São Paulo, domingo, 07 de dezembro de 2008

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O PARAÍSO INGLÊS

O historiador Simon Schama faz uma livre interpretação do Brasil a partir de suas passagens por Porto Alegre e São Paulo, no mês passado

SIMON SCHAMA

Metade de novembro. Estamos na primavera, portanto, ou pelo menos o Brasil está, e era lá que eu precisava estar para escapar do outono em Nova York: abóboras, o farfalhar lúgubre das folhas caindo, as conversas suburbanas alegres sobre o clima revigorante, enquanto eu continuo a lamentar o fim do verão nada revigorante, do calor denso e suarento que continua a ser meu clima ideal.
E talvez fosse possível que eu tivesse dito absolutamente tudo que era capaz de dizer sobre Barack Obama (pelo menos por algum tempo), e portanto a hora não poderia ser melhor para mudar de ares e conversar com 800 brasileiros sobre Picasso e Goya. Bem, foram eles que pediram.
Por "eles" quero dizer os benévolos promotores de um seminário universitário em Porto Alegre, perto da fronteira com o Uruguai e a Argentina, chamado "Fronteiras do Pensamento", que presumi estaríamos convidados a cruzar. [A crítica] Camille Paglia, renomada exatamente pelas fronteiras atravessadas, havia estado lá no ano passado, para falar sobre sexo na arte e por duas horas e meia, disseram os organizadores.
Eles me olharam com sinceridade ao contar sobre isso, e imagino que tenham feito uma careta diante da idéia de tanto sexo por parte da professora Paglia. Mas o meu tema era calamidade, e uma hora disso é mais que suficiente.

Intensidade
Eu havia visitado o Brasil dez anos antes para promover uma tradução de "Paisagem e Memória" [Companhia das Letras], e não foi muito difícil me encantar.
Vislumbres de paraíso e de inferno surgiam constantemente: mulheres altas mais deslizavam do que andavam pelas ruas, como se estivessem caminhando com passos de samba; garças e garças-reais faziam ninhos em meio aos detritos e ao esgoto do canal [rio Tietê] que fica entre o aeroporto e São Paulo; a inocente intensidade dos jornalistas, que queriam que eu lhes falasse sobre a liberdade de imprensa no Reino Unido, em um momento em que os brasileiros ainda não haviam se acostumado à sua liberdade depois da ditadura militar [1964-85]; o abraço alegre e caloroso de um sujeito imenso, vestindo roupas enfeitadas por lantejoulas, que se apresentou como "sou Roberto, o rei da favela, e você precisa nos visitar".
"Sim", eu respondi, confirmando, enquanto meu editor, um sujeito doce, mas dado a preocupações, abanava a cabeça negativamente e ao mesmo tempo virava os olhos de forma enfática (um feito notável até mesmo para um brasileiro), o que eu entendi como um sinal negativo.
Acabrunhado, Roberto me beijou na boca -algo inédito em qualquer das minhas visitas para promoção de livros-, mas nem isso bastou para que o editor revertesse sua decisão. No Rio, em Ipanema, garotos de pernas longas jogavam bola na praia, e outros exigiam dinheiro quando você estacionava o carro, prometendo "tomar conta dele" -e certamente a alternativa era algo que não valia a pena contemplar.
Oh, sim, eu amo o Brasil, mas Porto Alegre foi diferente: menos tropical, mais -infelizmente- européia. Fala-se muito sobre os alemães e italianos que se radicaram lá, e um pelotão germânico formado por sujeitos bêbados na metade do dia se instalou no avião, ocupando os assentos que lhes parecessem mais convenientes, sem respeitar os lugares marcados; gritos estridentes de "Markus" e "Thomas" se faziam ouvir pelos corredores sem outro motivo que não a expressão de "kameradschaft" [camaradagem] no hemisfério Sul.
O avião acompanhava a costa do Atlântico, e as ondas rolavam lá embaixo, enquanto os comissários de bordo fingiam que a cerveja tinha acabado.

