São Paulo, domingo, 07 de outubro de 2007

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Dramas anônimos

Um dos grandes escritores do Holocausto, Primo Levi sofreu resistência em Israel por não criar heróis

MERON RAPOPORT

Por muito tempo as obras de Levi não encontraram editores em Jerusalém. Ele não foi nem sequer convidado para o julgamento de Eichmann.
A descoberta do texto de Primo Levi que se lê aqui não é resultado de uma longa e penosa pesquisa. O "Depoimento do Dr. Primo Levi, morador de Turim, C. Vittorio, 67" estava esquecido havia 47 anos no arquivo de Yad Vashem, e no alto do documento se vê o carimbo em hebraico e em inglês "Central Archives for the Disaster and the Heroism" [Arquivos Centrais sobre o Desastre e o Heroísmo].
"Disaster" era uma desastrada tentativa de transpor para o inglês o intraduzível Shoah. E Yad Vashem é, precisamente, o mais importante centro de documentação do Shoah.
Certo dia, uma estudiosa israelense, Margalit Shlain, ao preparar uma comunicação sobre "A Percepção da Obra de Primo Levi em Israel", teve a idéia de visitar o arquivo e assim encontrou o depoimento de Levi, lavrado em Roma no dia 14 de junho de 1960 e incorporado ao acervo de Yad Vashem no mesmo ano.
Levi o teria confiado aos representantes da magistratura israelense que estavam trabalhando na instrução do processo contra Adolf Eichmann, idealizador da "solução final do problema judaico", capturado na Argentina por agentes do Mossad em 1960 (o primeiro-ministro David Ben Gurion fez o anúncio da captura à Knesset em 23 de maio daquele ano).
Segundo Shlain, o testemunho de Levi e mais outros 50 depoimentos de judeus italianos foram repassados aos gabinetes da Procuradoria em Jerusalém, mas Levi não foi chamado a testemunhar diante do tribunal que condenou Eichmann à morte [o relato e a interpretação mais famosa do julgamento estão em "Eichmann em Jerusalém", de Hannah Arendt, lançado no Brasil pela Companhia das Letras].
O processo de Eichmann não foi um simples ato judiciário. Nos primeiros anos de existência do Estado de Israel, falava-se pouquíssimo da Shoah.

Desmaio
O julgamento, transmitido ao vivo pelo rádio durante meses, era, para Ben Gurion, uma ótima ocasião para apresentar o Estado judaico como o herdeiro de um judaísmo ferido de morte, herdeiro que no entanto aprendeu a lição (nunca mais Auschwitz e nunca mais vida em diáspora), e para narrar o Shoah ao público israelense.
Foi esse o motivo que fez o procurador-geral Gideon Hausner pensar em convocar como testemunhas indivíduos que fossem conhecidos do público. Um deles era Yehiel Dinur-Feiner, sobrevivente de Auschwitz que assinava com o pseudônimo Ka-Tzetnik seus livros um tanto escandalosos, com cenas muito cruas sobre os horrores dos campos de extermínio, alguém muito popular nos anos 1950 em Israel.
O escritor desmaiou no banco das testemunhas após ter pronunciado palavras que ficariam impressas na memória dos israelenses: "Venho de outro planeta, do planeta das cinzas que se chama Auschwitz".
Levi não estava em Jerusalém. Lá, ele era desconhecido e assim permaneceu quase até sua morte. Em 1968, fez uma visita a Israel com uma delegação de "partigiani" de Turim.
O historiador Isaac Garti esteve com ele em Jerusalém. Garti havia lido "É Isto um Homem?" em italiano, ficara comovido e queria traduzi-lo. "Tinha contatado várias editoras, mas todas recusaram o livro.
Diziam-lhe: "Mais um livro sobre o Shoah? Já temos muitos. Ninguém o comprará"." Levi, relembra Garti, sorria dizendo que entendia perfeitamente.
Um eco desse encontro com a incompreensão de sua obra em Israel aparece no prefácio que escreveu para a tradução de "A Trégua", seu primeiro livro a sair em hebraico, em 1979.
"Estou muito feliz e orgulhoso de que minha "Trégua" venha à luz em Israel, muitos anos depois de seu nascimento na Itália. Não é estranho que meu primeiro livro, "É Isto um Homem?", não tenha sido traduzido em hebraico. Ele é o diário de um campo de concentração, assunto já muito conhecido."
Já "A Trégua", dizia, narrava uma história inédita, motivo pelo qual era razoável esperar por seu sucesso. A esperança foi frustrada. Em sua primeira edição em hebraico, "A Trégua" vendeu 500 exemplares.
"É Isto um Homem?" foi publicado em Israel, na tradução de Garti, somente um ano após a morte de Levi. Por que tanto atraso? Ariel Rathaus, professor de literatura italiana na Universidade de Jerusalém, diz que Israel segue os EUA. Quando lá se começou a falar de Levi (em meados dos anos 1980), Israel também se deu conta de sua existência.
Nem todos estão de acordo. Dan Miron, respeitado crítico literário, escreveu que o establishment israelense não podia aceitar Levi porque seu modo de conceber o Shoah era contrário à maneira como Israel queria ver aquele período.
A Auschwitz de Levi, diz Miron, não era "um outro planeta", mas "a continuação e a manifestação da normal conduta humana". Israel, ao contrário, queria tratar o Shoah como um acontecimento único, razão pela qual "o melhor escritor da Shoah" era ignorado pelos estudantes israelenses.
Também para Margalit Shlain, Levi não foi ignorado por acaso. Israel buscava heróis, e Levi não era um herói. A literatura israelense sobre o Shoah pendia ao patético, e Levi observava Auschwitz com um olhar quase calmo. Para completar, não era sionista.
Hoje as coisas mudaram: nos colégios os relatos de Levi são estudados, nas universidades se escrevem teses sobre sua obra. Até o premiê Olmert citou Levi em um discurso. No entanto o congresso para o qual Shlain escreveu sua comunicação sobre as obras de Levi ocorreu na Bélgica, e não em Israel, e mesmo lá o texto que pode ser lido aqui só foi mencionado, e não citado na íntegra.
Para Primo Levi, a estrada em Israel ainda é longa.


A íntegra deste texto saiu no "La Repubblica".


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