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O filho de Satã
Em "O Castelo na Floresta", que sai no Brasil em dezembro, o romancista americano Norman Mailer investiga a origem do mal na infância de Hitler
MANUEL CARCASSONE
Pugilista número um
do cenário literário
norte-americano,
Norman Mailer, 84,
iniciou um ciclo de
romances dedicado à infância e
à adolescência de Hitler. "Felizmente, existe pouca documentação sobre Adolf criança.
Isso me toma menos tempo.
Precisei fazer um trabalho de
romancista", diz, sorrindo,
Mailer, cujos olhos azuis vasculham seu interlocutor com
franqueza comovente.
O primeiro volume desse
afresco, intitulado "The Castle
in the Forest" [O Castelo na
Floresta, com lançamento no
Brasil previsto para dezembro
pela Companhia das Letras],
saiu nos EUA no iníco do ano.
Assim, depois de Marilyn
Monroe, Muhammad Ali, a família Kennedy, Picasso, Lee
Harvey Oswald e até mesmo
Jesus Cristo (em "O Evangelho
segundo o Filho"), Norman
Mailer escolheu enfrentar em
combate desigual esse enigma
particular: quando e como o
mal teria começado a se envolver com o pequeno Adolf, nascido em abril de 1889 e cuja infância reconstitui nos menores
detalhes.
Ele se explica na entrevista
que concedeu à "Magazine Littéraire" em Provincetown, cidade balneária de Massachusetts, no ponto extremo de Cape Cod, onde reside.
PERGUNTA - Em "O Castelo na Floresta", cujo narrador é um demônio
menor disfarçado de oficial nazista e
assistente de Himmler, acompanhamos o nascimento de Adolf e também o tratamento violento infligido
por seu pai, Alois (1837-1903), a
seus filhos. Seu tema é a infância de
um chefe ou o envelhecimento de
um patriarca?
NORMAN MAILER - Alois é personagem central. Inicialmente,
pensei em começar o trabalho
com um ciclo de romances no
qual Hitler teria 3 anos de idade
no ponto de partida, mas depois, a conselho de meu editor,
fui retornando por sua árvore
genealógica, em um volume.
Tive grande prazer em lançar
luz sobre a personalidade de
Alois, ao mesmo tempo fascinante, humano, fraco e poderoso; um dos prazeres calmos de
ser romancista é que podemos
passar tempo com certas pessoas com as quais não gostaríamos de conviver na vida real.
A morte de seu filho Edmund
o deixa devastado, e ele não se
recupera do golpe; enfatizo o
papel de Adolf, que, acometido
de sarampo, doença contagiosa, beijava seu irmão menor.
Alois é um personagem ao
mesmo tempo complexo e comum, ainda mais denso pelo fato de ser comum. Aliás, não explico a vilania de Hitler pela determinação genética, embora
me divirta tecendo conjecturas
sobre a influência do incesto do
qual Hitler teria nascido.
Alois era filho ilegítimo de
uma mulher chamada Maria
Anna Schiklgruber, e seu pai
provável era também o avô de
Klara Pölzl, com quem Alois se
casaria em seu terceiro casamento. Ela se tornaria a mãe de
Hitler. Existe um outro boato
segundo o qual o verdadeiro pai
de Alois teria sido judeu.
PERGUNTA - No final de sua vida,
esse funcionário austro-húngaro
tão disciplinado escapou de toda categoria social.
MAILER - Sim, ele é um marginal, sem raízes, um desclassificado obcecado pela ordem.
Também eu, escritor que saiu
do Exército aos 25 anos, sou um
marginal que gosta dos marginais. Sinto afeto por esse tipo
de personagem.
PERGUNTA - Hitler também era
marginal?
MAILER - Oh, não! Não se pode
dizer isso. Ele era fraco: aos 16
anos, era um desastre afetivo,
um fracasso total.
Uma das coisas interessantes, uma das razões que me fazem pensar que Hitler é a resposta a Jesus Cristo, sua contrapartida em réplica satânica,
seria que não existe explicação
humana para o horror do que
Hitler fez. A sua negrura.
Stálin podemos explicar: ele
veio de uma família terrível, tinha a matança no sangue, o hábito de abater seus rivais. Hitler
seria mais um fantoche histérico, vaidoso, satanizado e fraco.
Mas possuía uma espécie de genialidade política. Digo a você:
ele foi escolhido e recrutado
pelo Diabo!
Tenho uma teoria a esse respeito. Por mais poderoso que
Deus possa ser, ele não controla a história, porque ela é uma
mecânica complexa demais.
Deus propõe, a história dispõe.
Deus e o Diabo podem influenciar a história, mas seus limites
são alcançados rapidamente.
PERGUNTA - O sr. acredita realmente na natureza satânica de Adolf Hitler, o que explicaria em parte esse
núcleo de trevas dentro dele?
MAILER - Acredito, perfeita e seriamente. Escrevi esse livro
num país em que os intelectuais freqüentemente são laicos, ateus, em nenhum momento imaginando que a religião possa ser tema de conversas para alguém, exceto para os
extremistas. O drama é que nós
a abandonamos à nossa própria
vertente fundamentalista!
Para os outros, Deus está fora
de moda, e o Diabo é ridículo.
Eu, que durante tanto tempo
fui cético, tenho outro ponto de
vista: saímos da Era das Luzes,
que durou desde o fim da Idade
Média, atravessou a Renascença e deu ao homem o papel de
protagonista, levando, mais
tarde, ao nascimento do indivíduo moderno. Queremos destronar Deus e o Diabo.
