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A revolução de Koellreutter
Cleo Velleda/Folha Imagem
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O compositor e maestro Hans-Joachim Koellreutter, autor da ópera "Café", em seu apartamento em São Paulo |
Lições de vanguarda
CARLOS ADRIANO
BERNARDO VOROBOW
especial para a Folha
A música brasileira tem um sinônimo em alemão:
Hans-Joachim
Koellreutter. Compositor, maestro,
educador e esteta, ele nasceu em 2
de setembro de 1915, em Freiburg
(Alemanha), e desembarcou no
Rio de Janeiro em 16 de novembro de 1937. Instaurador de um
trabalho fundamental de criação
e formação, sua trajetória e experiência cravam-lhe o nome como
marco zero do novo na cultura
musical do Brasil.
A revolução de Koellreutter
compreende um projeto artístico
e humanístico de amplas dimensões. O debate e a difusão de
idéias circulam por ensino, publicações, regência de concertos,
gestão de instituições, animação
cultural e a própria obra musical.
Sua pedagogia sacudiu normas
caducas de conservatório e fez (literalmente) escolas Brasil afora,
laboratórios de disciplina e inquietação. Tocou e lecionou na
Europa, Ásia e EUA. Formou
maestros como Rogério Duprat,
Julio Medaglia, Diogo Pacheco,
Isaac Karabitchevisky, Olivier Toni, Benito Juarez; compositores
como Cláudio Santoro, Edino
Krieger, Guerra Peixe, Eunice Katunda, Marlos Nobre, Damiano
Cozzella; pianistas como Geni
Marcondes, Gilberto Tinetti, Clara Sverner; músicos como Tom
Jobim, Severino Araújo, K-Chimbinho, Tim Rescala, Tom Zé. Caetano Veloso não foi seu aluno,
mas é tomado por "excitação feliz
e gratidão" ao ouvir o nome do
professor, crucial em sua formação (leia as entrevistas com Tom Zé
e Caetano).
Ensinou composição no Centro
Internazionale di Musica Contemporânea de Milão (Luigi Nono foi seu aluno) e no Instituto Internacional de Música de Darmstadt (célebre celeiro da vanguarda: Stockhausen, Pousseur, Berio,
Boulez), em 48. Em 49, participou
dos Congressos Internacionais de
Compositores Progressistas, em
Praga, e de Compositores Dodecafônicos, na Suíça (com John Cage). Presidiu o Congresso Internacional de Composição Dodecafônica e a Sociedade Internacional
de Música.
A primeira vez que o Brasil ouviu as notas dissonantes de Webern e Cage (entre outros) e música medieval e barroca em instrumentos originais foi pelas mãos
do maestro. Ele chegou a dar aulas de música de vanguarda durante o dia e à noite tocar (em sax
e flauta) sambas, valsas e chorinhos no Danúbio Azul, bar da Lapa (Rio, 38).
Com bolsa da Fundação Ford,
"por 25 anos de serviços prestados ao Brasil", foi artista residente
em Berlim (62). Atuou como diretor do Instituto Goethe em Munique (63-64), Nova Delhi (65-69),
Tóquio (69-75) e Rio (75-80).
Preocupado com a sociedade de
massa (tecnológica e industrial),
vê na arte meio de liberdade, comunicação, educação. Fez crítica
musical em jornal e elaborou reflexões de rigor conceitual (artigos, aulas, livros). As dez línguas
que fala, ele as aprendeu "para conhecer o outro". Naturalizou-se
brasileiro em 1948.
"Tudo o que choca, conscientiza", declarou. Sua personalidade
imantou polêmicas e controvérsias, que se propagaram por imprensa e profissionais. Foi assim
na querela nacionalismo x dodecafonismo (50) e na palestra
"Função e Valor da Música na Sociedade de Amanhã" (77). Enfrentou detratores e o abandono
de ex-discípulos.
Realizou rara síntese entre cultura oriental e física moderna, espiritualidade milenar e teoria
quântica (do zen à incerteza): a
"estética relativista do impreciso e
do paradoxal", amálgama da alma dos contrários complementares e da invenção permanente.
Suas composições (ele prefere
chamar de "ensaios") modelam a
música como experiência de conhecimento e percepção. Arranjos juntam oboé e agogô, flauta e
marimba, fagote e bandolim, piano e tam-tam, tramando estruturas atonais, seriais e aleatórias,
rompendo regras convencionais.
