim um "estado de coisas provisório". A formação de Proust, nascido em 1871, então se dá sob uma disposição política marcada pela transitoriedade. Mais ainda: se a aristocracia ainda mantinha algo de seu antigo prestígio, seu aburguesamento, bastante anterior, ou sua substituição pelos "nouveaux-riches" se mostrava nos próprios salões frequentados pelo frágil dândi doente. Dos antigos ideais, de proveniência romântica, só perdurava o culto da arte. A proposta da "obra de arte conjunta" de Wagner e o prestígio dos festivais de Bayreuth bem o dizem. É todo "um organismo social que agoniza". Dele, acrescenta Ruy Coelho, Proust será "o cronista da decadência". À agudeza da percepção socioistórica que assim o intérprete manifestava se acrescentaria sua vasta leitura psicanalítica. Ela tem por alvo iluminar a maneira, dolorosa, mas lúcida, masoquista, mas não menos criadora, como Proust manifestaria sua homossexualidade. Mostrando uma inteligência tão rara nas abordagens psicanalíticas da literatura, em instante algum o jovem intérprete encarará a obra proustiana como ilustração de complexos e recalques. Ao contrário, chegará a corrigir um dos intérpretes: a obra de Proust, em vez de promover a "domesticação do inconsciente", é sua liberadora. Pois ainda seríamos injustos com o autor se apenas atentássemos para sua riqueza de leituras. Faltaria acrescentar que não se põe como seu divulgador, mas é um interlocutor capaz de discordância. É então guiado por uma coragem inteligente que o levará, noutro artigo, a criticar "Os Condenados", de Oswald de Andrade. Assim, voltando ao "Proust", em vez da afirmação corriqueira que acentua o débito do romancista a Bergson, do alto de seus 20 anos, Ruy Coelho ressaltava a diferença da concepção bergsoniana do tempo da que prevalece na "Recherche". Aqui, o tempo é antes "espacializado" do que fluido, constituindo sedimentos psíquicos compartimentados. "Cada porção do passado, em lugar de ser assimilada, refletida, formar parte integrante do psiquismo, fica solta, sem emprego. Quando evocada, como um frasco destapado, faz reviver toda a situação emotiva que a animou, "reconhecer a camada psíquica a que pertence". Espacializado, o tempo assume em Proust um "interesse geológico".

Coragem problemática
Em síntese, informação abundante, capacidade argumentativa, ausência de servilismo, atenção para o jogo entre condicionantes históricas e relativa autonomia da modelagem da forma eram as marcas do jovem e brilhante autor. A coragem há pouco aludida volta a se explicitar no fim do ensaio, de modo entretanto problemático. Depois de examinar o quanto a conjuntura européia provocava a proximidade de formulações de Proust com as de Schopenhauer e Nietzsche, concluía: "O que é explicável em Proust, é inadmissível na época atual". O inadmissível era o apoliticismo do romancista. Independentemente de sua pouca idade, compreende-se o quanto a contemporaneidade da Segunda Guerra pesava em seu julgamento.
Pois uma maior distância temporal mostraria que a obra proustiana não era tão apolítica quanto seu próprio autor. Essa ressalva seria desconsiderável se não assinalasse, em um intérprete tão promissor, uma lacuna: o embaraço em surpreender a força formante da forma.
Como não há espaço para desenvolver a idéia, apenas aponto para outro sinal da mesma falha: o tratamento da poesia. O único artigo dedicado a um poeta é o que consagra ao português Antonio Botto. Sua escassez seria de somenos se o intérprete não se limitasse a reunir impressões que não penetram na configuração poemática, aliás bastante tradicional, de Botto. Seria essa menor sensibilidade ao poético não tradicional exclusiva de nosso crítico? Ou era um traço do grupo a que pertencia?


Luiz Costa Lima é ensaísta, crítico e professor da Universidade do Estado do Rio de Janeiro e da Pontifícia Universidade Católica (PUC-RJ). É autor de "Intervenções" (Edusp), entre outros. Escreve na seção "Brasil 504 d.C." (depois de Cabral).


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