São Paulo, domingo, 08 de fevereiro de 2009

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Ponto de fuga

A batina e a música


Na música do padre José Maurício, nada do terror diante da morte, nada de religiosidade etérea; nos vídeos de Bill Viola, intenções elevadas: budismo, cristianismo e sufismo

JORGE COLI
COLUNISTA DA FOLHA

O padre José Maurício [1767-1830] teve uma ninhada de filhos, o que não escandalizava ninguém na corte de d. João. Eram outros tempos, com outras transigências. Amava a música, que ensinou em casa para alunos empenhados. Foi compositor do rei. Ficou velho, sua posição declinou, seu fim foi melancólico. De memória fraca, perguntava, ouvindo algum órgão, algum cravo: "De quem é essa bela música?". Respondiam-lhe: "É vossa, padre mestre".
Era bela, de fato, sua música; bela, como comprova o CD gravado pelo Coro e Orquestra Sinfônica da UFRJ, mais alguns bons solistas, dirigidos por Ernani Aguiar (selo Biscoito Fino). Contém um "Te Deum" de 1809 e o "Réquiem" de 1816. O primeiro é jubilante, enérgico e nobre. O segundo foi explorado pela sensibilidade romântica, por causa de uma coincidência. Foi composto para a morte de Maria 1ª. A rainha e a mãe do compositor morreram no mesmo dia.
Todos insistem em que José Maurício, marcado pelo sofrimento pessoal, investiu-o nesse "Réquiem". Decerto ele gostava muito da mãe e com isso não se brinca. Mas sua missa de defuntos é nada soturna.
Naquela época misturavam-se sons profanos com os sagrados e, como fez Mozart, punham-se, numa missa, árias ou duetos que poderiam muito bem ser cantados durante uma ópera.
É que, então, as pessoas dirigiam a Deus sentimentos amorosos mais humanos que transcendentes.

Sempre-viva
José Maurício fez do "Kyrie" uma lamentação que evoca o coro queixoso dos pastores no "Orfeu" de Gluck e, para não ficar muito melancólico, logo, logo mudou para frases líricas e leves. O "Dies Irae" parece um "gran finale", em que os solistas trazem seus personagens para se despedir do público. O "Ingemisco" é uma ária para soprano que suspira pelo amado ausente. O "Offertorium" é uma cena de baixo nobre com coral. Apenas, no fim, emana do "Agnus Dei" e do "Communio" uma espiritualidade comedida.
Nada do terror diante da morte, nada de religiosidade etérea. Um "Réquiem" que transmite o prazer voluptuoso de estar em vida. Um esplêndido disco, vibrante, enérgico, entusiasta. Cura qualquer depressão.

Metafísica de luxo
Bill Viola propôs, em Roma, uma exposição intitulada "Visioni Interiori" (Visões Interiores, já encerrada).
São 16 vídeos que somam, ao todo, sete horas e 20 minutos, muito mais, infinitamente mais, do que qualquer ser humano consiga suportar. O jeito é tomá-los como quadros, e não ficar diante deles mais do que um Picasso ou um Delacroix exigem de nós.
Como se modificam em câmera lentíssima, quando se revê algum, a imagem se alterou um pouco. Fazem muito efeito graças à nitidez "high-tech". Às vezes reconstituem, em clave contemporânea, obras de grandes pintores do passado. São bonitos e bem acabados.
Alguns causam impactos, outros se querem hipnóticos. Todos têm intenções elevadas.
Ao que parece, sua obra está vinculada ao zen-budismo, ao misticismo cristão e ao sufismo islâmico. O catálogo informa que "o artista enfoca o mistério das emoções e dos sentimentos humanos".

Sugestão
As obras de Bill Viola, em sua grande maioria, podem ser compradas por colecionadores, digamos, comuns, porque, penduradas na parede, são como quadros. Apenas estão em constante movimento.
A exposição de Roma mostrou uma série de rostos nos quais os personagens mudam lentamente de expressão. Eis um bom mercado para alguém que tenha a ideia de produzir retratos moventes, em tela de plasma e alta definição.


jorgecoli@uol.com.br


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