São Paulo, Domingo, 07 de Novembro de 1999
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Koellreutter por Caetano


especial para a Folha

Embora não tenha sido aluno de Hans-Joachim Koellreutter, Caetano Veloso reconhece como acontecimento "determinante" de sua formação a atividade musical de vanguarda desenvolvida na Bahia pelo maestro, nos anos 60. Entre a referência e a reverência, Caetano falou à Folha, por telefone, sobre Koellreutter.

Folha - Qual foi o seu primeiro contato com Koellreutter?
Caetano Veloso -
Não tenho uma idéia precisa de quando foi a primeira vez que eu vi o maestro Koellreutter. Quando eu fui de Santo Amaro para Salvador, em 1960, eu e Bethânia passamos a ir com muita frequência à reitoria da universidade para ouvir os concertos apresentados pelos Seminários Livres de Música, que Koellreutter dirigia e que ele fundou em colaboração com o reitor Edgar Santos. E ali eu ouvia o nome dele, tive a oportunidade de vê-lo uma vez ou outra, as pessoas me apontavam, me diziam quem ele era. Mas eu nunca estive com ele. Eu estive muitas vezes nos seminários, gostava de ir lá, era um ambiente agradável, um ponto de encontro, alguns amigos estudaram lá, como o Tom Zé.

Folha - Como eram os concertos?
Caetano -
Eles faziam um repertório muito interessante, porque era muito variado, vivo. Eu me lembro que a gente ouvia naturalmente Beethoven, Mozart, Brahms, mas também concertos de Gershwin. Uma vez, o David Tudor veio se apresentar e executou a peça de John Cage para piano preparado e rádios. Coincidiu de ele ligar o rádio e o locutor falar: "Rádio Bahia, Cidade do Salvador". Eu vi essa apresentação e fiquei muito impressionado, foi muito impactante.
Havia uma gama muito vasta de informação, aquelas coisas me excitavam muito. Para ser sincero, eram coisas que eu já desejava. Curiosamente, eu não sabia que aquelas coisas existiam, mas eu já pressupunha, por causa de outros dados... A modernidade se insinua, não é? E, mesmo crescendo entre os anos 40 e 50 numa pequena cidade do interior da Bahia, você tem os estímulos da modernidade, dos seus impulsos essenciais. Fosse a prosa de Guimarães Rosa ou um quadro de Mondrian e finalmente uma música como a de John Cage, os procedimentos de vanguarda eram previstos, desejados, por mim e possivelmente por muita gente na Bahia, porque aquilo repercutiu em muitas pessoas.

"Sempre tenho uma relação antipática diante daqueles que gostariam de se livrar das experiências radicais das vanguardas do século 20, de voltar atrás e de apagá-las, fingir que elas não existiram"
(Caetano)

Folha - Como você sintetizou essas influências em seu processo criativo?
Caetano -
A presença de Koellreutter e o que se dizia dele e essas coisas que eu vi na reitoria foram determinantes na minha formação. Eu pintava e queria fazer cinema. Quando, depois de muitos acasos, terminei fazendo música popular e me profissionalizando quase à força, vi tudo o que fora vivenciado: os concertos organizados por Koellreutter, as exposições projetadas por Lina Bardi, os espetáculos de teatro de Martim Gonçalves, às vezes com a colaboração de Koellreutter, como na "Ópera dos Três Tostões" (de Brecht e Weill). Aquilo tudo ficou na minha cabeça.
O Koellreutter foi a figura diante da qual eu me senti, mesmo de longe, mais tímido. Eu nunca falei com ele pessoalmente. Eu o vi uma outra vez, não faz muito tempo, na reinauguração do Teatro José de Alencar em Fortaleza (91), apresentando com os trabalhadores uma peça que fez para aquele evento mesmo ("Rodô", "trabalho" em japonês, obra composta para ferramentas dos operários da construção civil que trabalharam na reconstrução do teatro). Acho que foi o único contato pessoal que eu tive com ele.
Tampouco tive contato pessoal com Martim Gonçalves. Com Lina Bardi, eu cheguei a conversar algumas vezes em São Paulo, já perto do fim da vida dela. De uma certa forma, diante da figura de Koellreutter, eu me senti sempre mais intimidado e suponho que seja sobretudo pelo fato de ele trabalhar com música.

Folha - Como as informações adquiridas na Bahia animaram o espírito tropicalista?
Caetano -
As posições que tomei nos anos 60, que me pareceram as mais vitais para a questão da música popular no Brasil naquele momento, podem estar e sem dúvida estão influenciadas pelo ambiente que eu vivi em Salvador e no qual Koellreutter desempenhava papel fundamental.
Fomos informados em primeiro lugar de que havia tais e tais coisas e tomamos contato com elas. Era muito mais uma exposição abrangente de possibilidades, com um mínimo de didatismo, para que você situasse aquilo, porém sem nenhum "parti pris" ideológico. Era uma espécie de alimentação de uma juventude. Nisso eles foram muito bem-sucedidos, porque dali saiu toda uma geração de pessoas que se tornaram notórias, mas também muita gente anônima, cujas vidas sei que foram decididamente transformadas por essa carga de informações. O resultado final foi muito estimulante e deu uma liberdade muito grande. Nunca estudei música, nem com ele nem com ninguém. Por outro lado o que eu faço é música, música popular, mas música... O que me aproxima e me distancia dele.

Folha - Como você vê hoje as vanguardas?
Caetano -
Até hoje sinto muita atração por esse ambiente mental das vanguardas, tudo o que aconteceu com a arte no século 20, que é uma espécie de radicalização da condição da modernidade. Mesmo quando às vezes penso que talvez essas atitudes de vanguarda representassem como que o fim de alguma coisa -o que dá o direito a muita gente de mencionar o que veio depois como pós-moderno e considerar hoje em dia essas atitudes já datadas, de uma certa forma-, eu sempre tenho uma relação muito desconfiada, e antipática mesmo, diante daqueles que gostariam de se livrar dessas experiências radicais, de voltar atrás e de apagá-las e fingir que elas não aconteceram e de não querer assumir as consequências que possam ter vindo delas ou que possam delas advir. Eu tenho um espécie de ojeriza às pessoas que são, quanto a essas coisas, reacionárias. É curioso, porque ao mesmo tempo eu faço música para as massas, mas eu faço uma confusão nesse ambiente. Vivo como que experimentando...

Folha - Em seu sentido utópico e original, a vanguarda aspirava a ser popular...
Caetano -
Tem um sentido utópico original e, por outro lado, tem uma realização bastarda, porém real... A própria idéia de democratização dos saberes, de democracia moderna, está ligada a essas coisas... O fato de haver música popular e haver uma música popular que se sofistica, como foi o caso do jazz, que tem uma espécie de erudição interna... Essa vinculação da cultura de massas com a vanguarda, com mais simpatia do que muitas áreas da cultura dita séria, é algo realmente curioso. No caso do cinema mesmo -o que eu digo no meu filme "O Cinema Falado" (86)-, ocorre que o videoclipe de rock'n'roll está mais perto dos filmes experimentais de vanguarda do que todo o cinema, do que todo Bergman, todo Fellini, todo Antonioni...
(CARLOS ADRIANO e BERNARDO VOROBOW)


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