São Paulo, domingo, 08 de março de 2009

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E os quadrados sumiram

Com exposição na Pinacoteca que se encerra hoje, o alemão Josef Albers (1888-1976) transcende a imagem por meio de encaixes de figuras e cores

JOSÉ ARTHUR GIANNOTTI
COLUNISTA DA FOLHA

Tente repetir a mesma palavra muitas vezes, o sentido desaparece e passamos a ouvir sons num mesmo ritmo. Não é que um artista alemão, Josef Albers, ousa fazer uma homenagem ao quadrado simplesmente sobrepondo quadrados uns sobre outros e, com isso, esperando que neles encontremos algum sentido?
Outros artistas se aproveitaram da repetição, como as séries de Andy Warhol. Mas a sequência das imagens de Marilyn Monroe ou das garrafas de coca logo fazem sentido, pois nelas as figuras se corrompem, mostrando o desfazimento da atriz ou de um objeto de consumo.
As exposições de Albers e sua mulher Anni no Instituto Tomie Ohtake [encerrada] e na Pinacoteca do Estado já foram noticiadas, no Mais! de domingo passado, por Jorge Coli. Comentado o evento, prossigo procurando discutir algumas perguntas sobre teoria estética postas por esses trabalhos.
A série "Homenagem ao Quadrado", de Albers não desfaz a figura repetida, mas trata de valorizar a variação do tamanho das formas e dos matizes de cor. Qual é o sentido disso tudo? Alguns dados de sua biografia nos dão alguma pista.
Terminou sua formação, no final dos anos 1920, trabalhando na Bauhaus de Weimar, instituto criado pelo grande arquiteto Walter Gropius, que pretendia juntar a grande arte com outras artes e ofícios.
Os nazistas não deixaram de perceber a inovação revolucionária dessa exaltação à técnica e fecharam o instituto em 1933.
Albers e Anni são os primeiros a emigrar para os EUA, ambos se integrando a um instituto experimental de artes e ofícios, o Black Mountain College, recém-fundado na Carolina do Norte.
Quando sobe, pela primeira vez, as escadarias do College, Albers, já famoso, está sendo recebido com todas as honrarias. Um aluno lhe pergunta: "O que o senhor pretende fazer aqui?". A resposta é imediata: "Ensinar a ver". O que "Homenagem ao Quadrado", então, nos ensina a ver?
Outra pista encontramos no testemunho de um de seus alunos. Diz ele que Albers, quando falava do interesse plástico de uma cadeira, não só apontava os pormenores de sua forma, mas ainda indicava como ela era feita, como suas peças se encaixavam num todo.
O conceito de encaixe me parece essencial. Não importa tanto a sobreposição dos quadrados no suporte quadrado da peça. Estes são descentrados para baixo, e a diferença das cores de cada figura forma uma trama que passa a valer per si.

Grande colorista
Albers usa a tinta como sai do tubo, espalhando-a do centro para os limites da imagem, às vezes sobrepondo uma cor noutra, formando um intermediário colorido entre dois quadrados. Não há dúvida de que é um grande colorista, mas antes de tudo explora a variação das cores e das figuras, de sorte que o objeto exposto é a própria mudança de aspecto.
É notável como os trabalhos de Anni, que fora aluna da Bauhaus, seguem o mesmo paradigma. É uma grande tecelã, admira e estuda os tecidos peruanos -o casal se fascina pelas culturas pré-colombianas. Importa-lhe, porém, a trama, o encaixe dos fios como o encaixe das formas e das cores.
Noutra série, "Variantes, Adobe", exposta na Pinacoteca, o artista examina os efeitos plásticos desse tijolo cru, argila misturada com palha, que serve de material de construção para os pobres.
Nessa série, o encaixe se dá entre faces do objeto, mas exibe uma simetria como se diante do tijolo admirássemos suas formas mudando de posição. Às vezes, nos lembra fachadas de Volpi. A intenção me parece, contudo, diferente.
Volpi repete para fortalecer a visão de cada aspecto, cada porta repetida é esvaziada de sua forma para apresentar a vibração de suas cores; Albers, ao contrário, insiste na mudança de aspectos, na trama onde cada elemento vale na formação de uma figura ambígua.
Tanto é assim que essa série, no conjunto, não me parece tão forte quando comparada com "Homenagem ao Quadrado", em que a ambiguidade vale de per si.
Lembremo-nos que essa visão de aspecto serve para Wittgenstein estudar a transformação dos sinais em símbolos, ou melhor, os primeiros passos da representação linguística. Nas figuras ambíguas, como aquela em que o mesmo desenho ora é visto como pato, ora como lebre, a representação não é mais ícone, como se fosse decalque da coisa deixado no papel.
Vê-se um pato sendo remetido a outros patos com os quais convivemos, a lebre com as lebres que ajudam a formar nosso mundo. Essa ambiguidade não nos ajuda a pensar o funcionamento da palavra falada ou escrita, que ora é significante, ora significado, se reportando a um estado de coisa?

Da figura ao objeto
"Variantes, Adobe" e "Homenagem ao Quadrado" ressaltam a importância da mudança de aspecto para a formação de uma linguagem pictórica. Nela o objeto não aparece como universal se reportando a objetos semelhantes?
Quando um pintor representa uma cadeira, mesmo quando mergulha na observação e reprodução de um detalhe, importa-lhe como os aspectos se encaixam de tal modo que esses objetos móveis possam povoar um mundo que traga a sua assinatura.
Por isso a representação pictórica não vai do objeto à figura, mas desta para aquele, quando a figura se individualiza à medida que suas partes passam a trazer um novo significado para um objeto que vá além de seu valor de uso.
Por isso as figuras entram num jogo, o exercício de uma gramática, que procurei examinar em meu livro sobre o belo e o feio. Não da beleza e da feiura, mas do juízo avaliando o bom e o mau trabalho.
Ao dispor os quadrados e suas cores numa gramática fraca, Albers nos ensina a ver a pintura na sua mínima dimensão e, por isso mesmo, essencial. Desse modo, encontra meios para falar do mundo tal como ele o pinta.
Não é por isso que o mundo seja quadrado, mas a mudança de seus aspectos passa a nos indicar como encaixes de figuras e cores podem remeter a algo além que assim fica quase dito. Mística presente no julgar artístico? Ou arte, trabalho humano, substituindo a mística?


JOSÉ ARTHUR GIANNOTTI é professor emérito da USP e coordenador da área de filosofia do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento. Escreve na seção "Autores", do Mais! .


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