São Paulo, domingo, 07 de outubro de 2007

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O filósofo do corpo

Sai em edição bilíngüe nova tradução do clássico "Ética", de Espinosa, que resgatou o papel da matéria para o pensamento do século 17

VLADIMIR SAFATLE
ESPECIAL PARA A FOLHA

A história da filosofia desconhece a linha reta. Seu tempo não é aquele das sucessões lineares, em que a passagem de um sistema filosófico a outro aparece como um progresso inexorável. O tempo da filosofia é aquele em que o presente não é outra coisa que não uma versão mais contraída do passado. Presente como campo de forças no qual vários passados entram em confronto e relação.
Isso talvez explique a plasticidade que faz com que certos autores clássicos ganhem atualidade inesperada em vários momentos da história. Pegue-se, por exemplo, o caso de Espinosa [1632-1677].
Conhecemos dois grandes momentos de recuperação do espinosismo. O primeiro ocorreu no idealismo e romantismo alemães, onde o monismo do filósofo holandês aparecia como uma via possível para a constituição de uma crítica às dicotomias produzidas pelo entendimento kantiano.
O segundo ocorreu no pensamento francês contemporâneo (em especial por meio de nomes como Deleuze e Althusser). Nesse caso, a recuperação de um espinosismo mediado muitas vezes por Nietzsche aparecia, sobretudo, como forma de anular o peso do hegelianismo que havia marcado o pensamento francês até os anos 1950.
Sentimos até hoje os efeitos dessa segunda recuperação do espinosismo. Noções fortemente presentes no debate contemporâneo das idéias, como imanência (utilizada no campo da política, por exemplo, pelo italiano Antonio Negri), recuperação da centralidade do corpo no interior da reflexão filosófica, esgotamento da filosofia do sujeito devem muito a uma certa recuperação do espinosismo.
De qualquer modo, é notável como a contemporaneidade inverteu uma equação quase constante durante toda a filosofia moderna e que colocava Espinosa como a pior figura regressiva da filosofia, como uma espécie de fantasma paradigmático do irracionalismo.
Hegel, que fora acusado de espinosismo, definia o pensamento do filósofo holandês como "eco do pensamento oriental". Ele expunha claramente a maneira com que a filosofia de Espinosa aparecia fora de uma certa noção de Ocidente fundamental para a constituição da modernidade.
Essa noção depende, sobretudo, da laicização de categorias teológicas, da constituição de uma metafísica elaborada por meio das dicotomias instauradas por um pensamento judaico-cristão. No entanto, se atualmente Espinosa aparece como um contemporâneo, talvez seja porque o pensamento ocidental aprendeu a desconfiar de si mesmo.
É nesse contexto que chegam às livrarias uma nova tradução da "Ética" assim como o curioso "A Vida e o Espírito de Baruch de Espinosa", composto por uma biografia provavelmente escrita por um discípulo de Espinosa, em 1678, e pelo "Tratado dos Três Impostores", panfleto anônimo anticlerical contra Moisés, Jesus e Maomé profundamente marcado por um certo espinosismo que animava meios ateus nos séculos 17 e 18.
A edição desse segundo volume não deixa de ter sua ironia em um tempo, como o de hoje, que assiste ao retorno do fundamentalismo cristão travestido de crítica da modernidade. A nova tradução da "Ética" é um empreendimento editorial louvável. Anteriormente, o Brasil dispunha de duas traduções: uma feita por Joaquim de Carvalho, Joaquim Ferreira Gomes e Antonio Simões e outra, mais antiga, levada a cabo por Lívio Xavier.
No entanto nenhuma delas continha aparato crítico e o texto original em latim.
Além disso, salta aos olhos um cuidado de tradução que foi capaz de aliar precisão conceitual e recusa em abandonar o solo das potencialidades coloquiais da língua portuguesa, além da generosidade em não abarrotar o texto com notas de edição que procuram dirigir a interpretação.
Graças a isso, temos enfim nas livrarias brasileiras uma edição à altura de um dos livros maiores da história da filosofia.
Que esse cuidado imponha, entre nós, um novo parâmetro na tradução de textos clássicos. Muito haveria a dizer a respeito da originalidade de "Ética", com sua ordem geométrica e seu estilo translúcido próprio à grande tradição racionalista do século 17.
Partindo da constituição de uma ontologia monista assentada na defesa da univocidade do ser, "Ética" pode apresentar Deus como substância de todas as coisas, como o ser uno que se expressa na multiplicidade de todos os entes.
Ele é causa imanente do que há. O que valeu à filosofia de Espinosa a acusação reiterada de panteísmo, que rebaixaria Deus à condição de natureza que se expressa sem a necessidade de se pôr como transcendência.
Essa ontologia fornece o fundamento tanto para uma teoria complexa do conhecimento quanto para uma reflexão sobre os modos de determinação e orientação da conduta.
Ou seja, para uma ética que, por partir de uma perspectiva monista, não precisa basear-se em dicotomias entre vontade livre e desejo patológico, mente autônoma e corpo preso à heteronomia da natureza, entre outros. Dicotomias que marcarão estruturas gerais da reflexão moderna sobre a ética.
Dessa forma, Espinosa fornecia vias possíveis para a reconstrução profunda de questões maiores da filosofia.
Uma reconstrução a respeito da qual medimos as conseqüências até hoje.


VLADIMIR SAFATLE é professor do departamento de filosofia da Universidade de São Paulo e autor de "Lacan" (Publifolha).

ÉTICA
Autor:
Espinosa
Tradução: Tomaz Tadeu
Editora: Autêntica (tel. 0800-2831-322)
Quanto: R$ 68 (424 págs.)

A VIDA E O ESPÍRITO DE BARUCH DE ESPINOSA/ TRATADO DOS TRÊS IMPOSTORES
Tradução:
Éclair Antonio Almeida Filho
Editora: Martins Fontes (tel. 0/xx/ 11/ 3241-3677)
Quanto: R$ 29,90 (200 págs.)


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