São Paulo, domingo, 07 de outubro de 2007

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O filho de Satã

Em "O Castelo na Floresta", que sai no Brasil em dezembro, o romancista americano Norman Mailer investiga a origem do mal na infância de Hitler

MANUEL CARCASSONE

Pugilista número um do cenário literário norte-americano, Norman Mailer, 84, iniciou um ciclo de romances dedicado à infância e à adolescência de Hitler. "Felizmente, existe pouca documentação sobre Adolf criança. Isso me toma menos tempo.
Precisei fazer um trabalho de romancista", diz, sorrindo, Mailer, cujos olhos azuis vasculham seu interlocutor com franqueza comovente.
O primeiro volume desse afresco, intitulado "The Castle in the Forest" [O Castelo na Floresta, com lançamento no Brasil previsto para dezembro pela Companhia das Letras], saiu nos EUA no iníco do ano.
Assim, depois de Marilyn Monroe, Muhammad Ali, a família Kennedy, Picasso, Lee Harvey Oswald e até mesmo Jesus Cristo (em "O Evangelho segundo o Filho"), Norman Mailer escolheu enfrentar em combate desigual esse enigma particular: quando e como o mal teria começado a se envolver com o pequeno Adolf, nascido em abril de 1889 e cuja infância reconstitui nos menores detalhes.
Ele se explica na entrevista que concedeu à "Magazine Littéraire" em Provincetown, cidade balneária de Massachusetts, no ponto extremo de Cape Cod, onde reside.  

PERGUNTA - Em "O Castelo na Floresta", cujo narrador é um demônio menor disfarçado de oficial nazista e assistente de Himmler, acompanhamos o nascimento de Adolf e também o tratamento violento infligido por seu pai, Alois (1837-1903), a seus filhos. Seu tema é a infância de um chefe ou o envelhecimento de um patriarca?
NORMAN MAILER
- Alois é personagem central. Inicialmente, pensei em começar o trabalho com um ciclo de romances no qual Hitler teria 3 anos de idade no ponto de partida, mas depois, a conselho de meu editor, fui retornando por sua árvore genealógica, em um volume.
Tive grande prazer em lançar luz sobre a personalidade de Alois, ao mesmo tempo fascinante, humano, fraco e poderoso; um dos prazeres calmos de ser romancista é que podemos passar tempo com certas pessoas com as quais não gostaríamos de conviver na vida real. A morte de seu filho Edmund o deixa devastado, e ele não se recupera do golpe; enfatizo o papel de Adolf, que, acometido de sarampo, doença contagiosa, beijava seu irmão menor.
Alois é um personagem ao mesmo tempo complexo e comum, ainda mais denso pelo fato de ser comum. Aliás, não explico a vilania de Hitler pela determinação genética, embora me divirta tecendo conjecturas sobre a influência do incesto do qual Hitler teria nascido.
Alois era filho ilegítimo de uma mulher chamada Maria Anna Schiklgruber, e seu pai provável era também o avô de Klara Pölzl, com quem Alois se casaria em seu terceiro casamento. Ela se tornaria a mãe de Hitler. Existe um outro boato segundo o qual o verdadeiro pai de Alois teria sido judeu.

PERGUNTA - No final de sua vida, esse funcionário austro-húngaro tão disciplinado escapou de toda categoria social.
MAILER
- Sim, ele é um marginal, sem raízes, um desclassificado obcecado pela ordem. Também eu, escritor que saiu do Exército aos 25 anos, sou um marginal que gosta dos marginais. Sinto afeto por esse tipo de personagem.

PERGUNTA - Hitler também era marginal?
MAILER
- Oh, não! Não se pode dizer isso. Ele era fraco: aos 16 anos, era um desastre afetivo, um fracasso total.
Uma das coisas interessantes, uma das razões que me fazem pensar que Hitler é a resposta a Jesus Cristo, sua contrapartida em réplica satânica, seria que não existe explicação humana para o horror do que Hitler fez. A sua negrura.
Stálin podemos explicar: ele veio de uma família terrível, tinha a matança no sangue, o hábito de abater seus rivais. Hitler seria mais um fantoche histérico, vaidoso, satanizado e fraco. Mas possuía uma espécie de genialidade política. Digo a você: ele foi escolhido e recrutado pelo Diabo!
Tenho uma teoria a esse respeito. Por mais poderoso que Deus possa ser, ele não controla a história, porque ela é uma mecânica complexa demais. Deus propõe, a história dispõe. Deus e o Diabo podem influenciar a história, mas seus limites são alcançados rapidamente.

PERGUNTA - O sr. acredita realmente na natureza satânica de Adolf Hitler, o que explicaria em parte esse núcleo de trevas dentro dele?
MAILER
- Acredito, perfeita e seriamente. Escrevi esse livro num país em que os intelectuais freqüentemente são laicos, ateus, em nenhum momento imaginando que a religião possa ser tema de conversas para alguém, exceto para os extremistas. O drama é que nós a abandonamos à nossa própria vertente fundamentalista!
Para os outros, Deus está fora de moda, e o Diabo é ridículo. Eu, que durante tanto tempo fui cético, tenho outro ponto de vista: saímos da Era das Luzes, que durou desde o fim da Idade Média, atravessou a Renascença e deu ao homem o papel de protagonista, levando, mais tarde, ao nascimento do indivíduo moderno. Queremos destronar Deus e o Diabo.
Fui criticado por ter empregado esse demônio manipulador, narrador mentiroso, mas acredito seriamente em minha tese. Não é um artifício literário. O Diabo não veste uniforme nem tem chifres, não ataca as pessoas enquanto dormem -pelo contrário, ele tem tudo do funcionário vitimado pela burocracia, de recursos limitados, que ignora as causas.
O demônio aprende com os humanos, e não o contrário.

