São Paulo, domingo, 8 de fevereiro de 1998

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A obra futura


Novas tecnologias permitem realizar no cinema as propostas mais avançadas de Eisenstein


MARIA DORA MOURÃO
especial para a Folha

Por que falar de Eisenstein hoje?
Qual o papel que este cineasta, nascido praticamente ao mesmo tempo que o cinema, ainda representa? Como seus filmes, embora vistos atualmente só em ocasiões especiais, continuam interagindo com o imaginário do espectador e dos cineastas?
Não vamos tratar da questão político-ideológica, já tantas vezes debatida e, a meu ver, reducionista. A obra de Eisenstein vai além do fato de ter sido realizada em plena implantação da revolução socialista ocorrida na Rússia a partir de 1917. É possível verificar em seus filmes, e também em seus inúmeros escritos, uma clara consciência a respeito da potencialidade do cinema como instrumento político-social e, principalmente, como arte.
O cinema, visto como uma nova possibilidade de expressão, permitirá a Eisenstein o desenvolvimento de um projeto modernista, iniciado por ele nas expressões realizadas no teatro de vanguarda, de forte influência construtivista, dirigido por Meyerhold.
Ele considera que a obra de arte é necessariamente dinâmica e só se constitui como tal no processo de formação de imagens que ocorre na sensibilidade e na inteligência do espectador, isto é, no caso do cinema o filme só se transformará em obra de arte ao ser projetado e permitir ao espectador a interação necessária.
Esse processo é determinado pela montagem. Não aquela montagem voltada para o específico cinematográfico, mas a que envolve problemas que nos remetem a outros códigos que, no seu conjunto, formularão as necessidades básicas da linguagem cinematográfica.
Dessa maneira, a montagem surge como necessidade ideológica diante da situação que se impõe de organizar esses códigos para transformá-los em um meio de expressão cinematográfica, fazendo com que possa passar da esfera da simples ação, como ocorria no início do cinema, à esfera das idéias. É por isso que a montagem, no seu sentido mais amplo, pode ser considerada como a base para se pensar e fazer cinema.
Os filmes realizados no que viria a ser a primeira fase ("A Greve", "O Encouraçado Potemkin", "Outubro"), enfatizavam a idéia de radicalizar a fragmentação do tempo e do espaço, numa clara postura de oposição à narrativa clássica (seja ela cinematográfica ou não). A segunda fase (marcada basicamente por "Alexandre Nevsky" e as duas partes de "Ivan, o Terrível", tendo como intermediários "A Linha Geral/O Velho e o Novo", "Que Viva México!" e o "Prado de Beijin", estes dois últimos inacabados) deixará de considerar o corte como elemento primordial da montagem cinematográfica. Eisenstein passa a desenvolver a idéia de unificação da forma e do conteúdo, remetendo-se, assim, ao princípio da montagem interna do plano.
Mais do que do plano, do quadro, criando tensão dentro do próprio enquadramento, dinamizando as relações internas entre figura e fundo, potencializando a idéia de movimento por meio da produção de contradição, princípio básico da montagem eisensteiniana. Esta lógica está obviamente na base da linguagem cinematográfica que Eisenstein desenvolveu e que, mal compreendida por alguns, foi retomada somente muitos anos depois de sua morte por alguns cineastas.
O impacto modernista dos anos 20 será compreendido, salvo alguns exemplos particulares, pela cinematografia francesa do fim dos anos 50 e, principalmente, dos anos 60. O movimento conhecido como Nouvelle Vague considerava que o argumento de um filme não deve desenvolver-se de maneira lógica, contando uma história com começo, meio e fim. O espectador deve construir sua própria lógica em função das indicações do autor e do fluxo de seus pensamentos. Assim, opunham-se à narrativa do cinema clássico, criando, a partir do conceito de desconstrução, uma nova narrativa que, sem dúvida, se configurou como uma retomada das propostas de Eisenstein.
Jean-Luc Godard está entre os mais conhecidos representantes desse reencontro. Nele, o conceito de montagem retoma seu papel de agenciamento de idéias (montagem intelectual). O conflito no interior dos enquadramentos e entre os planos é maximizado. A noção de tempo deixa de ser forçosamente linear e clássica. Rompe-se a tentativa de considerar o cinema como reflexo do real e se assume como imaginário do real. O reflexo deixa de ser uma "impressão da realidade" e passa a ter o significado de "imaginário", significado este que é produzido pela montagem cinematográfica no momento em que ela irá promover a junção entre o imaginário proposto pela ação e o imaginário do espectador, chegando, assim, ao real do reflexo.
