São Paulo, domingo, 08 de janeiro de 2006

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REALITY SHOW EM HAIA

DOCUMENTÁRIO SOBRE O JULGAMENTO DE SLOBODAN MILOSEVIC NO TRIBUNAL DA ONU, INICIADO EM 2002 E O MAIS IMPORTANTE DESDE NUREMBERG, MOSTRA AS TÁTICAS DA PROMOTORIA E DEFESA

MADS R. MARIEGAARD

Em 28 de junho de 2001, o governo sérvio entregou o ex-ditador iugoslavo Slobodan Milosevic ao Tribunal Penal Internacional da ONU, em Haia. Michael Christoffersen, um cineasta de documentários da pequena companhia dinamarquesa Team Production, já fazia lobby havia meses para conseguir autorização para filmar o julgamento histórico, que já está em seu quarto ano e dificilmente termina em 2006.
"Queríamos ter acesso ao julgamento de Milosevic porque é um dos maiores eventos históricos do último século", diz Mette Heide, produtora da Team. "É o maior julgamento desde Nuremberg [que levou a julgamento criminosos de guerra nazistas]. E quem não desejaria estar nos bastidores de Nuremberg, documentando o que os realizadores de ficção tentam reconstruir desde então?"
Quando Milosevic foi preso em Haia, acusado em 66 instâncias de crimes de guerra, crimes contra a humanidade e genocídio durante as guerras em Kosovo, na Croácia e na Bósnia, Heide e Christoffersen intensificaram seus esforços para obter acesso ao julgamento.
Os atores se dividem entre a promotoria e a defesa. A promotoria é chefiada por Geoffrey Nice, enquanto Milosevic preferiu atuar como seu próprio advogado, porque não reconhece a legitimidade do tribunal. Mesmo assim, assessores sérvios o ajudam nas audiências e na prisão. A equipe de defesa também inclui os advogados nomeados pelo tribunal, Steven Kay e Gillian Higgins.


Milosevic atua como seu próprio advogado, pois não reconhece a legitimi-dade do tribunal


"Nós convencemos o tribunal da importância de compreender o pano de fundo das decisões tomadas no julgamento", diz Heide. "Por que uma determinada estratégia foi escolhida? Por que uma estratégia é modificada? Onde surgem os problemas? Conhecer as considerações, os motivos e os objetivos dos personagens assim como o contexto em que eles trabalham facilita a compreensão da complexidade do julgamento", diz Heide.
A Team Production conseguiu acesso exclusivo ao julgamento, superando diversos concorrentes. Um dos principais argumentos foi que Christoffersen já tinha feito um filme sobre um julgamento num tribunal da ONU. "Genocídio -O Julgamento" (1999) documentou o julgamento realizado em Arusha, na Tanzânia, sobre o genocídio em Ruanda.
Outro fator de persuasão foi que a Team tinha o apoio da BBC, da TV 2/Denmark e de outros 11 canais de televisão, representando ao todo cerca de 300 milhões de potenciais espectadores. Além disso, a Team Production também se ofereceu para reunir o material sobre o julgamento em um arquivo histórico para futuros pesquisadores.

Batalha pela história
Segundo o contrato da Team com o Tribunal Penal Internacional da ONU, a equipe pode acompanhar os principais atores do julgamento, mas não o próprio Milosevic, e em nenhuma circunstância poderá divulgar qualquer material sobre o julgamento até que se chegue a um veredicto final (incluindo uma possível apelação).
Depois de acompanhar o julgamento durante três ou quatro meses, "pudemos ver que ele tinha temas recorrentes, que por sua vez tornaram-se os temas do filme", diz Heide. "Decidimos acompanhá-los, o que veio a ser a decisão certa, porque não mudaram. O julgamento é sobre como a história será escrita e como se define um julgamento justo."
"O julgamento levanta questões complexas", continua Heide. "Como apresentá-las de forma interessante? Pensamos que o modo de fazer isso é acompanhar alguns dos personagens e suas batalhas durante o julgamento. Isso permite oferecer uma visão a que, de outro modo, as pessoas não teriam acesso. Enquanto isso, podemos fazer um filme de entretenimento com o potencial para atingir um público amplo, ao construir o drama de maneira clássica e fazê-lo sobre os personagens, suas esperanças e seus temores."
Christoffersen acompanha o julgamento de Milosevic diariamente desde o início, em fevereiro de 2002 -seja no próprio tribunal ou pela internet, onde é transmitido com apenas meia hora de defasagem [no site www.domovina.net]. Isso lhe permite avaliar quando há alguma coisa acontecendo que poderia ser usada como um ponto de virada dramático; por exemplo, uma nova testemunha.
A equipe já gravou cerca de 250 horas em vídeo até agora, enquanto a filmagem do tribunal, feita por suas próprias câmeras, chega a surpreendentes 1.500 horas. Christoffersen anota cuidadosamente em um diário as horas de gravação no tribunal e nos bastidores. Heide descreve o diretor como "uma pessoa enormemente detalhista e metódica". A equipe usa o diário para determinar onde o material gravado vai se encaixar no filme completo.
"Minha opinião é que 30% do filme será passado no tribunal e cerca de 70%, nos bastidores", diz Heide. "Agora que temos acesso exclusivo para gravar nos bastidores, parece evidente fazer dele o ambiente principal do filme, mas há necessidade de trechos no tribunal para compreender o que os personagens estão falando. Existem algumas gravações realmente preciosas do tribunal: discussões, frustrações, testemunhas que de repente não lembram o que disseram na véspera."
A filmagem levou a equipe da Team a se aproximar dos atores. "Os advogados daqui não estão acostumados com a mídia", diz Heide. "Alguns foram muito reservados no início, duvidando que fôssemos ficar. Estaríamos ali somente por seis meses antes de desaparecer? No entanto Michael foi tão persistente, sério e preparado que conquistou a confiança deles. Isso foi benéfico para o filme, porque os atores discutem abertamente os assuntos. E é importante porque é por meio deles que vamos compreender o julgamento."

Este texto foi publicado na revista "Film".
Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves.


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