Das quase 80 obras destacam-se:
"Música", "Mutações", "Cantos
de Kulka", "Advaita", "Yûgen",
"Tanka", "Mu Dai", "Issei",
"Ácronon", "Constelações", "Retrato da Cidade", "Dharma",
"Wu-Li", "Áudio-Game", "Panta
Rhei", "Café".
Aos 84 anos, dá aulas e palestras, trabalha em antigos e novos
projetos, pensa e inventa. Foi no
"Kremlin", a sala íntima vermelha
de seu apartamento em São Paulo, que Koellreutter recebeu a Folha para a entrevista a seguir.
Folha - Havia alguma tradição
musical em sua família?
Hans-Joachim Koellreutter -
Em minha família, eu sou o primeiro músico. Na linha suíça dos
Koellreutter, há amadores e profissionais, mas eu sou do ramo
alemão. Muita gente pensava que
eu fosse suíço, mas nasci em Freiburg, não da Suíça, da Alemanha.
Mas nós não temos nada, ao contrário. Eu não conheci minha
mãe, ela morreu na terrível epidemia da gripe de 1918. Dizem que
era muito interessada por música.
Meu pai era médico, otorrino. Tive uma irmã, que já morreu. Ela
era pintora, afilhada da rainha da
Suécia, que era brasileira. Meu
pai, monarquista e nacionalista,
era médico oficial da Alemanha e
de monarquias afins. Minha família possuía todas as características
de reacionarismo.
Folha - Como surgiu seu interesse por música?
Koellreutter - Eu era um menino muito levado. E já desde criança tive uma veia socialista. Na escola, não entendia por que podia
comprar chocolate e os colegas
não. Aí fui roubar dinheiro para
dar chocolate aos que não tinham. Adulterei notas. Me comportei desse modo. A escola se
queixou, e então meus pais me
prenderam. Morávamos em
Karlsruhe. Eu não podia mais
brincar na rua, devia só fazer
exercícios em casa, ninguém podia me visitar. Procurei nos armários de casa coisas que me interessassem. Achei uma antiga flauta
do século 19, do Exército austríaco, e, como não tinha nada que fazer na minha prisão, comecei a estudar e a gostar de música.
Eu fiquei preso talvez um ano,
um ano e meio. Estudei piano,
harmonia, teoria e escrevia música. Tinha 12, 13 anos. Resolvi, contra a vontade de meus pais, estudar música. Naturalmente, meu
pai queria que eu fosse médico e
minha madrasta (filha de famoso
retratista suíço) que fosse um acadêmico. Mas eu fugi. Peguei um
trem e fui a Berlim, entrando em
conflito com minha família. Foi o
princípio de minha oposição a toda essa sociedade. Naturalmente
eu era a ovelha negra da família.
Folha - Com quem o sr. estudou em Berlim?
Koellreutter - Fui aluno da Academia de Música (Staatliche Akademische Hochschule für Musik),
de 34 a 36. Meus professores foram Kurt Thomas (composição e
regência), G. Scheck (flauta), C.A.
Martienssen (piano), G. Schuenemann e M. Seiffert (musicologia).
Folha - Foi também uma época
de muita agitação artístico-política, não?
Koellreutter - Sim, e naturalmente eu não podia ficar com a
boca fechada, e logo me tornei
militante antinazista, criando em
35 o "Círculo de Trabalho para a
Nova Música" ("Arbeitskreis für
Neue Musik"). Era um grupo
contra o nazismo e sua política
cultural, desafiando a Gestapo. Eu
era realmente militante, lutava na
rua e apresentava obras de vanguarda, o que irritou a Câmera de
Música do Reich ("Reichsmusikkammer"). Isso não durou muito
tempo. Exigiam na Academia que
eu entrasse para o Partido Nazista. Eu recusei e me expulsaram.
Recorri a um homem que desempenhou um papel imenso na
minha formação, o regente Hermann Scherchen. Afinado à nova
música, era um esquerdista alemão que vivia em Neuchatel e me
convidou para morar com ele,
porque percebeu que eu tinha
mais ou menos a mesma tendência e o mesmo destino. É a pessoa
que mais me formou. Depois fui a
Genebra me aperfeiçoar com o
flautista Marcel Moyse e fundei o
"Cercle de Musique Contemporaine". Martienssen foi muito importante, mas Scherchen é sem
dúvida o homem que mais me influenciou, também como caráter,
forma de trabalhar, intensificar as
coisas. Ele abriu realmente tudo,
ensinou a evitar preconceitos,
abrir a todas tendências. Foi talvez o mais importante que aprendi com ele. E também trato disso
até hoje como princípio principal.
