São Paulo, domingo, 07 de outubro de 2007

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Torres fêmeas

Ganhadora de 1 Pulitzer, Susan Faludi fala de "O Sonho do Terror" e diz que o 11 de Setembro acentuou diferenças entre os sexos

PATRICIA COHEN

As fotos assustadoras e dilacerantes de setembro de 2001 expostas na New York Historical Society estão suspensas por clipes em fileiras organizadas, como roupas penduradas num varal.
Entre elas há uma imagem em preto-e-branco de uma figura de cartolina, em tamanho natural, do ator John Wayne em sua época áurea, com um cartaz pendurado de seu pescoço dizendo: "Este não é momento para caubóis". "Essa poderia ser a capa de meu livro", disse Susan Faludi.
Ela estava visitando a mostra organizada pela Historical Society de fotos e artefatos dos ataques ao World Trade Center e falando de seu livro "The Terror Dream - Fear and Fantasy in Post-9/11 America" [O Sonho do Terror - Medo e Fantasia na América pós-11 de Setembro, Metropolitan Books, 368 págs., US$ 26, R$ 47].
Jornalista premiada com o Prêmio Pulitzer e autora de dois livros anteriores, Faludi ficou perplexa com as seqüelas culturais daquele dia. O que encontrou, diz ela, foi um forte ressurgimento de papéis sexuais tradicionais e a glorificação da virilidade do homem forte, conforme é personificado por John Wayne, o arquissalvador de mocinhas virtuosas, mas desamparadas.

Retrocesso
O pensamento pré-feminista estava por toda parte, disse ela.
Na mídia, onde mulheres comentaristas de repente se tornaram escassas após o 11 de Setembro, e onde começaram a surgir artigos enganosos sobre tendências, falando de mulheres cuidando da casa e fazendo comida; em retratos feitos dos heróis daquele dia como sendo homens e das vítimas como mulheres; e em filmes como "Guerra dos Mundos", de 2005, disse ela, em que Tom Cruise é "um pai divorciado e fracassado que é emasculado por sua mulher e reconquista sua virilidade ao salvar a filhinha deles".
No final desse filme, o personagem de Cruise aninha a filha nos braços, num eco da cena final do clássico de 1956 de John Wayne, "Rastros de Ódio", quando carrega para casa sua sobrinha, que tinha sido capturada por índios anos antes. "É algum tipo de fixação bizarra e estranhamente fora de proporção", disse Faludi, "uma exaltação da masculinidade americana numa crise intergaláctica".

Desprezo
Quem não se adequou a essa versão dos fatos -como mulheres que ajudaram no resgate em 11 de setembro de 2001 e viúvas que se recusaram a permanecer obedientemente prostradas pela dor ou, então, que questionaram as falhas da inteligência-, acrescentou, foi tratado com desprezo.
A visão que Faludi apresenta dos fatos pode parecer constituir-se numa seqüência de seu best-seller de 1992, "Backlash -O Contra-Ataque na Guerra Não Declarada às Mulheres" [ed. Rocco].
Mas Faludi vai além. Ela situa o conservadorismo pós-11 de Setembro dentro de uma tradição de 300 anos de "reengenharia cultural", na qual a falha humilhante dos pioneiros desbravadores do Velho Oeste em proteger suas mulheres e seus filhos dos ataques de índios passou por uma revisão, para dar lugar a retratos de "coragem férrea por parte dos homens brancos e desamparo vestido de crinolina da parte das mulheres brancas", como escreveu em ensaio no "New York Times" em setembro.
Mas será que é possível retroceder até a época colonial dos EUA para explicar um fenômeno do século 21? Afinal, a narrativa clássica do bravo caubói -samurai, cavaleiro, príncipe, soldado, camponês, repórter de fala mansa, piloto de nave espacial, hobbit- que resgata mulheres e crianças em perigo é um dos ingredientes básicos das culturas de todo o mundo.
E a vergonha da derrota e da invasão figurou com muito mais destaque na história de muitos outros países que na dos EUA.

