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+(a)utores
E os quadrados sumiram
Com exposição na Pinacoteca que se encerra hoje, o alemão
Josef Albers (1888-1976) transcende a imagem por meio de encaixes de figuras e cores
JOSÉ ARTHUR GIANNOTTI
COLUNISTA DA FOLHA
Tente repetir a mesma
palavra muitas vezes,
o sentido desaparece
e passamos a ouvir
sons num mesmo ritmo. Não é que um artista alemão, Josef Albers, ousa fazer
uma homenagem ao quadrado
simplesmente sobrepondo
quadrados uns sobre outros e,
com isso, esperando que neles
encontremos algum sentido?
Outros artistas se aproveitaram da repetição, como as séries de Andy Warhol. Mas a sequência das imagens de Marilyn Monroe ou das garrafas
de coca logo fazem sentido,
pois nelas as figuras se corrompem, mostrando o desfazimento da atriz ou de um objeto de
consumo.
As exposições de Albers e sua
mulher Anni no Instituto Tomie Ohtake [encerrada] e na
Pinacoteca do Estado já foram
noticiadas, no Mais! de domingo passado, por Jorge Coli. Comentado o evento, prossigo
procurando discutir algumas
perguntas sobre teoria estética
postas por esses trabalhos.
A série "Homenagem ao
Quadrado", de Albers não desfaz a figura repetida, mas trata
de valorizar a variação do tamanho das formas e dos matizes de cor. Qual é o sentido disso tudo? Alguns dados de sua
biografia nos dão alguma pista.
Terminou sua formação, no
final dos anos 1920, trabalhando na Bauhaus de Weimar, instituto criado pelo grande arquiteto Walter Gropius, que pretendia juntar a grande arte com
outras artes e ofícios.
Os nazistas não deixaram de
perceber a inovação revolucionária dessa exaltação à técnica
e fecharam o instituto em 1933.
Albers e Anni são os primeiros a emigrar para os EUA, ambos se integrando a um instituto experimental de artes e ofícios, o Black Mountain College,
recém-fundado na Carolina do
Norte.
Quando sobe, pela primeira
vez, as escadarias do College,
Albers, já famoso, está sendo
recebido com todas as
honrarias. Um aluno lhe pergunta: "O que o senhor pretende fazer aqui?". A resposta é
imediata: "Ensinar a ver". O
que "Homenagem ao Quadrado", então, nos ensina a ver?
Outra pista encontramos no
testemunho de um de seus alunos. Diz ele que Albers, quando
falava do interesse plástico de
uma cadeira, não só apontava
os pormenores de sua forma,
mas ainda indicava como ela
era feita, como suas peças se
encaixavam num todo.
O conceito de encaixe me parece essencial. Não importa
tanto a sobreposição dos quadrados no suporte quadrado da
peça. Estes são descentrados
para baixo, e a diferença das cores de cada figura forma uma
trama que passa a valer per si.
Grande colorista
Albers usa a tinta como sai do
tubo, espalhando-a do centro
para os limites da imagem, às
vezes sobrepondo uma cor
noutra, formando um intermediário colorido entre dois quadrados. Não há dúvida de que é
um grande colorista, mas antes
de tudo explora a variação das
cores e das figuras, de sorte que
o objeto exposto é a própria
mudança de aspecto.
É notável como os trabalhos
de Anni, que fora aluna da Bauhaus, seguem o mesmo paradigma. É uma grande tecelã, admira e estuda os tecidos peruanos -o casal se fascina pelas
culturas pré-colombianas. Importa-lhe, porém, a trama, o encaixe dos fios como o encaixe
das formas e das cores.
Noutra série, "Variantes,
Adobe", exposta na Pinacoteca,
o artista examina os efeitos
plásticos desse tijolo cru, argila
misturada com palha, que serve
de material de construção para
os pobres.
Nessa série, o encaixe se dá
entre faces do objeto, mas exibe
uma simetria como se diante
do tijolo admirássemos suas
formas mudando de posição. Às
vezes, nos lembra fachadas de
Volpi. A intenção me parece,
contudo, diferente.
Volpi repete para fortalecer a
visão de cada aspecto, cada porta repetida é esvaziada de sua
forma para apresentar a vibração de suas cores; Albers, ao
contrário, insiste na mudança
de aspectos, na trama onde cada elemento vale na formação
de uma figura ambígua.
Tanto é assim que essa série,
no conjunto, não me parece tão
forte quando comparada com
"Homenagem ao Quadrado",
em que a ambiguidade vale de
per si.
Lembremo-nos que essa visão de aspecto serve para Wittgenstein estudar a transformação dos sinais em símbolos, ou
melhor, os primeiros passos da
representação linguística.
Nas figuras ambíguas, como
aquela em que o mesmo desenho ora é visto como pato, ora
como lebre, a representação
não é mais ícone, como se fosse
decalque da coisa deixado no
papel.
Vê-se um pato sendo remetido a outros patos com os quais
convivemos, a lebre com as lebres que ajudam a formar nosso mundo. Essa ambiguidade
não nos ajuda a pensar o funcionamento da palavra falada
ou escrita, que ora é significante, ora significado, se reportando a um estado de coisa?
Da figura ao objeto
"Variantes, Adobe" e "Homenagem ao Quadrado" ressaltam
a importância da mudança de
aspecto para a formação de
uma linguagem pictórica. Nela
o objeto não aparece como universal se reportando a objetos
semelhantes?
Quando um pintor representa uma cadeira, mesmo quando
mergulha na observação e reprodução de um detalhe, importa-lhe como os aspectos se
encaixam de tal modo que esses
objetos móveis possam povoar
um mundo que traga a sua assinatura.
Por isso a representação pictórica não vai do objeto à figura,
mas desta para aquele, quando
a figura se individualiza à medida que suas partes passam a
trazer um novo significado para um objeto que vá além de seu
valor de uso.
Por isso as figuras entram
num jogo, o exercício de uma
gramática, que procurei examinar em meu livro sobre o belo e
o feio. Não da beleza e da feiura,
mas do juízo avaliando o bom e
o mau trabalho.
Ao dispor os quadrados e
suas cores numa gramática fraca, Albers nos ensina a ver a
pintura na sua mínima dimensão e, por isso mesmo, essencial. Desse modo, encontra
meios para falar do mundo tal
como ele o pinta.
Não é por isso que o mundo
seja quadrado, mas a mudança
de seus aspectos passa a nos indicar como encaixes de figuras
e cores podem remeter a algo
além que assim fica quase dito.
Mística presente no julgar artístico? Ou arte, trabalho humano, substituindo a mística?
JOSÉ ARTHUR GIANNOTTI é professor emérito
da USP e coordenador da área de filosofia do
Centro Brasileiro de Análise e Planejamento. Escreve na seção "Autores", do Mais! .
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