Folha - O sr. recebeu influência
do compositor Paul Hindemith?
Koellreutter - Fiz um curso de
férias com ele, esse foi meu contato. Talvez isso se deva esclarecer.
Assisti a seu primeiro curso na
Universidade de Berlim. Chamei
de "harmonia acústica" suas conferências sobre composição moderna. Ele era mal visto pelo governo também. Não me tornei de
fato discípulo de Hindemith.
Aliás, quem conhece minha obra
percebe logo que estou mais na
direção austríaca, da escola vienense de Arnold Schoenberg, Alban Berg e Anton Webern.
Folha - O sr. tocou na companhia de Darius Milhaud?
Koellreutter - Viajei por todo o
mundo como concertista de flauta, sou originalmente flautista. Fiz
a turnê com Milhaud na Europa.
Era um grande compositor e pianista. Devido à minha atividade
pela música moderna, ele me
acompanhou. Eu não podia ficar
na Alemanha. Cassaram meu
passaporte. Tive que emigrar. A
guerra estava no ar e me convocaram. Eu escrevi uma carta muito
malcriada ao governo, dizendo
que comigo não podiam mais
contar, muito menos para lutar
pelo nazismo.
Folha - Por que sua família denunciou-o à Gestapo?
Koellreutter - Porque eram de
tendência monarquista e portanto simpatizantes dos nazistas.
Não queriam que me casasse com
uma judia. Era o que se chamava
"crime racial". Meu tio, irmão de
meu pai, era amigo pessoal de Hitler e manejou isso. Eu e Scherchen éramos visados, e o perigo
era os alemães invadirem a Suíça.
Artistas foram para lá, mas não
podiam ficar. O filho desse tio organizava estudantes nazistas na
Suíça e soube que minha noiva
era judia. Disse não ter nada comigo, "um pró-semita, comunista", mas armou uma surra na moça numa ponte de Genebra.
Folha - E por que o sr. veio para o Brasil?
Koellreutter - Os cursos de
Scherchen não eram só em Neuchatel, onde morava, mas também em Genebra e Budapeste.
Uma vez na Hungria, estive com o
embaixador do Brasil e sua mulher, muito ligada à música. Com
a guerra no ar e sabendo de minha
militância antifascista, eles estavam dispostos a me ajudar na viagem ao Brasil. Desembarquei no
Rio em novembro de 37. Em 44, o
maestro húngaro Szenkar, criador da Orquestra Sinfônica Brasileira, me convidaria para ser primeiro flautista e um dos sócios
fundadores da orquestra.
Folha - Por que o sr. foi trabalhar na gravação de música
em chapas de chumbo, serviço
que lhe intoxicou gravemente?
Koellreutter - Em 39, casado, tive que trabalhar. Apátrida, eu
praticamente não existia. Precisava ganhar minha vida. Eu comia
mal, vivia sem dinheiro. Encontrei numa rua do Rio os Fuchs,
alemães de uma editora. Sugeriram que aprendesse a gravar partituras. Morava em Copacabana e
todo dia estava na oficina, na Tijuca, junto ao forno e ao fogo, sob
aquele calor do Rio, misturando
chumbo. Algo muito perigoso.
Fiquei doente. Continuei aprendendo e, então, o que aconteceu?
Eles faliram e me venderam com
as ferramentas para a Mangione,
em São Paulo, em 40. Mas não pude mais trabalhar com chumbo.
Um amigo alemão, Theodor Heuberger, diretor da loja Casa e Jardim e da Pró-Arte, deu os recursos para eu me recuperar em Itatiaia. Me refiz ali e criei a primeira
peça maior -pois escrevi antes
coisas menores- dodecafônica
(técnica de composição que usa
uma série de 12 sons na música
atonal), chamada "Música 1941".
Folha - Por que o sr. foi preso
em 42, em São Paulo?
Koellreutter - Fui preso como
suspeito de espionagem. O Brasil
havia entrado na Segunda Guerra.
