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São Paulo, domingo, 07 de setembro de 2003

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A OBRA REFÉM DO HOMEM


PREVENÇÃO CONTRA AS POSIÇÕES POLÍTICAS DE PABLO NERUDA OBSCURECE UMA DAS POESIAS MAIS IMPORTANTES DO SÉCULO 20


por Juan José Saer

Os detratores de Pablo Neruda (1904-73) costumam recriminá-lo por várias motivos. O primeiro é a fluência torrencial de sua poesia, alegando, não sem razão, que ele escreveu além da conta, e negando-se, por princípio, a procurar o ouro na lama dentro dessa obra tão copiosa. O segundo diz respeito ao próprio conteúdo de sua obra, como se os temas políticos fossem a priori inadequados para a criação poética, ignorando ou fingindo ignorar que boa parte da melhor poesia de todo os tempos -Homero, Virgílio, Dante, Shakespeare, Quevedo, Darío, Vallejo- se alimenta deles.
Na realidade, os temas políticos ou históricos, presentes na obra de Neruda a partir da guerra da Espanha, ocupam de maneira exclusiva apenas alguns de seus livros, como, por exemplo, o final de "Terceira Residência", "Canto Geral", e alguns volumes circunstanciais. Estes respondem a momentos de recrudescimento da Guerra Fria, durante os quais, colhido pelas turbulências políticas de seu país, ele teve de emigrar e pôs sua pena a serviço do que considerava uma causa justa (com uma série de deploráveis incoerências e complacências em relação a seu próprio campo, nem mais nem menos graves que as de Borges, Nabokóv e alguns outros em relação ao campo oposto).
O mais provável é que esses detratores, julgando sem meios-tons as posições políticas do poeta, tenham-se negado a refletir seriamente sobre sua poesia. Que a obra de Neruda é sem dúvida uma das maiores do século 20, e não apenas em castelhano, é uma afirmação que, superadas as contingências históricas, não deveria espantar os leitores de poesia. É verdade que sua obra é muito farta, como foi a de Victor Hugo, com quem foi muitas vezes comparado, ou, com afinidades mais evidentes, como a de Pablo Picasso.
A explicação dessa fartura é menos tortuosa do que parece à primeira vista: simplesmente, há artistas que, quando passam a realizar uma obra, já resolveram interiormente muitos de seus problemas intrínsecos, enquanto outros os resolvem mediante a execução de sucessivas versões. O talento de Neruda é destes últimos, e é fácil observar, nas várias etapas de sua obra, uma organização em ciclos, na qual certas idéias poéticas exigem um desenvolvimento prolongado para, em variações e diversas tentativas, ir aos poucos chegando à maturidade. É o caso das "Odes Elementares".
Abandonando a construção épica, sistemática, do "Canto Geral" (que retomará mais tarde, nos anos 60, com "Canção de Gesta"), Neruda encontra nas odes uma liberdade expressiva e temática, uma fluência lírica e uma espécie de euforia que sugerem, depois de muitos conflitos, históricos e pessoais, uma reconciliação com o mundo. A simplicidade formal dessas odes e o prosaísmo deliberado de muitos de seus temas -a preguiça, o tomate, o caldo de peixe, a cebola, as meias etc.- fazem delas um antecessor imediato da chamada poesia coloquial latino-americana e, de certo modo, também da antipoesia, e em alguns momentos sua eficácia descritiva e a exatidão de suas metáforas e comparações ao evocar toda espécie de objetos cotidianos lembram a poesia de Francis Ponge. O ciclo das odes, que se desdobra em quatro livros publicados ao longo de um lustro -de 1954 a 1959-, é um vaguear poético que faz do mundo inteiro seu objeto, em que os temas vão aparecendo na imaginação do poeta à medida que as coisas, os lugares ou os homens que ele canta se apresentam à memória ou à experiência.
Neruda chamou essas odes de elementares por muitos motivos, aludindo, em primeiro lugar, à forma simples e direta em que, já desde o primeiro verso do conjunto, o discurso poético flui com total liberdade, e também em razão dos temas de que tratam. Mas por elementares devemos entender também materiais e podemos afirmar que é nessas odes que os pressupostos materialistas da poesia de Neruda atingem sua expressão mais acabada.
A matéria desmembrada e caótica de "Residência na Terra", reduzida às vezes a puro magma, recupera aqui, na plenitude da reconciliação, sua forma e seu sentido. Como diz a "Ode à Primavera": "Tudo/ busca/ tateando/ uma matéria/ que repita sua forma".
Na realidade, todas as grandes linhas da poesia nerudiana são retomadas nas odes, e nelas reaparecem também seus aspectos políticos e autobiográficos, relativizados no contexto de uma poesia sensorial que abarca ao mesmo tempo o imediato e o cósmico. A realidade vivida em seus múltiplos planos, leituras, amigos (e inimigos), louvores e repúdios, aceitações e rejeições, os grandes temas clássicos da poesia lírica, como a noite, o outono, a chuva, o passado, mas também as coisas mais despercebidas ou banais, como a magnífica "Ode a uma Castanha no Chão", tecem o tapete nuançado, pleno de contrastes e de súbitas iluminações, desse período tão singular da obra de Neruda. Alguns dos momentos mais eminentes de sua poesia, e da poesia do século 20, encontram-se em suas "Odes Elementares".

Juan José Saer é escritor e ensaísta argentino, autor de "O Enteado" (ed. Iluminuras). Escreve na seção "Autores", do Mais!.
Tradução de Sergio Molina.


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