São Paulo, domingo, 08 de março de 2009

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Ponto de Fuga

Calor senegalesco



"Cadernos Etíopes" mostra pessoas de algumas tribos: pinturas sobre o corpo, colares, peles de animais, nada é pitoresco, tudo compõe uma dignidade nobre

JORGE COLI
COLUNISTA DA FOLHA

Não é senegalesco. É etíope. Mas que delícia pôr no título essa expressão suculenta, condenada por tantos manuais de Redação sabidos e desmancha-prazeres, danados para pasteurizar qualquer coisa.
Essa história de calor e de Etiópia surge por causa de um livro que a Cosac Naify publicou no ano passado, "Cadernos Etíopes". Primeiro vêm transcritas as páginas de um diário. Depois, são as fotos.
O diário tem só um defeito, o de ser curto.
A elegância do estilo é superior e espontânea. Assim, um pequeno DC-3 no aeroporto de Adis Abeba: "Lindo, branco, com faixas azuis e asas prateadas. Rodou pela pista interminável e sem se intimidar com o tamanho dos outros, com a proa levantada. Depois, por longos segundos, a cauda meneou, o aparelho ficou paralelo com a pista até se desgrudar e partir para o infinito".
Nenhuma comparação, nenhuma metáfora, apenas impressões enumeradas com palavras justas.
O aviãozinho luminoso, pequeno diante dos grandões, diante do interminável, diante do infinito. Esperto, porém, e corajoso, nos segundos longos de espera, paralelo à pista. Nada técnico, ou mecânico, porque não decola, desgruda.
A única palavra mais rara: meneou. A cauda do avião meneou. Basta esse verbo apurado, que parece sair de um soneto escrito por Júlio Dantas [1876-1962], para significar o garbo antigo da engenhoca reluzente e lépida.

Suor
Mais um trecho, do mesmo autor. "Está calor, muito calor. Quase quarenta graus. Um calor seco que não deixa o corpo transpirar. Chamo isso de calor inglês; a pessoa transpira, mas não molha a camisa. Não perde a elegância."

Adeus
Como aflorar a nostalgia sem sentimentalismo nas últimas linhas: "É quando ouço a voz. Alguma mulher dhasanech está cantando na outra margem do rio. Não entendo nada, mas posso ouvir com toda a clareza os sons que emite. Acompanho por um tempo a voz cálida que entoa uma melodia modulando as palavras em tom e semitons. É, para mim, um canto de despedida".

Imagem
O autor dessas passagens é J.R. Duran, fotógrafo, conhecido por suas imagens de glamour, de moda, de mulheres nuas, de celebridades em "Playboy" ou "Vogue". Seus "Cadernos Etíopes" contêm outra coisa.
Duran fotografou, em preto-e-branco, pessoas de algumas tribos. Gente bonita. Física e natural, a harmonia é também causada pela cultura. Pinturas sobre o corpo, colares, peles de animais, tecidos enrolados nas ancas ou na cabeça, nada é pitoresco, tudo compõe uma dignidade nobre.
As imagens captadas nessa viagem de calor e de exaustão mostram uma África que, diz o autor, "daqui a pouco não mais existirá", pois os velhos costumes se dissolvem devagar no mundo maior, que não perdoa particularismos.
Não são fotografias etnográficas, porém, porque não querem descrever; e não são pitorescas, porque se recusam a dispor do outro como objeto exótico.
Estão longe de qualquer comiseração, de qualquer miserabilismo, revelando-nos, ao contrário, seres augustos, aristocráticos. Também rejeitam o fascínio hipnótico pelo esplendor do corpo, como o que possuiu Leni Riefenstahl ao fotografar os nubas, no Sudão.
Os etíopes de Duran nem são exemplos nem são tipos. São indivíduos, cujas expressões e gestos provêm de algo interior e singular. Habitadas por um humanismo respeitoso, essas fotografias lembram, num jeito mais fácil de dizer do que de explicar, a dignidade presente nos mais elevados retratos do Renascimento.


jorgecoli@uol.com.br


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