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O PARAÍSO INGLÊS
O historiador Simon Schama
faz uma livre interpretação do Brasil
a partir
de suas passagens por
Porto Alegre
e São Paulo,
no mês passado
SIMON SCHAMA
Metade de novembro. Estamos na primavera, portanto,
ou pelo menos
o Brasil está, e era lá que eu
precisava estar para escapar do
outono em Nova York: abóboras, o farfalhar lúgubre das folhas caindo, as conversas suburbanas alegres sobre o clima
revigorante, enquanto eu continuo a lamentar o fim do verão
nada revigorante, do calor denso e suarento que continua a
ser meu clima ideal.
E talvez fosse possível que eu
tivesse dito absolutamente tudo que era capaz de dizer sobre
Barack Obama (pelo menos
por algum tempo), e portanto a
hora não poderia ser melhor
para mudar de ares e conversar
com 800 brasileiros sobre Picasso e Goya. Bem, foram eles
que pediram.
Por "eles" quero dizer os benévolos promotores de um seminário universitário em Porto
Alegre, perto da fronteira com
o Uruguai e a Argentina, chamado "Fronteiras do Pensamento", que presumi estaríamos convidados a cruzar.
[A crítica] Camille Paglia, renomada exatamente pelas
fronteiras atravessadas, havia
estado lá no ano passado, para
falar sobre sexo na arte e por
duas horas e meia, disseram os
organizadores.
Eles me olharam com sinceridade ao contar sobre isso, e
imagino que tenham feito uma
careta diante da idéia de tanto
sexo por parte da professora
Paglia. Mas o meu tema era calamidade, e uma hora disso é
mais que suficiente.
Intensidade
Eu havia visitado o Brasil dez
anos antes para promover uma
tradução de "Paisagem e Memória" [Companhia das Letras], e não foi muito difícil me
encantar.
Vislumbres de paraíso e de
inferno surgiam constantemente: mulheres altas mais
deslizavam do que andavam
pelas ruas, como se estivessem
caminhando com passos de
samba; garças e garças-reais faziam ninhos em meio aos detritos e ao esgoto do canal [rio Tietê] que fica entre o aeroporto e
São Paulo; a inocente intensidade dos jornalistas, que queriam que eu lhes falasse sobre a
liberdade de imprensa no Reino Unido, em um momento em
que os brasileiros ainda não haviam se acostumado à sua liberdade depois da ditadura militar
[1964-85]; o abraço alegre e caloroso de um sujeito imenso,
vestindo roupas enfeitadas por
lantejoulas, que se apresentou
como "sou Roberto, o rei da favela, e você precisa nos visitar".
"Sim", eu respondi, confirmando, enquanto meu editor,
um sujeito doce, mas dado a
preocupações, abanava a cabeça negativamente e ao mesmo
tempo virava os olhos de forma
enfática (um feito notável até
mesmo para um brasileiro), o
que eu entendi como um sinal
negativo.
Acabrunhado, Roberto me
beijou na boca -algo inédito
em qualquer das minhas visitas
para promoção de livros-, mas
nem isso bastou para que o editor revertesse sua decisão.
No Rio, em Ipanema, garotos
de pernas longas jogavam bola
na praia, e outros exigiam dinheiro quando você estacionava o carro, prometendo "tomar
conta dele" -e certamente a alternativa era algo que não valia
a pena contemplar.
Oh, sim, eu amo o Brasil, mas
Porto Alegre foi diferente: menos tropical, mais -infelizmente- européia.
Fala-se muito sobre os alemães e italianos que se radicaram lá, e um pelotão germânico
formado por sujeitos bêbados
na metade do dia se instalou no
avião, ocupando os assentos
que lhes parecessem mais convenientes, sem respeitar os lugares marcados; gritos estridentes de "Markus" e "Thomas" se faziam ouvir pelos corredores sem outro motivo que
não a expressão de "kameradschaft" [camaradagem] no hemisfério Sul.
O avião acompanhava a costa
do Atlântico, e as ondas rolavam lá embaixo, enquanto os
comissários de bordo fingiam
que a cerveja tinha acabado.
Feijoada no Sul
Porto Alegre é uma cidade
que encanta de imediato, um
mar de jacarandás azuis floridos, repleta de cafés com mesas
na calçada instalados entre as
casas ao estilo colonial brasileiro, com empenas repletas de
detalhes, como as costeletas de
um gaúcho, e toques de tinta
carmesim ou dourada.
Era domingo, o que queria dizer feijoada no cardápio, até
mesmo no Sheraton; uma ampla gama de carnes escuras, cozidas, acompanhadas de farinha de mandioca, que eu me
lembro de ter amado na primeira visita e de ter voltado a
apreciar na segunda: uma mistura de macio e crocante -que
pode não parecer saborosa,
mas termina sendo excelente.
No parque, um menino puxou um violão e cantou um
samba para impressionar, enquanto um círculo de capoeiristas praticava ao som surdo
de um tambor.
