|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
Koellreutter por Caetano
especial para a Folha
Embora não tenha sido aluno
de Hans-Joachim Koellreutter,
Caetano Veloso reconhece como
acontecimento "determinante"
de sua formação a atividade musical de vanguarda desenvolvida na
Bahia pelo maestro, nos anos 60.
Entre a referência e a reverência,
Caetano falou à Folha, por telefone, sobre Koellreutter.
Folha - Qual foi o seu primeiro contato com Koellreutter?
Caetano Veloso - Não tenho
uma idéia precisa de quando foi a
primeira vez que eu vi o maestro
Koellreutter. Quando eu fui de
Santo Amaro para Salvador, em
1960, eu e Bethânia passamos a ir
com muita frequência à reitoria
da universidade para ouvir os
concertos apresentados pelos Seminários Livres de Música, que
Koellreutter dirigia e que ele fundou em colaboração com o reitor
Edgar Santos. E ali eu ouvia o nome dele, tive a oportunidade de
vê-lo uma vez ou outra, as pessoas
me apontavam, me diziam quem
ele era. Mas eu nunca estive com
ele. Eu estive muitas vezes nos seminários, gostava de ir lá, era um
ambiente agradável, um ponto de
encontro, alguns amigos estudaram lá, como o Tom Zé.
Folha - Como eram os concertos?
Caetano - Eles faziam um repertório muito interessante, porque era muito variado, vivo. Eu
me lembro que a gente ouvia naturalmente Beethoven, Mozart,
Brahms, mas também concertos
de Gershwin. Uma vez, o David
Tudor veio se apresentar e executou a peça de John Cage para piano preparado e rádios. Coincidiu
de ele ligar o rádio e o locutor falar: "Rádio Bahia, Cidade do Salvador". Eu vi essa apresentação e
fiquei muito impressionado, foi
muito impactante.
Havia uma gama muito vasta de
informação, aquelas coisas me excitavam muito. Para ser sincero,
eram coisas que eu já desejava.
Curiosamente, eu não sabia que
aquelas coisas existiam, mas eu já
pressupunha, por causa de outros
dados... A modernidade se insinua, não é? E, mesmo crescendo
entre os anos 40 e 50 numa pequena cidade do interior da Bahia,
você tem os estímulos da modernidade, dos seus impulsos essenciais. Fosse a prosa de Guimarães
Rosa ou um quadro de Mondrian
e finalmente uma música como a
de John Cage, os procedimentos
de vanguarda eram previstos, desejados, por mim e possivelmente
por muita gente na Bahia, porque
aquilo repercutiu em muitas pessoas.
"Sempre tenho uma
relação antipática
diante daqueles que
gostariam de se livrar
das experiências
radicais das vanguardas
do século 20,
de voltar atrás e
de apagá-las, fingir
que elas não existiram"
(Caetano)
|
Folha - Como você sintetizou
essas influências em seu processo criativo?
Caetano - A presença de Koellreutter e o que se dizia dele e essas
coisas que eu vi na reitoria foram
determinantes na minha formação. Eu pintava e queria fazer cinema. Quando, depois de muitos
acasos, terminei fazendo música
popular e me profissionalizando
quase à força, vi tudo o que fora
vivenciado: os concertos organizados por Koellreutter, as exposições projetadas por Lina Bardi, os
espetáculos de teatro de Martim
Gonçalves, às vezes com a colaboração de Koellreutter, como na
"Ópera dos Três Tostões" (de
Brecht e Weill). Aquilo tudo ficou
na minha cabeça.
O Koellreutter foi a figura diante
da qual eu me senti, mesmo de
longe, mais tímido. Eu nunca falei
com ele pessoalmente. Eu o vi
uma outra vez, não faz muito
tempo, na reinauguração do Teatro José de Alencar em Fortaleza
(91), apresentando com os trabalhadores uma peça que fez para
aquele evento mesmo ("Rodô",
"trabalho" em japonês, obra composta para ferramentas dos operários da construção civil que trabalharam na reconstrução do teatro). Acho que foi o único contato
pessoal que eu tive com ele.
Tampouco tive contato pessoal
com Martim Gonçalves. Com Lina Bardi, eu cheguei a conversar
algumas vezes em São Paulo, já
perto do fim da vida dela. De uma
certa forma, diante da figura de
Koellreutter, eu me senti sempre
mais intimidado e suponho que
seja sobretudo pelo fato de ele trabalhar com música.
Folha - Como as informações
adquiridas na Bahia animaram o espírito tropicalista?
Caetano - As posições que tomei nos anos 60, que me pareceram as mais vitais para a questão
da música popular no Brasil naquele momento, podem estar e
sem dúvida estão influenciadas
pelo ambiente que eu vivi em Salvador e no qual Koellreutter desempenhava papel fundamental.
Fomos informados em primeiro lugar de que havia tais e tais
coisas e tomamos contato com
elas. Era muito mais uma exposição abrangente de possibilidades,
com um mínimo de didatismo,
para que você situasse aquilo, porém sem nenhum "parti pris"
ideológico. Era uma espécie de
alimentação de uma juventude.
Nisso eles foram muito bem-sucedidos, porque dali saiu toda
uma geração de pessoas que se
tornaram notórias, mas também
muita gente anônima, cujas vidas
sei que foram decididamente
transformadas por essa carga de
informações. O resultado final foi
muito estimulante e deu uma liberdade muito grande. Nunca estudei música, nem com ele nem
com ninguém. Por outro lado o
que eu faço é música, música popular, mas música... O que me
aproxima e me distancia dele.
Folha - Como você vê hoje as
vanguardas?
Caetano - Até hoje sinto muita
atração por esse ambiente mental
das vanguardas, tudo o que aconteceu com a arte no século 20, que
é uma espécie de radicalização da
condição da modernidade. Mesmo quando às vezes penso que
talvez essas atitudes de vanguarda
representassem como que o fim
de alguma coisa -o que dá o direito a muita gente de mencionar
o que veio depois como pós-moderno e considerar hoje em dia essas atitudes já datadas, de uma
certa forma-, eu sempre tenho
uma relação muito desconfiada, e
antipática mesmo, diante daqueles que gostariam de se livrar dessas experiências radicais, de voltar atrás e de apagá-las e fingir que
elas não aconteceram e de não
querer assumir as consequências
que possam ter vindo delas ou
que possam delas advir. Eu tenho
um espécie de ojeriza às pessoas
que são, quanto a essas coisas,
reacionárias. É curioso, porque ao
mesmo tempo eu faço música para as massas, mas eu faço uma
confusão nesse ambiente. Vivo
como que experimentando...
Folha - Em seu sentido utópico e original, a vanguarda aspirava a ser popular...
Caetano - Tem um sentido utópico original e, por outro lado,
tem uma realização bastarda, porém real... A própria idéia de democratização dos saberes, de democracia moderna, está ligada a
essas coisas... O fato de haver música popular e haver uma música
popular que se sofistica, como foi
o caso do jazz, que tem uma espécie de erudição interna... Essa vinculação da cultura de massas com
a vanguarda, com mais simpatia
do que muitas áreas da cultura dita séria, é algo realmente curioso.
No caso do cinema mesmo -o
que eu digo no meu filme "O Cinema Falado" (86)-, ocorre que
o videoclipe de rock'n'roll está
mais perto dos filmes experimentais de vanguarda do que todo o
cinema, do que todo Bergman, todo Fellini, todo Antonioni...
(CARLOS ADRIANO e BERNARDO VOROBOW)
Texto Anterior: Koellreutter por Tom Zé Próximo Texto: Ouvir e ler Koellreutter Índice
|