UOL


São Paulo, domingo, 07 de setembro de 2003

Texto Anterior | Índice

Ponto de fuga

A paixão e a análise

O século 19 teve a nostalgia da paixão. As pessoas viajavam de trem, regulavam pelo relógio o trabalho e o lazer, estabeleciam uma moral da família. Os românticos, então, escolheram a transgressão pelo sentimento. Inconformados com a mediocridade ordenada, traçaram vidas de través, em que eram, ao mesmo tempo, vítimas e heróis. As outras pessoas, as que usavam guarda-chuvas e comiam purê de batatas, viviam o transtorno dos afetos por meios fictícios, dentro da experiência artística e, sobretudo, dentro da ópera.
Ao escrever "Tristão e Isolda", Wagner condensou, para esse mundo, a paixão amorosa numa liga incandescente e irredutível, cuja intensidade, provocada pela música, criava seu próprio destino, contra e apesar de todos. A fúria amorosa é sem explicação, existindo em si e por si: Isolda e Tristão fundem-se num só, no apogeu de uma experiência que transcende a mediocridade humana e que se eleva a mistérios indizíveis. Esse é o ponto em que a veemência romântica parece mais incomodar: ela assume o inexplicável como inexplicável.
A confiança que as transformações modernas tiveram em si mesmas se apoiou em procedimentos interpretativos que acreditavam dissecar e compreender tudo. As dores da existência, os enigmas amorosos, metamorfosearam-se em patologia, passível de diagnóstico e de tratamento. Hoje, com a falência da modernidade, essas interpretações também faliram.
Os afetos inescrutáveis, que fascinavam os românticos, voltaram a provar sua opacidade.
Superego - Freud, cujo nome, Sigmund, é o de um herói de Wagner, quis pôr ordem nos desequilíbrios afetivos: o que seria de Tristão e Isolda em seu divã? Nem um, nem outro, nem os dois. O amor deles não caberia no consultório. Ali dentro, fariam tudo explodir. Foi o que ocorreu no Theatro Municipal do Rio de Janeiro, onde Gerald Thomas decidiu reunir Tristão, Isolda e o dr. Sigmund.
Sem saiote nem espada, Tristão, em roupas de nossos dias, canta sua morte como negação suprema de qualquer outro consolo ou de qualquer outra saída que não sejam aquelas permitidas pelo amor absorvente. Ao mostrar-se num casaco enorme e amarfanhado, Isolda surge como a menos heróica, como a menos principesca, mas como a mais humana e frágil de todas.
Quando a música celebra, exaltada, a explosão do amor, Freud joga suas anotações para o alto, contagiado pelo entusiasmo. O pó da cocaína cai em chuva, evoluindo no ar, paraíso artificial como é o teatro, a ópera, o amor de Tristão e de Isolda. Maior que as análises, no palco do Rio, com uma pulsação renovada e viva, Wagner venceu.
Liebesnacht - Trazer uma ópera que transcorre no passado para um período recente se tornou uma banalidade nos teatros europeus desde, pelo menos, os anos de 1970. Patrice Chéreau deu um exemplo da força de tais escolhas na estupenda "Tetralogia", que montou em Bayreuth para o centenário do "Ring", de Richard Wagner, em 1976 (pode ser vista em DVD, Philips). Não houve modismo no "Tristão" do Rio de Janeiro. O rigor e a coerência da montagem respeitaram as menores inflexões das palavras e dos sons, criando um fluxo de intensidades, renovando a síntese da obra de arte total sonhada por Wagner.
Os judeus e também Nietzsche, que são parte embaraçosa e difícil da história wagneriana, surgiram no palco, incorporando-se à obra, sublinhando ainda mais sua complexidade. Espectadores incertos, um desfile indiferente de moda, apareciam no fundo, em segundo plano. Diante deles, para além do efêmero, Tristão se funde em Isolda. A conjunção desaparece: não Tristão e Isolda, mas Tristão-Isolda. Essa verdade que só se dá com a música e com o teatro estava ali, mágica, no Rio. Ela seduzia tanto que as cinco horas de duração do espetáculo passaram como cinco minutos.
Ponteiros - A interpretação musical no Rio de Janeiro foi de grande nível. Gerald Thomas conseguiu que cantores de ópera representassem como atores. "Tristão e Isolda" é uma ópera extática, da espera em conflito com a eternidade. Mas é espetáculo, e só se entrega, de fato, em cena.


Jorge Coli é historiador da arte.
E-mail: jorgecoli@uol.com.br


Texto Anterior: lançamentos
Índice

UOL
Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.