Novo Mundo
Faludi disse que cada cultura "molda seus mitos próprios de maneira específica, baseada em seus próprios dramas históricos". Outros países "têm uma tradição secular de costumes, rituais e um senso de identidade profundamente arraigado".
"É diferente para nós, porque somos uma nação tão jovem", acrescentou. Não importa que os EUA tenham sido, de modo geral, imunes a ataques lançados contra seu solo: "A vulnerabilidade dos pioneiros que desbravaram os EUA é nosso "trauma fundador'".
Essa abordagem psicológica sem dúvida encontrará ouvintes céticos.
John Demos, historiador de Yale cujo trabalho sobre a história americana é citado em "O Sonho do Terror", disse que considera Faludi "uma pensadora muito poderosa", mas ponderou: "Tenho dúvidas quanto à noção toda de uma psique nacional que nutre traumas inconscientes profundos ao longo de séculos".
Baseando seus comentários no ensaio de Faludi, Demos disse que a maneira como as histórias sobre o Velho Oeste foram mudando ao longo do tempo "faz parte de um movimento muito mais amplo para modificar estereótipos e papéis baseados no gênero".
Faludi, que vive em San Francisco, disse que inicialmente não tinha a intenção de escrever sobre o 11 de Setembro. Em questão de horas, um repórter de jornal telefonou para lhe perguntar qual era sua opinião sobre o efeito que os ataques teriam sobre "nossa tessitura social", antes de acrescentar, "em tom bizarramente satisfeito", segundo Faludi: "Uma coisa é certa: isto daqui vai varrer o feminismo do mapa!".

Reações diferentes
Mesmo assim, foi apenas em julho de 2005 que ela decidiu escrever "O Sonho do Terror".
Ela estava fazendo um discurso em Estocolmo quando terroristas detonaram bombas no metrô de Londres. Depois de ler os jornais britânicos, disse Faludi, "o que realmente chamou minha atenção foi como as reações foram diferentes".
"Um fato criminoso foi tratado como fato criminoso", explicou. A mídia britânica não "entrou em surto, dizendo que isso era um referendo sobre a política sexual britânica".
Quando se deu conta de que ninguém mais estava escrevendo sobre esse tema, decidiu fazê-lo ela mesma.
Quando Faludi caminhou pelos corredores de mármore da Historical Society, passou por relíquias do desabamento das torres: a porta de um caminhão de bombeiros, um pedaço de metal retorcido.
Kathleen Hulser, historiadora pública do museu, disse que a exposição não tem textos que a acompanhem porque "realmente não havia um ponto de vista único". O que é incomum nessa exposição, disse, é que "se trata de um ponto de encontro entre o objeto e a pessoa que o vê".

Juntando pedaços
Faludi parou ao lado de um fragmento de trem de pouso de um dos aviões. "Temos pedaços, mas não temos história", disse ela. "É como os objetos apresentados por um advogado como provas, mas sem a explicação que os acompanha."
Nesse ponto, falou, a mostra espelha a situação do imediato pós-11 de Setembro.
Mas então o governo de George W. Bush, auxiliado pela mídia e outros setores, apresentou uma narrativa pronta que sufocou as experiências reais das pessoas.
A linguagem também foi cooptada, disse Faludi, mencionando que sobreviventes e trabalhadores chamavam o local da tragédia de "the pile" [a pilha], enquanto a mídia recorreu ao jargão militar para rebatizá-lo de "ponto zero". "As reações emocionais pessoais são canalizadas e atreladas numa construção mitológica", disse ela, e às pessoas é dito: "É isto que vocês devem sentir". Para Susan Faludi, a história oficial, a narrativa pré-fabricada, está desabando em razão de revelações de falhas do governo e do apoio cada vez menor à Guerra do Iraque.
Ela quer oferecer um comentário alternativo. Um dos curadores da exposição na Historical Society, disse ela, traçou uma distinção entre os artefatos expostos e arte: "Arte é um processo de dar um passo para trás e ver o que aquilo significa.
É isso o que estou tentando fazer neste livro: tentando identificar o significado".


Este texto saiu no "New York Times". Tradução de Clara Allain .


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