Havia uma feira de livros em
curso -não do tipo que envolve
eventos e as celebridades de
sempre, mas uma praça bonita,
à sombra, na qual 50 barracas
exibiam as mercadorias dos livreiros e editores locais.
Os organizadores estavam
orgulhosos dos princípios igualitários do evento, e foi espantoso encontrar, em uma era na
qual a morte da palavra impressa é anunciada prematuramente, uma cidade brasileira não
muito grande na qual parece
haver uma pequena editora a
cada esquina.
Charles Kiefer, o bem-apessoado professor com quem almoçamos, caminhou conosco
até uma das barracas e nos
mostrou os cerca de 30 volumes que contêm os trabalhos
de ficção de seus alunos.
A cada ano um volume novo,
e o professor não poderia se
sentir melhor. Caso a ficção
brasileira esteja em perigo, certamente a culpa não é dele.
Eu mesmo estava lendo "As
Aventuras e Desventuras de
Maqroll", uma coleção de contos do escritor colombiano Álvaro Mutis, um livro tão espetacularmente rico e sensual
que o final de cada história causa raiva do autor.
"Ah", disse Kiefer, "tão bom",
como se estivesse saboreando
um excelente vinho, e acrescentando, com um pequeno
suspiro, que eu talvez pudesse
apreciar uma exposição sobre
Gilberto Freyre [1900-87] em
um banco local [no Santander
Cultural].
Feitiço freyriano
Freyre! Havia 40 anos eu não
pensava nele, um poeta entre
os historiadores, o narrador da
diferença brasileira: casa-grande e senzala tornadas talvez um
pouco menos brutais pela miscigenação; o berço da cultura
mestiça. Ah, claro. Escravidão
em forma de samba não conta.
Eu estava ciente da fantasia
havia muito tempo, mas existia
algo de perversamente belo na
escrita onírica de Freyre e a exposição, sob um teto de vitrais
que promoviam "prudência",
"dedicação" e virtudes semelhantes, de algum modo capturava perfeitamente o sortilégio.
As pinturas de Freyre, em cores tropicais, eram exibidas sobre bandejas de areia; armários
com gavetas, descascados, tinham as portas abertas para
exibir cardápios desbotados de
banquetes, fotos amassadas e
trechos de diário.
Na entrada, era preciso passar pela saia de um imenso boneco carnavalesco -outra forma de sedução brasileira, e eu
conseguia sentir meu ceticismo
setentrional se esvaindo nos
ares gentis da tarde.
Fiz a palestra: 800 espectadores generosos e receptivos, a
maior parte dos quais parecia
interessada em fazer perguntas, o que muitos fizeram. Por
fim, nossos anfitriões nos levaram a um fino restaurante francês onde teria sido rude recusar
o foie gras.
Foi apenas em nossa última
noite em São Paulo que Marcello Dantas, o projetista de muitos dos mais brilhantes museus
e exposições brasileiros, nos levou a um restaurante de comida brasileira: peixes do Amazonas ("nem de água salgada nem
de água doce: repletos de ótimos nutrientes fluviais", disse
Dantas sorrindo); palmitos
frescos, quentes e sedosos no
palato; um sorvete de banana
estupendamente sutil (o que
pode parecer contradição, mas
é exatamente a definição que o
prato merece).
Visual paulistano
Se você voa a São Paulo de
outra cidade brasileira, aterrissa (caso o vôo se destine ao aeroporto local) em um lugar espantoso, cercado de edifícios de
escritórios bem perto, como se
estivéssemos vendo uma maquete de "Blade Runner"
-uma cidade de 120 quilômetros de extensão, com favelas
empilhadas umas sobre as outras, moda esplêndida de estilistas como Rosa Chá e Gloria
Coelho, que usa lantejoulas de
uma maneira que não consigo
nem começar a explicar aos leitores do "Financial Times".
E, no entanto, esse formigueiro humano movimentadíssimo não tem outdoors. O prefeito decidiu que eles constituíam "poluição visual" e deu
aos proprietários um prazo para removê-los, sob pena de
multa de R$ 10 mil.
A cidade pulsa sob a fumaça
dos escapamentos, com 11 milhões de paulistanos que estão
simplesmente tentando sobreviver até o final da semana. Um
lugar para heróis.
Na viagem de volta para Nova
York, minha atenção está voltada às aventuras que Muti imaginou para Maqroll, o gajeiro;
contemplei a floresta tropical e
a costa que se afastavam e senti
saudade. O Brasil é um dos lugares em que seus terminais
nervosos trabalham em ritmo
dobrado, e você jamais deseja
que eles suspendam sua dança,
seu zumbido.
De volta ao vale do rio Hudson, tudo se desacelerou. O
mercado de frutas e verduras
da estação ferroviária local oferecia muitos produtos saborosos. As pessoas se moviam
energicamente, em ritmo de
outono, e pareciam deliciadas
com a expectativa de um novo e
belo presidente.
Este texto foi publicado no jornal inglês "Financial Times".
Tradução de Paulo Migliacci.
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