Eu, alemão, recebia de outro alemão -Curt Lange, de quem eu
era representante no Brasil- jornais, informações e dinheiro para
edições. A polícia me prendeu na
Casa e Jardim -onde trabalhava
com outro alemão-, na rua Marconi, e me levou para a Estação da
Luz, com nazistas e japoneses,
que me boicotaram, pois sabiam
que era antifascista. Para eles eu
era simplesmente um "judeu e comunista". Como alemão, foi difícil comprovar que não era simpatizante do nazismo. Fiquei três
meses preso em regime de "internação política" na Emigração.
Folha - Para quem fugiu do nazismo, como era viver sob o Estado Novo?
Koellreutter - Eu acho que os
brasileiros falam demais; não só
brasileiros, todas as pessoas falam
demais (risos). A imprensa publicava artigos sobre o que o "professor Koellreutter" dizia do nazismo e Hitler. O Cláudio Santoro, que era comunista, dizia que
eu era estrangeiro, não naturalizado, não devia fazer isso, ia ter
problema. Santoro falou: "Quem
conhece você como músico, professor de tantos compositores, vai
dizer que você se meteu de repente em política...". E então eu percebi que meu tio fora responsável
pela denúncia que minha família
fizera ao governo nazista. Na Universidade de Jena, ele era um professor muito famoso, que escreveu um livro sobre os problemas
do direito, do ponto de vista nazista. Assim, muitos brasileiros,
getulistas também, estudaram
com Otto Koellreutter naquela fase. E eles citavam nos jornais o
professor Koellreutter, referindo-se ao meu tio, que escrevera a bíblia jurista na Alemanha nazista.
Folha - Como o sr. introduziu o
dodecafonismo e o serialismo
no Brasil?
Koellreutter - Em 40, quando
eu ensinava composição a Cláudio Santoro, ele fazia a "Sinfonia
para Duas Orquestras de Cordas",
com trechos que já traziam essas
técnicas em embrião. Ele me perguntou o que era dodecafonia. Eu
não o forcei a fazer. Eu dava aulas
de acordo com minha orientação
estética. Ele estudou em conservatório e ouviu falar disso, mas
não foi informado. No fundo ele
me obrigou, com as perguntas
que me fez, a estudar mais a coisa.
E escrevi "Invenção", o primeiro
trio rigorosamente dodecafônico.
Mas quem me levou a fazer isso a
sério foi o Santoro.
Folha - E como foi o aprendizado de um outro aluno seu, Tom
Jobim?
Koellreutter - Sempre digo que
meus ensinamentos ao Tom Jobim foram no século passado (risos). Fui convidado para ensinar
crianças, iniciação musical, no
Colégio Brasileiro de Almeida, da
mãe de Tom, em Ipanema. Ele estudou comigo entre 39 e 40, no ginásio e depois em aulas particulares, harmonia e contraponto...
Folha - ... e piano?
Koellreutter - Coitado! Não sou
pianista... Não sei se ele tocaria
bem piano... (risos). Tom era extremamente talentoso e corajoso,
vivo, generoso e aberto. Eu tive
ótimas relações com ele até sua
morte. Encontrava-me com ele na
churrascaria Plataforma, no Rio,
onde tinha sua garrafa. Tinha o
que para mim é o critério mais
convincente do valor da arte: o estilo pessoal, de cunho próprio do
artista. De fato, sua mente era
muito aberta, no sentido da música contemporânea, da música
clássica e da americana moderna.
Folha - O que foi o grupo e o
movimento Música Viva?
Koellreutter - Em 38, na Pinguim, loja de música na rua do
Ouvidor, no Rio, reunia-me com
interessados: Luiz Heitor Corrêa
de Azevedo, Egydio de Castro e
Silva, Brasílio Itiberê, Luis Cosme,
Otávio Bevilácqua. E aí vieram Aldo Parizot, Oriano de Almeida e
meus alunos Cláudio Santoro,
Edino Krieger, Guerra Peixe, Geni
Marcondes, Eunice Katunda. Foi
um movimento de compromisso
com o desconhecido, o contemporâneo e a renovação. Villa-Lobos era o presidente de honra. A
pauta era educação, criação, conferências, concertos, programas
de rádio, edições.
