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Ponto de Fuga
Calor senegalesco
"Cadernos Etíopes" mostra pessoas
de algumas tribos: pinturas
sobre o corpo, colares, peles de animais,
nada é pitoresco,
tudo compõe uma dignidade nobre
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JORGE COLI
COLUNISTA DA FOLHA
Não é senegalesco. É
etíope. Mas que delícia
pôr no título essa expressão suculenta, condenada
por tantos manuais de Redação
sabidos e desmancha-prazeres,
danados para pasteurizar qualquer coisa.
Essa história de calor e de
Etiópia surge por causa de um
livro que a Cosac Naify publicou no ano passado, "Cadernos
Etíopes". Primeiro vêm transcritas as páginas de um diário.
Depois, são as fotos.
O diário tem só um defeito, o
de ser curto.
A elegância do estilo é superior e espontânea. Assim, um
pequeno DC-3 no aeroporto de
Adis Abeba: "Lindo, branco,
com faixas azuis e asas prateadas. Rodou pela pista interminável e sem se intimidar com o
tamanho dos outros, com a
proa levantada. Depois, por
longos segundos, a cauda meneou, o aparelho ficou paralelo
com a pista até se desgrudar e
partir para o infinito".
Nenhuma comparação, nenhuma metáfora, apenas impressões enumeradas com palavras justas.
O aviãozinho luminoso, pequeno diante dos grandões,
diante do interminável, diante
do infinito. Esperto, porém, e
corajoso, nos segundos longos
de espera, paralelo à pista. Nada técnico, ou mecânico, porque não decola, desgruda.
A única palavra mais rara:
meneou. A cauda do avião meneou. Basta esse verbo apurado, que parece sair de um soneto escrito por Júlio Dantas
[1876-1962], para significar o
garbo antigo da engenhoca reluzente e lépida.
Suor
Mais um trecho, do mesmo
autor. "Está calor, muito calor.
Quase quarenta graus. Um calor seco que não deixa o corpo
transpirar. Chamo isso de calor
inglês; a pessoa transpira, mas
não molha a camisa. Não perde
a elegância."
Adeus
Como aflorar a nostalgia sem
sentimentalismo nas últimas
linhas: "É quando ouço a voz.
Alguma mulher dhasanech está
cantando na outra margem do
rio. Não entendo nada, mas
posso ouvir com toda a clareza
os sons que emite. Acompanho
por um tempo a voz cálida que
entoa uma melodia modulando
as palavras em tom e semitons.
É, para mim, um canto de despedida".
Imagem
O autor dessas passagens é
J.R. Duran, fotógrafo, conhecido por suas imagens de glamour, de moda, de mulheres
nuas, de celebridades em "Playboy" ou "Vogue".
Seus "Cadernos Etíopes"
contêm outra coisa.
Duran fotografou, em preto-e-branco, pessoas de algumas
tribos. Gente bonita. Física e
natural, a harmonia é também
causada pela cultura. Pinturas
sobre o corpo, colares, peles de
animais, tecidos enrolados nas
ancas ou na cabeça, nada é pitoresco, tudo compõe uma dignidade nobre.
As imagens captadas nessa
viagem de calor e de exaustão
mostram uma África que, diz o
autor, "daqui a pouco não mais
existirá", pois os velhos costumes se dissolvem devagar no
mundo maior, que não perdoa
particularismos.
Não são fotografias etnográficas, porém, porque não querem descrever; e não são pitorescas, porque se recusam a
dispor do outro como objeto
exótico.
Estão longe de qualquer comiseração, de qualquer miserabilismo, revelando-nos, ao contrário, seres augustos, aristocráticos. Também rejeitam o
fascínio hipnótico pelo esplendor do corpo, como o que possuiu Leni Riefenstahl ao fotografar os nubas, no Sudão.
Os etíopes de Duran nem são
exemplos nem são tipos. São
indivíduos, cujas expressões e
gestos provêm de algo interior
e singular. Habitadas por um
humanismo respeitoso, essas
fotografias lembram, num jeito
mais fácil de dizer do que de explicar, a dignidade presente nos
mais elevados retratos do Renascimento.
jorgecoli@uol.com.br
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