PERGUNTA - Apesar disso, seu demônio assiste à concepção de Adolf Hitler, um momento erótico e cômico entre Alois e Klara.
MAILER
- Tente pensar em alguma das cenas mais eróticas ou desenfreadas de sua própria vida sexual -você pode realmente afirmar que o Diabo não exerceu um papel nelas? É assim que eu às vezes falo em conferências: imagine o silêncio constrangido, perplexo, e a pergunta que paira no ar: "E se Norman Mailer tinha razão?". Se existe Deus, então tudo é possível, até mesmo o Diabo.

PERGUNTA - O sr. crê em Deus ou numa religião monoteísta?
MAILER
- A piedade monoteísta me ofende ou, pelo menos, me ofendeu por muito tempo. Por outro lado, eu gostaria de ser capaz de comentar filosoficamente as noções do bem e do mal, de Deus e de seu oposto.
Acredito que somos criaturas que escapamos mais ou menos do controle de nosso criador, como crianças que conquistam sua independência. Falo com conhecimento de causa: sou pai de nove filhos e avô de 11 netos.

PERGUNTA - "O Castelo na Floresta" é um romance que faz uso de sua própria experiência como pai?
MAILER
- Não. Nunca tive com meus filhos as relações que Alois tinha com os dele. O charme de Alois consiste em escapar do papel de pai e de marido. Em termos feministas de hoje, diríamos que ele é um "machista desgraçado". Sou bem mais tolerante e, com certeza, mais privilegiado que Alois.

PERGUNTA - O judaísmo influiu sobre a escolha de Hitler para um livro de ficção, e, sobretudo, para o tratamento dado a ele?
MAILER
- Não posso responder. Quando começo a escrever um projeto como esse, não me penso dentro desta ou daquela identidade. Passei minha vida tentando decifrar o enigma dos cristãos. "O Castelo na Floresta" é mais uma tentativa nesse sentido.

PERGUNTA - Sinto muito, mas insisto na pergunta.
MAILER
- Quando eu tinha 9 anos de idade, antes da chegada de Hitler ao poder, em 1933, minha mãe nos disse: "Esse homem vai nos matar. Vai nos exterminar". Ela pressentiu as coisas muito melhor do que muitas outras pessoas. Cresci com a idéia de que Hitler seria meu assassino. Isso serve?

PERGUNTA - Por que escolheu fazer longas digressões pela história russa e da Europa Central durante o romance -a coroação de Nicolau 2º e o assassinato de Elizabeth [imperatriz austro-húngara]?
MAILER
- Algumas das pessoas próximas a mim, entre elas minha mulher, me criticaram por isso. Minha resposta é: sigo meu instinto de romancista. Posso ter me enganado.
Penso em desenvolver a Rússia no próximo volume, se eu viver até lá. Pensei, também, que o leitor deveria enxergar as manipulações do Diabo em escala maior do que o drama íntimo representado na Áustria em torno dos Hitler. O assassinato de Elizabeth da Áustria -que desperdício, que mediocridade satânica!

PERGUNTA - O sr. pensa no pacto germano-soviético como segunda etapa?
MAILER
- Sim, vou desenvolvê-lo. O problema é o comprimento do livro. Eu gostaria de mostrar o encontro mítico entre Hitler e Stálin ou, melhor dizendo, imaginá-lo. Poderíamos sonhar com um tema melhor?

PERGUNTA - Qual o papel do tema do incesto na idéia que o sr. faz da família Hitler?
MAILER
- Você conhece meu amigo Jean Malaquais [1908-98]? Era um escritor perfeccionista, capaz de passar horas observando seu sujeito. E eu lhe dizia: "Mas para que quebrar a cabeça com isso? Nem por isso você será um escritor melhor".
Ele respondia: "Quero saber a verdade. Ela está na ponta de minha caneta". Quanto mais eu escrevia sobre o incesto, mais eu compreendia esse tema.
Adotei a voz de Himmler, que comenta a tradição camponesa do incesto nos vilarejos, por ignorância e por consangüinidade. Por que não? Isso lança luz sobre as áreas selvagens e não exploradas da psique de Hitler.
O Führer mandou destruir o povoado natal de seu pai. Ele não comentou nada, mas apagou tudo. O rumor sobre seu judaísmo vem do fato de que sua avó trabalhava como empregada de uma fazenda e teria sido engravidada por um judeu.

PERGUNTA - Como foi a pesquisa?
MAILER
- Passei pelo menos dois anos lendo vários livros. Infelizmente, devido à idade, hoje levo semanas para ler um livro. Não se sabe muito sobre a infância de Adolf, desde seu nascimento até a morte de seu pai. Se eu levar o empreendimento romanesco até o fim, se ainda tiver forças para isso, terei que ler estantes inteiras! Quanto mais avançar, mais difícil será.

PERGUNTA - O sr. tem realmente a impressão de compreender melhor o mistério de Hitler?
MAILER
- Acredito, de fato, que sou um dos poucos a compreendê-lo. Correndo o risco de chocar, chegaria a dizer que, se acreditamos em Jesus, filho de Deus, então por que não em Hitler, filho do Diabo?


Esta entrevista saiu na "Magazine Littéraire". Tradução de Clara Allain .


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