Em 39, houve o Primeiro Concerto Música Viva e, em maio de
40, lançamos a primeira revista
"Música Viva". No "Primeiro Manifesto", de 1º de maio de 44, afirmamos que "a obra musical é a
mais elevada organização de pensamentos e sentimentos humanos da vida" e a "música é expressão do tempo, novo estado de inteligência". O "Manifesto 1946" é
a "Declaração de Princípios": a
música como traço de cultura, sociedade e época, reafirmando a
necessidade de se educar para o
novo e criar a postura revolucionária essencial. O nome vem da
revista que Scherchen editava na
Suíça, e a forma inspirava-se na
Sociedade para Apresentações
Musicais Privadas ("Verein für
Musikalische Privat-Aufführungen"), que Schoenberg, Berg e
Webern regeram de 1917 a 1921.
Folha - Como foi sua relação
com o maestro e compositor Camargo Guarnieri?
Koellreutter - Ele voltou de Paris e ficamos muito amigos. Ele
era regente do Teatro Municipal,
eu toquei com ele. Foi muito bom.
Quando tive a doença do chumbo, morei numa favela em Indianópolis (São Paulo). Ele sabia que
eu estava gravemente doente e
sempre me visitava, em 41. Quando estava na favela, nossas mulheres se encontraram e discutiram
sobre quem trouxera o dodecafonismo ao Brasil, o responsável por
essa revolução. Me contaram, pode ser fofoca, que elas brigaram
no salão de chá do Mappin. Camargo de repente não falou mais
comigo. Quando fez 70 anos, participamos de um concerto em Teresópolis. Mas nunca mais fomos
amigos íntimos como no início.
Folha - Em 7 de novembro de
1950, ele escreveu contra o dodecafonismo, e o sr. redigiu
uma virulenta "Carta Aberta aos
Músicos e Críticos do Brasil",
provocando uma das maiores
polêmicas da história da música
brasileira. "Crime de lesa-pátria", escreveu ele, "o dodecafonismo, em música, corresponde
ao abstracionismo, em pintura;
ao hermetismo, em literatura;
ao existencialismo, em filosofia;
ao charlatanismo, em ciências. É
a expressão de uma política de
degenerescência cultural". Patrícia Galvão (Pagu) desancou
Guarnieri...
Koellreutter - Sim, o nacionalismo exaltado e exasperado...
Folha - O sr. foi convidado a falar e sugeriu um debate público,
a 7 de dezembro, mas ele não
compareceu. Oswald de Andrade exaltou-se. No dia 28, o sr.
escreveu sua "Carta Aberta", onde se lê: "Alarmante é a situação
de estagnação mental em que
vive amodorrado o meio musical brasileiro", que não admitia
a "lógica que nasce da própria
substância musical"; "a única
atitude digna de um artista" é
"a luta contra as forças disruptivas que separam os homens e
são o atraso, luta sincera e honesta em prol do progresso e do
humano na arte".
Koellreutter - É isso...
Folha - Como o sr. implementou seu projeto educacional?
Koellreutter - Desde 38, dava
aulas, particulares e em escolas.
Diretor da famosa sociedade Pró-Arte, Heuberger ofereceu capital
para criar uma escola de música
de acordo com minha pedagogia.
Em 50, fundei em Teresópolis o
Curso Internacional de Férias e,
em 52, em São Paulo, a Escola Livre de Música (Seminários de
Música). As escolas, de que era diretor, logo ganharam fama. O reitor da Universidade Federal da
Bahia, Edgar Santos (mais tarde,
ministro da Educação), me chamou para lá.
Em 54, fundei e passei a dirigir
os seminários internacionais de
música (Seminários Livres de
Música, em Salvador, origem da
Escola de Música da universidade). Fiz todo o setor de música, de
acordo com meus planos. Criei
setores de comunicação e percepção auditiva, de jazz e música popular (59) e de música experimental (60). Por atuação e métodos revolucionários, foi talvez
realmente a escola de música
mais importante no Brasil. Em 66
fundei na Índia a Escola de Música de Nova Delhi.
Folha - Também em Salvador
o sr. realizou os Seminários Interdisciplinares com o cientista
e crítico Mário Schenberg...
Koellreutter - Sempre pensei de
modo interdisciplinar. Na mesma
universidade, fizemos estes debates e estudos com diferentes disciplinas e profissões, visando ao ser
humano na sociedade moderna.
