São Paulo, domingo, 08 de fevereiro de 2009

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+Comportamento

Terror em quatro rodas

"Por Que Dirigimos Assim" mostra como o trânsito se transformou num microcosmo da sociedade atual

MARCOS FLAMÍNIO PERES
EDITOR DO MAIS!

Se um dia ele já representou o despontar de um novo modo de vida, que propiciaria mais qualidade de vida, autonomia e privacidade, o carro está rapidamente se transformando na besta-fera das cidades grandes e médias em todo o mundo.
Como o trânsito se tornou a parte mais importante e dolorosa do dia-a-dia das pessoas é o tema do amplo estudo "Por Que Dirigimos Assim - E o Que Isso Diz sobre Nós" (ed. Campus, trad. Cristina Yamagami, 300 págs., R$ 69,90), que está sendo lançado no Brasil.
Escrito pelo americano Tom Vanderbilt, lança mão de pesquisas de ponta em áreas como psicologia, urbanismo e, claro, engenharia de tráfego para equacionar o problema e propor soluções.
Para ele, o trânsito é um "microcosmo da sociedade", pois o cidadão, imobilizado por horas em seu carro em ruas e avenidas, vivencia "situações implícitas de poder".
Vanderbilt defende que quanto maior o número de adesivos fixados em um carro, maior a agressividade do motorista que está dentro dele.
Na entrevista abaixo, defende a adoção do pedágio urbano -algo que voltou a ser cogitado em São Paulo, nesta semana, pelo governo do Estado.
No momento em que Detroit, a cidade ícone da civilização sobre quatro rodas, vai à lona com a crise econômica, Vanderbilt prevê o futuro em duas rodas como inevitável. Defende Copenhague por privilegiar a bicicleta -"é uma cidade muito mais agradável de viver". E, pela mesma razão, diz, Pequim está "atrás de seu tempo".

 

FOLHA - Qual é o futuro do tráfego nas grandes cidades?
TOM VANDERBILT -
As cidades continuarão a crescer, e acho inevitável a adoção de algum tipo de mecanismo de cobrança, como ocorre em Londres [que instituiu o pedágio urbano]. Na maior parte delas, não há como expandir a infraestrutura para automóveis, o que fará da cobrança um modo de administrar a demanda crescente.
Cada vez mais veremos esquemas de "propriedade partilhada" de carros, que ajudam a lidar com a ineficiência da ocupação do espaço público, como estacionar os carros. Só para dar um exemplo, a maior parte dos carros fica parada cerca de 90% do tempo.

FOLHA - Por que o tráfego é um "microcosmo da sociedade", como o sr. diz em seu livro?
VANDERBILT -
O tráfego talvez seja a manifestação mais verdadeira da sociedade, pois a rua e a estrada, diferentemente de outros lugares, em geral misturam pessoas de todas as idades, classes, raças, religiões etc.
Elas estão repletas de momentos de poder implícito, cheias de mostras ofensivas de egoísmo, de todo tipo de outros fenômenos psicológicos de muito interesse.

FOLHA - O sr. fala do tráfego como palco de conflitos de classe, conflitos de gênero e conflitos nacionalistas (como na Europa). O tráfego é um campo de batalha?
VANDERBILT -
Acho que ele oferece, definitivamente, um laboratório para entender como as pessoas tratam umas as outras.
Por exemplo, um experimento psicológico clássico é colocar um veículo diante de um sinal de trânsito fechado e, então, não mover o carro quando o sinal abrir.
Quando a pessoa que está no carro atrás buzina, verifica-se então quanto tempo ela buzina, para quem buzina etc.
Isso costuma indicar certos padrões previsíveis, como, por exemplo: homens buzinam mais que mulheres, pessoas em carros de alto padrão buzinam mais do que pessoas em carros mais simples.
Um estudo da Comunidade Europeia mostrou ser mais provável as pessoas buzinarem quando o veículo da frente tem placa de outro país.

FOLHA - O que os adesivos fixados em para-brisa têm a ver com a busca de identidade?
VANDERBILT -
No trânsito, frequentemente mantemos nosso desejo de nos comunicarmos como seres humanos, apesar de não dispormos de nossos sinais mais tradicionais para isso -como o contato visual.
Os adesivos fixados em para-brisas -mais comuns nos EUA- me parecem um esforço para fixar a identidade de alguém em meio a um mar de anonimato; ou seja, são um esforço para falar a um público.
Alguns psicólogos argumentam que esses adesivos são uma espécie de defesa territorial, na medida em que o carro representa um curioso paradoxo: um espaço privado imerso em um espaço público, o que potencializa a ansiedade.
Meu argumento é o de que, quanto mais adesivos estão fixados um carro, mais o motorista busca defender seu território -e, portanto, irá dirigir com mais agressividade.

FOLHA - O anonimato que o trânsito proporciona pode funcionar como uma arma?
VANDERBILT -
Sem dúvida. Psicólogos como Philip Zimbardo demonstraram como as pessoas estão, no mínimo, menos propensas a cooperar quando não veem ninguém. Já em casos extremos, agem mais violentamente contra aqueles que elas não podem ver.
Esse fenômeno é chamado de "desindividuação" e de fato pode ser amplificado por fenômenos como "sobrecarga sensorial" ou pressão do tempo -condições que se aplicam à perfeição no trânsito.

FOLHA - Motoristas e ciclistas -quem irá vencer a guerra?
VANDERBILT -
Prefiro não pensar nisso como uma competição, mas, sim, como acontece na Holanda, que ambos podem coexistir pacificamente.
Obviamente, a sociedade seria muito melhor se menos pessoas dirigissem e mais pessoas pedalassem.
Por isso, Copenhague é uma cidade muito mais agradável de viver -a cidade sustentável do futuro- e um lugar como Pequim, que é vista como uma cidade do futuro, está, na verdade, atrás de seu tempo.


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