São Paulo, domingo, 07 de novembro de 2004

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Ponto de fuga

As palavras e as crenças

Jorge Coli
especial para a Folha

"... A eloqüência militar, esta eloqüência singular do soldado, que é tanto mais expressiva quanto é mais rude -feita de frases sacudidas e breves, como as vozes de comando, e em que as palavras mágicas -pátria, glória e liberdade- ditas em todos os tons, são toda a matéria-prima dos períodos retumbantes."
Euclides da Cunha, em "Os Sertões", mais precisamente na passagem que conta a travessia do Cambaio, assinala assim o caráter emotivo, banhado em irracionalismo, das palavras que movem os sentimentos militares. Elas não existem para ser compreendidas, analisadas e, muito menos, discutidas. São palavras motoras, que desencadeiam ações rigorosamente irrefletidas.
Antes de todas, vem "pátria". Provoca entusiasmos, arroubos. Abriga mais vibrações que significados. Seu poder é encantatório, ao qual se ascende pela força da fé, pela prece, pela jaculatória hipnótica e exclamativa: "Pátria amada! Idolatrada! Salve! Salve!".
Fantasias comovidas, essas fórmulas levam a convicções tão fortes que suplantam qualquer realidade. A pátria, a nação possuem a natureza de abstrações, de ficções, de generalidades. São sentidas, porém, como verdades mais poderosas do que aquilo que é, que existe, no concreto.
Assim, para salvar a pátria, a nação e, já que tudo aqui é fábula, até mesmo a liberdade, torna-se permitido matar, torturar, prender, exilar, suprimir direitos humanos elementares. As supostas fotos de Vladimir Herzog, publicadas recentemente nos jornais, trazem com elas esse pressuposto. A reação que suscitaram no Exército, com a nota renegada depois, mas sempre sintomática, comprova que, para alguns, a pátria continua acima das instituições e dos homens.

Carnaval - Naquela nota do Exército, uma passagem se refere à "índole cristã e pacífica de nosso povo". Apropriação senhorial, superior, de povo pelo possessivo "nosso", povo que "nós" dirigimos ou vigiamos, mas com o qual "nós" não nos misturamos. Sobretudo, afirmação de que brasileiros possuem uma índole, pacífica e cristã. Qual seria a índole dos suíços? Dos belgas? Dos japoneses? Dos árabes? Dos judeus? Eles também têm índoles. Que são construções mentais ilusórias e aberrantes como aquela formulada pelos militares na frase citada.
"A Criação das Identidades Nacionais", de Anne-Marie Thiesse, entre os livros sobre esses problemas, traça um percurso histórico, intrincado e exemplar. Ele desfaz todas as ilusões nacionais. O original é francês (ed. Seuil, 1999); há uma edição portuguesa (ed. Temas e Debates, 2000), que deveria estar em todas as estantes brasileiras, abalando crendices e mitos ideológicos ainda tão vivos. Identidades nacionais, pátrias, índoles, raízes revelam-se, de fato, quimeras voluntaristas que se modificam segundo os interesses, os pontos de vista, excelentes instrumentos para arregimentar, controlar, patrulhar.

Futebol - "Nada mais internacional que a formação das identidades nacionais", reza a primeira frase do livro de Anne-Marie Thiesse. Essas identidades têm apenas 200 anos. Multiplicaram-se ao mesmo tempo, usando os mesmos instrumentos, um "kit" ideológico, como diz a autora. Apesar disso, serviram para afirmar o "nosso" como superior, e o "nós" contra o "outro", que se torna facilmente o "inimigo".
Em nome desse "nós" e desse "outro", imaginários porém opostos, explodem guerras, mortes e massacres.

Samba - As nações inventaram suas histórias, e as histórias fortaleceram as nações. Histórias afirmativas, elas secundam hinos, bandeiras e monumentos. Celebram e reiteram. Mas há outra história, felizmente. Ela busca refletir, com rigor, a partir dos traços deixados pelos homens no passado. Traços incômodos, pois permitem desmontar credos e ficções. É mau sinal quando eles são ocultados ou dissimulados. Os arquivos, auxiliares primordiais do historiador, guardam muitas dessas marcas e cicatrizes essenciais. Por isso mesmo deveriam estar sempre abertos. Por isso mesmo, muitos temem que eles se abram. Em nome da pátria, da nacionalidade, da índole.


Jorge Coli é historiador da arte.
E-mail: jorgecoli@uol.com.br


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