Feijoada no Sul
Porto Alegre é uma cidade que encanta de imediato, um mar de jacarandás azuis floridos, repleta de cafés com mesas na calçada instalados entre as casas ao estilo colonial brasileiro, com empenas repletas de detalhes, como as costeletas de um gaúcho, e toques de tinta carmesim ou dourada.
Era domingo, o que queria dizer feijoada no cardápio, até mesmo no Sheraton; uma ampla gama de carnes escuras, cozidas, acompanhadas de farinha de mandioca, que eu me lembro de ter amado na primeira visita e de ter voltado a apreciar na segunda: uma mistura de macio e crocante -que pode não parecer saborosa, mas termina sendo excelente.
No parque, um menino puxou um violão e cantou um samba para impressionar, enquanto um círculo de capoeiristas praticava ao som surdo de um tambor.
Havia uma feira de livros em curso -não do tipo que envolve eventos e as celebridades de sempre, mas uma praça bonita, à sombra, na qual 50 barracas exibiam as mercadorias dos livreiros e editores locais.
Os organizadores estavam orgulhosos dos princípios igualitários do evento, e foi espantoso encontrar, em uma era na qual a morte da palavra impressa é anunciada prematuramente, uma cidade brasileira não muito grande na qual parece haver uma pequena editora a cada esquina.
Charles Kiefer, o bem-apessoado professor com quem almoçamos, caminhou conosco até uma das barracas e nos mostrou os cerca de 30 volumes que contêm os trabalhos de ficção de seus alunos.
A cada ano um volume novo, e o professor não poderia se sentir melhor. Caso a ficção brasileira esteja em perigo, certamente a culpa não é dele.
Eu mesmo estava lendo "As Aventuras e Desventuras de Maqroll", uma coleção de contos do escritor colombiano Álvaro Mutis, um livro tão espetacularmente rico e sensual que o final de cada história causa raiva do autor.
"Ah", disse Kiefer, "tão bom", como se estivesse saboreando um excelente vinho, e acrescentando, com um pequeno suspiro, que eu talvez pudesse apreciar uma exposição sobre Gilberto Freyre [1900-87] em um banco local [no Santander Cultural].

Feitiço freyriano
Freyre! Havia 40 anos eu não pensava nele, um poeta entre os historiadores, o narrador da diferença brasileira: casa-grande e senzala tornadas talvez um pouco menos brutais pela miscigenação; o berço da cultura mestiça. Ah, claro. Escravidão em forma de samba não conta.
Eu estava ciente da fantasia havia muito tempo, mas existia algo de perversamente belo na escrita onírica de Freyre e a exposição, sob um teto de vitrais que promoviam "prudência", "dedicação" e virtudes semelhantes, de algum modo capturava perfeitamente o sortilégio. As pinturas de Freyre, em cores tropicais, eram exibidas sobre bandejas de areia; armários com gavetas, descascados, tinham as portas abertas para exibir cardápios desbotados de banquetes, fotos amassadas e trechos de diário.
Na entrada, era preciso passar pela saia de um imenso boneco carnavalesco -outra forma de sedução brasileira, e eu conseguia sentir meu ceticismo setentrional se esvaindo nos ares gentis da tarde.
Fiz a palestra: 800 espectadores generosos e receptivos, a maior parte dos quais parecia interessada em fazer perguntas, o que muitos fizeram. Por fim, nossos anfitriões nos levaram a um fino restaurante francês onde teria sido rude recusar o foie gras.
Foi apenas em nossa última noite em São Paulo que Marcello Dantas, o projetista de muitos dos mais brilhantes museus e exposições brasileiros, nos levou a um restaurante de comida brasileira: peixes do Amazonas ("nem de água salgada nem de água doce: repletos de ótimos nutrientes fluviais", disse Dantas sorrindo); palmitos frescos, quentes e sedosos no palato; um sorvete de banana estupendamente sutil (o que pode parecer contradição, mas é exatamente a definição que o prato merece).

Visual paulistano
Se você voa a São Paulo de outra cidade brasileira, aterrissa (caso o vôo se destine ao aeroporto local) em um lugar espantoso, cercado de edifícios de escritórios bem perto, como se estivéssemos vendo uma maquete de "Blade Runner" -uma cidade de 120 quilômetros de extensão, com favelas empilhadas umas sobre as outras, moda esplêndida de estilistas como Rosa Chá e Gloria Coelho, que usa lantejoulas de uma maneira que não consigo nem começar a explicar aos leitores do "Financial Times".
E, no entanto, esse formigueiro humano movimentadíssimo não tem outdoors. O prefeito decidiu que eles constituíam "poluição visual" e deu aos proprietários um prazo para removê-los, sob pena de multa de R$ 10 mil.
A cidade pulsa sob a fumaça dos escapamentos, com 11 milhões de paulistanos que estão simplesmente tentando sobreviver até o final da semana. Um lugar para heróis.
Na viagem de volta para Nova York, minha atenção está voltada às aventuras que Muti imaginou para Maqroll, o gajeiro; contemplei a floresta tropical e a costa que se afastavam e senti saudade. O Brasil é um dos lugares em que seus terminais nervosos trabalham em ritmo dobrado, e você jamais deseja que eles suspendam sua dança, seu zumbido.
De volta ao vale do rio Hudson, tudo se desacelerou. O mercado de frutas e verduras da estação ferroviária local oferecia muitos produtos saborosos. As pessoas se moviam energicamente, em ritmo de outono, e pareciam deliciadas com a expectativa de um novo e belo presidente.


Este texto foi publicado no jornal inglês "Financial Times". Tradução de Paulo Migliacci.



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