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São Paulo, domingo, 07 de setembro de 2003

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Ideologias linguísticas

"Regras Práticas para Bem Escrever" e "A Norma Oculta" adotam posições opostas sobre o português

Sírio Possenti
especial para a Folha

Desde que o mundo é mundo, o outro estrangeiro, pobre, jovem é considerado bárbaro, isto é, o que não sabe falar. Alguns pensam que são os representantes do bom gosto e da razão, elegem profetas que, contudo, não seguem. Outros, por mais que falem, acreditam (foram levados a acreditar) que não sabem fazê-lo. "Regras Práticas para Bem Escrever", de Laudelino Freire, e "A Norma Oculta -Língua & Poder na Sociedade Brasileira", de Marcos Bagno, são livros que tratam dessas questões e defendem discursos opostos. O primeiro combate "o desamor da língua", já que "reduzidíssimo é o número dos que lhe não são indiferentes". Basicamente, contém 97 dicas (o autor protestaria contra essa palavra) que, ao contrário do que o título pode sugerir, servem apenas para "escrever correto". Sua hipótese é que se chega a isso com algum amor à língua, a leitura cotidiana de seu "vade mecum" e a frequentação de uma lista de autores -"os livros que enumero". O que mais chama atenção no pequeno livro é que: a) segue as regras que propõe (diferentemente dos que têm as mesmas concepções); b) defende posições e estruturas discutíveis (o francês é língua "diversíssima da nossa"; a ordem portuguesa seria VSO [verbo, sujeito, objeto]; passivas se fazem com "de", e não com "por"); c) contém equívocos banais de análise ("passar" seria objeto em "Eu vi passar dois brinquedos" -ora, o objeto é claramente a oração "passar dois brinquedos"). Trata-se, assim, de excelente documento de época (década de 1920), tanto sobre a representação da língua quanto da precariedade da teoria.

Norma imaginária
O livro de Bagno vai na direção inversa e também o faz na teoria e na prática. Combate o excessivo conservadorismo, por exemplo, e adota conscientemente construções como "será que tem algum jeito de resolver isso?" e "retiraram ela da vida social" -o que está longe do suposto "vale tudo". Defende que a chamada norma culta é mais imaginária que real (daí o jogo "norma oculta/culta"); analisa afirmações conservadoras na mídia sobre "língua correta" e as avalia com critérios das teorias variacionistas; apanha os críticos "errando", o que mostra que a língua é variável para todos os falantes e que certos juízos revelam mais preconceito que saber. Apresenta argumentos factuais sobre mudanças históricas de nossa língua (uma comparação entre os preceitos de Laudelino Freire e a "gramática" de Antonio Olinto, que o apresenta -e reedita-, valeria a pena). Um dos fulcros do livro é a discussão sobre norma (culta, erudita), prestígio, estigma etc., que poderia parecer terminológica, mas que de fato é teórica e ideológica ao mesmo tempo. Por fim, vale destacar comentários a "Modern Portuguese - A Reference Grammar" (Yale University Press), de Mario A. Perini, que apresenta a estudantes estrangeiros o português brasileiro de hoje. Bagno reivindica, coerente com sua posição neste e em outros trabalhos, uma gramática assim para os brasileiros. Os dois livros retomam doutrinas efetivamente opostas, nos fatos e na concepção do que seja "norma padrão". Tal repetição não os desmerece. O enunciado é raro, como disse Foucault, e o que importa é compreender por que livros assim aparecem ou reaparecem. Uma hipótese para o caso: também no campo das ideologias (linguísticas) há dois Brasis, e, nos últimos tempos, temos assistido a um reaquecimento de posições conservadoras e ao crescimento e alguma divulgação de estudos do português do Brasil "como ele é".

Ponto fraco
Há algumas décadas, o alvo de Freire eram apenas falantes supostamente desleixados. Hoje, sua concepção enfrenta outras teorias sobre o que seria saber falar e sobre o português do Brasil. Um livro como o de Bagno, pela teoria adotada, pega os adversários em seu ponto mais fraco, ao mostrar que o português ao qual dizem que são devotados não é o que eles mesmos praticam (nenhum brasileiro culto será adepto da ordem sintática proposta e empregada por Freire em casos como "quando de gramática se não faz caso" e "e a linguagem em que se ela vaza"). Línguas mudam. E assim os padrões. É principalmente nesse confronto que os livros fazem sentido, não tanto por eventuais qualidades ou defeitos.
Seria interessante que a polêmica se tornasse mais conhecida e chegasse à escola, aos meios de comunicação e aos cidadãos cultos em geral, que, a rigor, desconhecem solenemente, em mais de um sentido, um dos lados da controvérsia.


Sírio Possenti é professor no departamento de linguística da Universidade Estadual de Campinas. É autor de "Os Limites do Discurso" (Criar Edições), "Os Humores da Língua" (Mercado de Letras) e "Discurso, Estilo e Subjetividade" (Martins Fontes).

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