Fui criticado por ter empregado esse demônio manipulador, narrador mentiroso, mas
acredito seriamente em minha
tese. Não é um artifício literário. O Diabo não veste uniforme nem tem chifres, não ataca
as pessoas enquanto dormem
-pelo contrário, ele tem tudo
do funcionário vitimado pela
burocracia, de recursos limitados, que ignora as causas.
O demônio aprende com os
humanos, e não o contrário.
PERGUNTA - Apesar disso, seu demônio assiste à concepção de Adolf
Hitler, um momento erótico e cômico entre Alois e Klara.
MAILER - Tente pensar em alguma das cenas mais eróticas ou
desenfreadas de sua própria vida sexual -você pode realmente afirmar que o Diabo não
exerceu um papel nelas? É assim que eu às vezes falo em
conferências: imagine o silêncio constrangido, perplexo, e a
pergunta que paira no ar: "E se
Norman Mailer tinha razão?".
Se existe Deus, então tudo é
possível, até mesmo o Diabo.
PERGUNTA - O sr. crê em Deus ou
numa religião monoteísta?
MAILER - A piedade monoteísta
me ofende ou, pelo menos, me
ofendeu por muito tempo. Por
outro lado, eu gostaria de ser
capaz de comentar filosoficamente as noções do bem e do
mal, de Deus e de seu oposto.
Acredito que somos criaturas
que escapamos mais ou menos
do controle de nosso criador,
como crianças que conquistam
sua independência. Falo com
conhecimento de causa: sou pai
de nove filhos e avô de 11 netos.
PERGUNTA - "O Castelo na Floresta" é um romance que faz uso de sua
própria experiência como pai?
MAILER - Não. Nunca tive com
meus filhos as relações que
Alois tinha com os dele. O charme de Alois consiste em escapar do papel de pai e de marido.
Em termos feministas de hoje,
diríamos que ele é um "machista desgraçado". Sou bem mais
tolerante e, com certeza, mais
privilegiado que Alois.
PERGUNTA - O judaísmo influiu sobre a escolha de Hitler para um livro
de ficção, e, sobretudo, para o tratamento dado a ele?
MAILER - Não posso responder.
Quando começo a escrever um
projeto como esse, não me penso dentro desta ou daquela
identidade.
Passei minha vida tentando
decifrar o enigma dos cristãos.
"O Castelo na Floresta" é mais
uma tentativa nesse sentido.
PERGUNTA - Sinto muito, mas insisto na pergunta.
MAILER - Quando eu tinha 9
anos de idade, antes da chegada
de Hitler ao poder, em 1933,
minha mãe nos disse: "Esse homem vai nos matar. Vai nos exterminar". Ela pressentiu as
coisas muito melhor do que
muitas outras pessoas. Cresci
com a idéia de que Hitler seria
meu assassino. Isso serve?
PERGUNTA - Por que escolheu fazer
longas digressões pela história russa
e da Europa Central durante o romance -a coroação de Nicolau 2º e
o assassinato de Elizabeth [imperatriz austro-húngara]?
MAILER - Algumas das pessoas
próximas a mim, entre elas minha mulher, me criticaram por
isso. Minha resposta é: sigo
meu instinto de romancista.
Posso ter me enganado.
Penso em desenvolver a Rússia no próximo volume, se eu
viver até lá. Pensei, também,
que o leitor deveria enxergar as
manipulações do Diabo em escala maior do que o drama íntimo representado na Áustria em
torno dos Hitler. O assassinato
de Elizabeth da Áustria -que
desperdício, que mediocridade
satânica!
PERGUNTA - O sr. pensa no pacto
germano-soviético como segunda
etapa?
MAILER - Sim, vou desenvolvê-lo. O problema é o comprimento do livro. Eu gostaria de mostrar o encontro mítico entre Hitler e Stálin ou, melhor dizendo, imaginá-lo. Poderíamos
sonhar com um tema melhor?
PERGUNTA - Qual o papel do tema
do incesto na idéia que o sr. faz da
família Hitler?
MAILER - Você conhece meu
amigo Jean Malaquais [1908-98]? Era um escritor perfeccionista, capaz de passar horas observando seu sujeito. E eu lhe
dizia: "Mas para que quebrar a
cabeça com isso? Nem por isso
você será um escritor melhor".
Ele respondia: "Quero saber a
verdade. Ela está na ponta de
minha caneta". Quanto mais eu
escrevia sobre o incesto, mais
eu compreendia esse tema.
Adotei a voz de Himmler, que
comenta a tradição camponesa
do incesto nos vilarejos, por ignorância e por consangüinidade. Por que não? Isso lança luz
sobre as áreas selvagens e não
exploradas da psique de Hitler.
O Führer mandou destruir o
povoado natal de seu pai. Ele
não comentou nada, mas apagou tudo. O rumor sobre seu judaísmo vem do fato de que sua
avó trabalhava como empregada de uma fazenda e teria sido
engravidada por um judeu.
PERGUNTA - Como foi a pesquisa?
MAILER - Passei pelo menos
dois anos lendo vários livros.
Infelizmente, devido à idade,
hoje levo semanas para ler um
livro. Não se sabe muito sobre a
infância de Adolf, desde seu
nascimento até a morte de seu
pai. Se eu levar o empreendimento romanesco até o fim, se
ainda tiver forças para isso, terei que ler estantes inteiras!
Quanto mais avançar, mais
difícil será.
PERGUNTA - O sr. tem realmente a
impressão de compreender melhor
o mistério de Hitler?
MAILER - Acredito, de fato, que
sou um dos poucos a compreendê-lo. Correndo o risco
de chocar, chegaria a dizer que,
se acreditamos em Jesus, filho
de Deus, então por que não em
Hitler, filho do Diabo?
Esta entrevista saiu na "Magazine Littéraire".
Tradução de Clara Allain .
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