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Ponto de fuga
As palavras e as crenças
Jorge Coli
especial para a Folha
"... A eloqüência militar, esta eloqüência singular do soldado, que é tanto mais expressiva quanto é mais rude
-feita de frases sacudidas e breves, como as vozes de comando, e em que as palavras mágicas -pátria, glória e liberdade- ditas em todos os tons, são toda a matéria-prima dos períodos retumbantes."
Euclides da Cunha, em "Os Sertões", mais precisamente
na passagem que conta a travessia do Cambaio, assinala
assim o caráter emotivo, banhado em irracionalismo, das
palavras que movem os sentimentos militares. Elas não
existem para ser compreendidas, analisadas e, muito menos, discutidas. São palavras motoras, que desencadeiam
ações rigorosamente irrefletidas.
Antes de todas, vem "pátria". Provoca entusiasmos, arroubos. Abriga mais vibrações que significados. Seu poder
é encantatório, ao qual se ascende pela força da fé, pela
prece, pela jaculatória hipnótica e exclamativa: "Pátria
amada! Idolatrada! Salve! Salve!".
Fantasias comovidas, essas fórmulas levam a convicções
tão fortes que suplantam qualquer realidade. A pátria, a
nação possuem a natureza de abstrações, de ficções, de generalidades. São sentidas, porém, como verdades mais poderosas do que aquilo que é, que existe, no concreto.
Assim, para salvar a pátria, a nação e, já que tudo aqui é
fábula, até mesmo a liberdade, torna-se permitido matar,
torturar, prender, exilar, suprimir direitos humanos elementares. As supostas fotos de Vladimir Herzog, publicadas recentemente nos jornais, trazem com elas esse pressuposto. A reação que suscitaram no Exército, com a nota
renegada depois, mas sempre sintomática, comprova que,
para alguns, a pátria continua acima das instituições e dos
homens.
Carnaval - Naquela nota do Exército, uma passagem se refere à "índole cristã e pacífica de nosso povo". Apropriação senhorial, superior, de povo pelo possessivo "nosso",
povo que "nós" dirigimos ou vigiamos, mas com o qual
"nós" não nos misturamos. Sobretudo, afirmação de que
brasileiros possuem uma índole, pacífica e cristã. Qual seria a índole dos suíços? Dos belgas? Dos japoneses? Dos
árabes? Dos judeus? Eles também têm índoles. Que são
construções mentais ilusórias e aberrantes como aquela
formulada pelos militares na frase citada.
"A Criação das Identidades Nacionais", de Anne-Marie
Thiesse, entre os livros sobre esses problemas, traça um
percurso histórico, intrincado e exemplar. Ele desfaz todas
as ilusões nacionais. O original é francês (ed. Seuil, 1999);
há uma edição portuguesa (ed. Temas e Debates, 2000),
que deveria estar em todas as estantes brasileiras, abalando crendices e mitos ideológicos ainda tão vivos. Identidades nacionais, pátrias, índoles, raízes revelam-se, de fato,
quimeras voluntaristas que se modificam segundo os interesses, os pontos de vista, excelentes instrumentos para arregimentar, controlar, patrulhar.
Futebol - "Nada mais internacional que a formação das
identidades nacionais", reza a primeira frase do livro de
Anne-Marie Thiesse. Essas identidades têm apenas 200
anos. Multiplicaram-se ao mesmo tempo, usando os mesmos instrumentos, um "kit" ideológico, como diz a autora. Apesar disso, serviram para afirmar o "nosso" como
superior, e o "nós" contra o "outro", que se torna facilmente o "inimigo".
Em nome desse "nós" e desse "outro", imaginários porém opostos, explodem guerras, mortes e massacres.
Samba - As nações inventaram suas histórias, e as histórias fortaleceram as nações. Histórias afirmativas, elas secundam hinos, bandeiras e monumentos. Celebram e reiteram. Mas há outra história, felizmente. Ela busca refletir,
com rigor, a partir dos traços deixados pelos homens no
passado. Traços incômodos, pois permitem desmontar
credos e ficções. É mau sinal quando eles são ocultados ou
dissimulados. Os arquivos, auxiliares primordiais do historiador, guardam muitas dessas marcas e cicatrizes essenciais. Por isso mesmo deveriam estar sempre abertos.
Por isso mesmo, muitos temem que eles se abram. Em nome da pátria, da nacionalidade, da índole.
Jorge Coli é historiador da arte.
E-mail: jorgecoli@uol.com.br
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