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O filósofo do corpo
Sai em edição bilíngüe nova tradução do clássico "Ética", de Espinosa, que resgatou
o papel da matéria para o pensamento do século 17
VLADIMIR SAFATLE
ESPECIAL PARA A FOLHA
A história da filosofia
desconhece a linha
reta. Seu tempo não
é aquele das sucessões lineares, em
que a passagem de um sistema
filosófico a outro aparece como
um progresso inexorável. O
tempo da filosofia é aquele em
que o presente não é outra coisa que não uma versão mais
contraída do passado. Presente
como campo de forças no qual
vários passados entram em
confronto e relação.
Isso talvez explique a plasticidade que faz com que certos
autores clássicos ganhem atualidade inesperada em vários
momentos da história.
Pegue-se, por exemplo, o caso de Espinosa [1632-1677].
Conhecemos dois grandes momentos de recuperação do espinosismo. O primeiro ocorreu
no idealismo e romantismo
alemães, onde o monismo do
filósofo holandês aparecia como uma via possível para a
constituição de uma crítica às
dicotomias produzidas pelo
entendimento kantiano.
O segundo ocorreu no pensamento francês contemporâneo
(em especial por meio de nomes como Deleuze e Althusser). Nesse caso, a recuperação
de um espinosismo mediado
muitas vezes por Nietzsche
aparecia, sobretudo, como forma de anular o peso do hegelianismo que havia marcado o
pensamento francês até os
anos 1950.
Sentimos até hoje os efeitos
dessa segunda recuperação do
espinosismo. Noções fortemente presentes no debate
contemporâneo das idéias, como imanência (utilizada no
campo da política, por exemplo, pelo italiano Antonio Negri), recuperação da centralidade do corpo no interior da reflexão filosófica, esgotamento
da filosofia do sujeito devem
muito a uma certa recuperação
do espinosismo.
De qualquer modo, é notável
como a contemporaneidade inverteu uma equação quase
constante durante toda a filosofia moderna e que colocava
Espinosa como a pior figura regressiva da filosofia, como uma
espécie de fantasma paradigmático do irracionalismo.
Hegel, que fora acusado de
espinosismo, definia o pensamento do filósofo holandês como "eco do pensamento oriental". Ele expunha claramente a maneira com que a filosofia de
Espinosa aparecia fora de uma
certa noção de Ocidente fundamental para a constituição da
modernidade.
Essa noção depende, sobretudo, da laicização de categorias teológicas, da constituição
de uma metafísica elaborada
por meio das dicotomias instauradas por um pensamento
judaico-cristão. No entanto, se
atualmente Espinosa aparece
como um contemporâneo, talvez seja porque o pensamento
ocidental aprendeu a desconfiar de si mesmo.
É nesse contexto que chegam às livrarias uma nova tradução da "Ética" assim como o
curioso "A Vida e o Espírito de
Baruch de Espinosa", composto por uma biografia provavelmente escrita por um discípulo
de Espinosa, em 1678, e pelo
"Tratado dos Três Impostores", panfleto anônimo anticlerical contra Moisés, Jesus e
Maomé profundamente marcado por um certo espinosismo
que animava meios ateus nos
séculos 17 e 18.
A edição desse segundo volume não deixa de ter sua ironia
em um tempo, como o de hoje,
que assiste ao retorno do fundamentalismo cristão travestido de crítica da modernidade.
A nova tradução da "Ética" é
um empreendimento editorial
louvável. Anteriormente, o
Brasil dispunha de duas traduções: uma feita por Joaquim de
Carvalho, Joaquim Ferreira
Gomes e Antonio Simões e outra, mais antiga, levada a cabo
por Lívio Xavier.
No entanto nenhuma delas
continha aparato crítico e o
texto original em latim.
Além disso, salta aos olhos
um cuidado de tradução que foi
capaz de aliar precisão conceitual e recusa em abandonar o
solo das potencialidades coloquiais da língua portuguesa,
além da generosidade em não
abarrotar o texto com notas de
edição que procuram dirigir a
interpretação.
Graças a isso, temos enfim
nas livrarias brasileiras uma
edição à altura de um dos livros
maiores da história da filosofia.
Que esse cuidado imponha, entre nós, um novo parâmetro na
tradução de textos clássicos.
Muito haveria a dizer a respeito da originalidade de "Ética", com sua ordem geométrica
e seu estilo translúcido próprio
à grande tradição racionalista
do século 17.
Partindo da constituição de
uma ontologia monista assentada na defesa da univocidade
do ser, "Ética" pode apresentar
Deus como substância de todas
as coisas, como o ser uno que se
expressa na multiplicidade de
todos os entes.
Ele é causa imanente do que
há. O que valeu à filosofia de
Espinosa a acusação reiterada
de panteísmo, que rebaixaria
Deus à condição de natureza
que se expressa sem a necessidade de se pôr como transcendência.
Essa ontologia fornece o fundamento tanto para uma teoria
complexa do conhecimento
quanto para uma reflexão sobre os modos de determinação
e orientação da conduta.
Ou seja, para uma ética que,
por partir de uma perspectiva
monista, não precisa basear-se
em dicotomias entre vontade
livre e desejo patológico, mente
autônoma e corpo preso à heteronomia da natureza, entre outros. Dicotomias que marcarão
estruturas gerais da reflexão
moderna sobre a ética.
Dessa forma, Espinosa fornecia vias possíveis para a reconstrução profunda de questões maiores da filosofia.
Uma reconstrução a respeito
da qual medimos as conseqüências até hoje.
VLADIMIR SAFATLE é professor do departamento de filosofia da Universidade de São Paulo
e autor de "Lacan" (Publifolha).
ÉTICA
Autor: Espinosa
Tradução: Tomaz Tadeu
Editora: Autêntica
(tel. 0800-2831-322)
Quanto: R$ 68 (424 págs.)
A VIDA E O ESPÍRITO DE
BARUCH DE ESPINOSA/ TRATADO DOS TRÊS IMPOSTORES
Tradução: Éclair Antonio Almeida
Filho
Editora: Martins Fontes
(tel. 0/xx/ 11/ 3241-3677)
Quanto: R$ 29,90 (200 págs.)
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