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+Comportamento
Terror em quatro rodas
"Por Que Dirigimos Assim" mostra como o trânsito se transformou num
microcosmo da sociedade atual
MARCOS FLAMÍNIO PERES
EDITOR DO MAIS!
Se um dia ele já representou o despontar de
um novo modo de vida, que propiciaria
mais qualidade de vida, autonomia e privacidade, o
carro está rapidamente se
transformando na besta-fera
das cidades grandes e médias
em todo o mundo.
Como o trânsito se tornou a
parte mais importante e dolorosa do dia-a-dia das pessoas é
o tema do amplo estudo "Por
Que Dirigimos Assim - E o Que
Isso Diz sobre Nós" (ed. Campus, trad. Cristina Yamagami,
300 págs., R$ 69,90), que está
sendo lançado no Brasil.
Escrito pelo americano Tom
Vanderbilt, lança mão de pesquisas de ponta em áreas como
psicologia, urbanismo e, claro,
engenharia de tráfego para
equacionar o problema e propor soluções.
Para ele, o trânsito é um "microcosmo da sociedade", pois o
cidadão, imobilizado por horas
em seu carro em ruas e avenidas, vivencia "situações implícitas de poder".
Vanderbilt defende que
quanto maior o número de
adesivos fixados em um carro,
maior a agressividade do motorista que está dentro dele.
Na entrevista abaixo, defende a adoção do pedágio urbano
-algo que voltou a ser cogitado
em São Paulo, nesta semana,
pelo governo do Estado.
No momento em que Detroit, a cidade ícone da civilização sobre quatro rodas, vai à lona com a crise econômica, Vanderbilt prevê o futuro em duas
rodas como inevitável. Defende Copenhague por privilegiar
a bicicleta -"é uma cidade
muito mais agradável de viver".
E, pela mesma razão, diz, Pequim está "atrás de seu tempo".
FOLHA - Qual é o futuro do tráfego
nas grandes cidades?
TOM VANDERBILT - As cidades
continuarão a crescer, e acho
inevitável a adoção de algum tipo de mecanismo de cobrança,
como ocorre em Londres [que
instituiu o pedágio urbano]. Na
maior parte delas, não há como
expandir a infraestrutura para
automóveis, o que fará da cobrança um modo de administrar a demanda crescente.
Cada vez mais veremos esquemas de "propriedade partilhada" de carros, que ajudam a
lidar com a ineficiência da ocupação do espaço público, como
estacionar os carros. Só para
dar um exemplo, a maior parte
dos carros fica parada cerca de
90% do tempo.
FOLHA - Por que o tráfego é um
"microcosmo da sociedade", como
o sr. diz em seu livro?
VANDERBILT - O tráfego talvez
seja a manifestação mais verdadeira da sociedade, pois a rua e
a estrada, diferentemente de
outros lugares, em geral misturam pessoas de todas as idades,
classes, raças, religiões etc.
Elas estão repletas de momentos de poder implícito,
cheias de mostras ofensivas de
egoísmo, de todo tipo de outros
fenômenos psicológicos de
muito interesse.
FOLHA - O sr. fala do tráfego como
palco de conflitos de classe, conflitos
de gênero e conflitos nacionalistas
(como na Europa). O tráfego é um
campo de batalha?
VANDERBILT - Acho que ele oferece, definitivamente, um laboratório para entender como as
pessoas tratam umas as outras.
Por exemplo, um experimento psicológico clássico é colocar
um veículo diante de um sinal
de trânsito fechado e, então,
não mover o carro quando o sinal abrir.
Quando a pessoa que está no
carro atrás buzina, verifica-se
então quanto tempo ela buzina,
para quem buzina etc.
Isso costuma indicar certos
padrões previsíveis, como, por
exemplo: homens buzinam
mais que mulheres, pessoas em
carros de alto padrão buzinam
mais do que pessoas em carros
mais simples.
Um estudo da Comunidade
Europeia mostrou ser mais
provável as pessoas buzinarem
quando o veículo da frente tem
placa de outro país.
FOLHA - O que os adesivos fixados
em para-brisa têm a ver com a busca
de identidade?
VANDERBILT - No trânsito, frequentemente mantemos nosso
desejo de nos comunicarmos
como seres humanos, apesar de
não dispormos de nossos sinais
mais tradicionais para isso
-como o contato visual.
Os adesivos fixados em para-brisas -mais comuns nos
EUA- me parecem um esforço
para fixar a identidade de alguém em meio a um mar de
anonimato; ou seja, são um esforço para falar a um público.
Alguns psicólogos argumentam que esses adesivos são uma
espécie de defesa territorial, na
medida em que o carro representa um curioso paradoxo: um
espaço privado imerso em um
espaço público, o que potencializa a ansiedade.
Meu argumento é o de que,
quanto mais adesivos estão fixados um carro, mais o motorista busca defender seu território -e, portanto, irá dirigir
com mais agressividade.
FOLHA - O anonimato que o trânsito proporciona pode funcionar como uma arma?
VANDERBILT - Sem dúvida. Psicólogos como Philip Zimbardo
demonstraram como as pessoas estão, no mínimo, menos
propensas a cooperar quando
não veem ninguém. Já em casos extremos, agem mais violentamente contra aqueles que
elas não podem ver.
Esse fenômeno é chamado de
"desindividuação" e de fato pode ser amplificado por fenômenos como "sobrecarga sensorial" ou pressão do tempo
-condições que se aplicam à
perfeição no trânsito.
FOLHA - Motoristas e ciclistas
-quem irá vencer a guerra?
VANDERBILT - Prefiro não pensar nisso como uma competição, mas, sim, como acontece
na Holanda, que ambos podem
coexistir pacificamente.
Obviamente, a sociedade seria muito melhor se menos pessoas dirigissem e mais pessoas
pedalassem.
Por isso, Copenhague é uma
cidade muito mais agradável de
viver -a cidade sustentável do
futuro- e um lugar como Pequim, que é vista como uma cidade do futuro, está, na verdade, atrás de seu tempo.
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