Trabalhei muito com Schenberg,
que era comunista, como Niemeyer. Eu não era do Partido Comunista, mas era simpatizante e continuo a ser.
Folha - Fale um pouco de sua
"antipedagogia".
Koellreutter - Aprendo com o
aluno o que ensinar. Há três preceitos: 1) não há valores absolutos,
só relativos; 2) não há coisa errada
em arte, o importante é inventar o
novo; 3) não acredite em nada
que o professor diz, em nada que
você ler e em nada que você pensar; pergunte sempre "por quê?".
Ensinar é desenvolver no aluno o
estilo pessoal. Sugeri abolir currículos acadêmicos e substituir
conservatórios por Centros de
Atividades Lúdicas e Criatividade
Musical e Institutos de Audiocomunicação e Música Aplicada.
O lema nos seminários de Teresópolis era "trabalho e recreação,
disciplina e liberdade". Não era a
rotina que governava os seminários, mas sim o espírito de pesquisa e investigação. É indispensável
que em todo o ensino artístico se
sinta o alento da criação. As artes
e a educação estética e humanista
devem encontrar lugar equivalente ao da ciência, da economia e da
tecnologia.
Folha - Em 75, ao voltar do
Oriente ao Brasil, o sr. lançou a
idéia de música funcional ("o futuro da música será a fusão com
atividades extramusicais")...
Koellreutter - Entendia música
utilitária como a aplicada a outras
áreas e funções, como terapia, teatro e cinema. Continuo com a
mesma preocupação, nada mudou, ao contrário, acho que ainda
vai se desenvolver melhor, com
tecnologia e experiência.
Folha - Quais seus músicos
preferidos?
Koellreutter - Primeiro são os
orientais -os japoneses e os indianos. A experiência no Oriente,
minha vivência na Índia e no Japão, foi vital e decisiva para minha estética. Na Europa, Ligeti,
Webern, Bach, Scelsi, talvez um
pouco de Stravinsky, Berg... É difícil. Sempre analisei obras de vários modos, não posso dizer "isso
não me interessa".
Folha - O Terceiro Mundo teve
importância para sua obra?
Koellreutter - Aprendi e me
transformei nesses países. Sentia
ali consciência aberta e disposição
para enfrentar problemas. Mas a
concentração sobre um ponto,
durante um tempo máximo, é
muito difícil ali, com exceções... O
lúdico desempenha um papel
muito importante no Terceiro
Mundo, sempre quis analisar isso.
O espírito lúdico de ver as coisas é
positivo. No fundo nós todos
brincamos.
Folha - O que o motivou a levar o compositor alemão Karlheinz Stockhausen ao rio Ganges (Índia)?
Koellreutter - Ele naturalmente
queria conhecer o lugar. Era muito sensível a esse tipo de pensamento místico, não sei se ainda
hoje é, mas de qualquer forma me
pediu para fazer a visita à nascente do Ganges. Foi uma experiência de impacto, nos planos místico, intelectual e da música de vanguarda. Acho que ele fez também
um barquinho de papel, que os
indianos colocam na água. Havia
junto à nascente uma árvore
Koelreuteria (Koelreuteria paniculata laxm, planta descoberta
por seu antepassado, o biólogo
Joseph Gottlieb Koelreuter, botânico do czar).
Folha - Por que o fascina a
idéia de im/precisão da ciência?
Koellreutter - Mesmo o impreciso tem de ser muito preciso em
relação aos fenômenos que tornam a coisa imprecisa. Por exemplo, elementos temporais da música: duração, silêncio e som. É a
mistura de precisão e imprecisão,
que é muito interessante, talvez
ainda mais para as gerações ou artistas do futuro do que para nós
no momento. Essas noções antidualistas são básicas na ciência
ocidental e na filosofia oriental.
No fundo já há essa tendência na
dodecafonia. A altura do som não
é muito exata, pode ser, mas se estiver exata fica morta. Há certa
margem de imprecisão que é necessária... Minhas idéias são baseadas em conceitos que nunca
são exatos, porque a alma não é
coisa exata. O impreciso tem que
ser tratado com precisão.
Folha - Como o sr. sintetiza essas informações para seu plano
artístico?
Koellreutter - Costumo parar
para pensar, porque começa uma
série de talvez influências, de pensamentos, de caminhos que se deveria observar justamente no futuro. Continua até agora. Mas
"c'est la vie". Muito interessante.