Godard não será o único cineasta a evidenciar em seus filmes conceitos da teoria eisensteiniana. Sabemos como o cinema experimental americano dos anos 60 empregou os métodos de montagem de Eisenstein (Brackage, entre outros) e como foi mantido um diálogo vivo e crescente no decorrer das décadas seguintes. Não podemos deixar de citar Zbigniew Rybczinski, realizador de "Steps" (1986), filme que parodia de maneira amarga a sequência da escadaria de Odessa de "O Encouraçado Potemkin". O autor insere, por meio do sistema de "chroma key", um grupo de turistas americanos nos planos originais do filme de Eisenstein, utilizando-se de um recurso tecnológico para criar um diálogo entre passado e presente.
Na verdade, foi pela via do cinema experimental e de vanguarda que suas propostas se mantiveram presentes no decorrer da história do cinema. A indústria cinematográfica, de maneira geral, seguiu os passos do cinema americano (Hollywood). Ofereceu ao público espectador filmes com uma estrutura mais clássica e tradicional, com o objetivo de facilitar a identificação do público com o filme. Assim, criou-se uma espécie de pacto entre o público e as grandes produtoras. Estas realizam o que "acham" que o espectador quer ver, e este atende prontamente ao chamado, pois sabe o que lhe vai ser oferecido.
No entanto, não se pode negar que o pioneirismo de Eisenstein influenciou o desenvolvimento da história do cinema, além de ser reconhecido e assimilado por grandes cineastas. David Bordwell (em "The Cinema of Eisenstein", Harvard University Press) faz um rápido traçado das marcas de Eisenstein encontradas na teoria do cinema e na filmografia de alguns cineastas. Cita, entre outros, Alain Resnais, Godard, Kurosawa, Robert Bresson, Michelangelo Antonioni e Glauber Rocha como tendo sido influenciados pela sua obra, uma vez que, segundo ele, "o cinema de Eisenstein exemplifica a nova forma de leitura exigida pela literatura e a arte contemporâneas".
Jacques Aumont, em uma conferência intitulada "Eisenstein Chez les Autres", proferida na Cinemateca Francesa e posteriormente publicada no livro "Pour un Cinéma Comparé - Influences et Répétitions" (Cinémathèque Française), comenta a possibilidade de encontrar nos filmes de John Woo e de Abel Ferrara eventuais etimologias eisensteinianas no vocabulário e na sintaxe da montagem de seus filmes. Fala, também, do que chama o caso Hitchcock-Eisenstein. O aspecto mais evidente de convergência entre os dois autores ocorre no uso que Hitchcock faz da concatenação de planos na montagem de seus filmes.
Mas é em Glauber Rocha que Aumont se detém, analisando o filme "Deus e o Diabo na Terra do Sol" (1964). Destaca, basicamente, como Glauber organiza o sistema de contradições (conflitos), um dos elementos básicos da teoria eisensteiniana: contradições entre direções, entre planos fixos e em movimento, entre planos próximos e gerais, além da mise-en-scène criada para a cena das escadas numa alusão direta à cena da escadaria de Odessa.
Um dos projetos não realizados de Eisenstein, "A Casa de Vidro", é o que nos permitirá verificar sua intuição, e quase que premonição, no que diz respeito à necessidade de um aparato técnico mais avançado que possibilite "buscar novos pontos de vista, novas tomadas, novas interpretações". O projeto aparece nas notas de trabalho escritas entre 1927 e 1928 e propõe a realização de um filme cuja cenografia estaria composta por uma casa com paredes de vidro. A estrutura da casa obedeceria os padrões arquitetônicos normais. No entanto, a transparência das paredes de vidro detonaria tensões entre seus habitantes, pois eles estariam constantemente vigiando-se uns aos outros, culminando numa explosão em que, segundo um dos finais propostos para o filme, a casa seria destruída por um robô que simbolizaria o homem novo.
Eisenstein tinha clareza quanto à dificuldade de produção, pois o desenrolar da narrativa exigiria uma simultaneidade de ações e imagens impossível de conseguir na época com os recursos técnicos existentes. O avanço tecnológico, principalmente no tocante à digitalização de imagens, ao surgimento de vários softwares de efeitos e da montagem virtual, está dando uma resposta a seus anseios. As mais complexas estruturas de montagem propostas por Eisenstein são resgatadas pelas novas tecnologias.
Peter Greenaway, por exemplo, principalmente em seus dois últimos filmes "O Livro de Próspero" ("Prospero's Book", 1991) e o "Livro de Cabeceira" ("Pillow Book", 1995), utiliza-se do recurso de superposição de quadros na mesma imagem, propondo vários níveis de representação simultâneos. Dessa maneira, a narrativa se desenvolve em uma nova dimensão temporal e espacial, em que os conceitos de simultaneidade e de montagem em multicamadas adquirem importância fundamental.
Estamos diante de um novo momento da história da arte, de um novo patamar estético, em que o cinema romperá com seu passado tradicional para aliar-se, definitivamente, às mais variadas formas de arte contemporânea por meio dos recursos que as novas tecnologias oferecem como instrumento, resgatando o que há de mais avançado na teoria eisensteiniana.


Maria Dora Mourão é professora da Escola de Comunicações e Artes da USP e co-autora (com Eduardo Leone) de "Cinema e Montagem" (Ática).



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