Eu sonho muito à noite, acho horrível (risos), só ultimamente, mas
às vezes eu não distingo bem entre isso o que eu sonhei e aquilo
que eu pensei realmente.
Folha - O que é a planimetria,
que o sr. criou?
Koellreutter - É uma técnica de
composição que organiza os signos musicais em diagramas multidirecionais de séries e estruturas. Relação profunda entre som e
silêncio, combina predeterminado (composição) e aleatório (improvisação). Valoriza ocorrências
a-causais e permutações, vivência
e percepção do tempo, em campos sonoros. Busca superar o
dualismo: consonância/dissonância, melodia/acorde, contraponto/harmonia, forte/fraco, definido/indefinido, correto/incorreto, belo/feio, vida/morte, imanência/transcendência. "Concretion" (60) foi meu primeiro ensaio planimétrico. A base é a minha "estética relativista do impreciso e do paradoxal".
Folha - Poderia falar sobre a
música "Ácronon" (78-79)?
Koellreutter - É um ensaio (pois
são configurações abertas e delineadas), de forma planimétrica,
variável e assimétrica. São três
graus de andamento e 18 módulos
(gestalts) sonoros, combinados
aleatoriamente pelo intérprete,
seguindo a partitura escrita (em
cores) numa esfera transparente.
"Ácronon" significa ser independente e livre do tempo medido, do
tempo do relógio, do metrônomo
e, em termos musicais, da métrica
racional, da duração determinada, do compasso. É uma tentativa
de realizar música que ocorre no
âmbito de um tempo qualitativo
-o tempo como forma de percepção.
Folha - E a ópera "Café"?
Koellreutter - Mário de Andrade terminou o libreto em 42. Eu
comecei a musicar trechos em
74/75, quando ainda morava em
Tóquio, e terminei em 96. Para o
tema da revolução popular, de
fundo mítico, combinei procedimentos planimétricos, atonais,
dodecafônicos, seriais, assimétricos e aleatórios. Entre a composição disciplinada e a improvisação,
há até um samba dodecafônico.
Folha - O sr. já compôs trilha
sonora para filme?
Koellreutter - Uma única vez. O
filme chamava-se "Mãe" (48) e
quem fez a trilha sonora foi o grupo Música Viva -eu, Cláudio
Santoro, Edino Krieger e Guerra
Peixe.
Folha - Além desse filme, nunca mais teve convite para fazer
música de cinema?
Koellreutter - Não... Mas parece
que tenho um agora, com o filme
de vocês... (risos).
Folha - O sr. acha que o cinema teria alguma contribuição a
dar a sua obra?
Koellreutter - Acho que tem,
são pólos de discussão, mas eu
não tive ocasião de penetrar mais
no assunto. Fazendo o que vocês
me pediram, compor realmente
para uma determinada cena ou
cenas, talvez vá me abrir certos
horizontes.
Folha - Quais suas novas composições?
Koellreutter - Tenho trabalhado no "Fausto", de Fernando Pessoa e Goethe, mas no momento
estou mais preocupado com o colega dele.
Folha - Quem é o colega do
Fausto?
Koellreutter - Macunaíma!
Folha - Será uma ópera ou
uma cantata, como "Café"?
Koellreutter - Boa pergunta. No
momento estou pensando num
oratório. Chamo "Café" de ópera
e de fato tudo é cantado. Mas talvez seja mais um oratório cênico.
Em "Macunaíma", eu estou na fase "de expulsar" certas coisas.
Folha - Qual é a função da arte
no mundo?
Koellreutter - A arte é uma contribuição para o alargamento da
consciência do novo ou do desconhecido e para a modificação do
homem e da sociedade. É necessário que a arte se converta em fator funcional de estética e humanização do processo civilizador
em todos os seus aspectos. A função do artista deve ser a de contribuir para a conscientização das
grandes idéias que formam a nossa realidade atual.
Carlos Adriano é diretor de cinema; realizou os filmes "Remanescências" e "A Voz e o
Vazio: A Vez de Vassourinha". Seu próximo
projeto é o longa-metragem "Koellreutter: A
Experiência do Tempo".
Bernardo Vorobow é curador de cinema e
programador cultural. É produtor do longa
"Koellreutter: A Experiência do Tempo".
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