São Paulo, domingo, 08 de março de 2009

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+(L)ivros

O pintor infiel

Tecnologia ajuda a identificar falsificações artísticas, mas conceito de autoria permanece como problema

ROGÉRIO CEZAR DE CERQUEIRA LEITE
DO CONSELHO EDITORIAL

Foi Svetlana Alpers quem acertou "definitivamente" a questão da importância da autenticidade de uma obra de arte, em seu magnífico estudo da obra de Rembrandt [1606-69], de 1988, denominado "Rembrandt's Enterprise" (O Empreendimento de Rembrandt).
Em começos do século 20, a obra desse pintor superava o milhar de quadros.
Foi estimada por sucessivos especialistas ser de cerca de 700, 630 e 420 pinturas. E continuou decrescendo.
E, depois disso, obras deslumbrantes e universalmente conhecidas, tais como "O Cavaleiro Polonês", "O Homem com o Elmo Dourado" e "David e Saul" (o que está no Museu de Haia), tiveram sua autenticidade removida pelo Projeto de Pesquisa sobre Rembrandt, de Amsterdã.
Algumas das obras desqualificadas são consideradas como das mais importantes de toda a história da pintura, citadas inclusive entre as mais características de seu destituído autor.
Ora, se obras reconhecidas durante três séculos podem ter hoje sua autenticidade contestada, então como é que fica a questão dos "valores" intrínseco, financeiro, histórico da obra de arte?
Quantas análises acadêmicas, quantas profundas reflexões foram feitas sobre o "Homem do Elmo Dourado" que fazem que o tenham como se fosse o próprio Rembrandt?
Ele é Rembrandt, Rembrandt é ele. Com ele estamos destituindo não uma obra, mas o próprio Rembrandt. Destituí-lo significa negar Rembrandt, enterrá-lo. Pois bem, a solução adotada pelos "scholars" de Amsterdã foi exatamente essa.
As obras para as quais há registro histórico confiável, como é o caso do fabuloso "Vigias da Noite", são de Rembrandt; as demais são simplesmente atribuídas ao "Estúdio de Rembrandt", admitindo-se que assistentes anônimos, estudantes ou simplesmente imitadores contemporâneos as tenham produzido com maior ou menor êxito e com maior ou menor contribuição objetiva, ou mesmo subjetiva, de Rembrandt.

Onda revisionista
Pois bem, esse agnosticismo estético hoje se generaliza por todo o mundo. Até do nosso "Aleijadinho", que já teve centenas de pequenas (menores que 40 centímetros de altura) estatuetas de santos (ditas "devocionais") a ele atribuídas, hoje somente cerca de dez são reconhecidas como autênticas.
Essa onda revisionista foi desencadeada graças à arrogante prepotência de um único crítico, aliás, o responsável por um dos mais generosos catálogos das obras de Rembrandt. Abraham Bredius [1855-1946] era a figura dominante da Holanda e talvez da Europa em meados do século 20 no que dizia respeito à pintura do século 17.
No início da década de 30 do século passado, um pintor e restaurador pouco conhecido hoje, mas certamente talentoso, Theo van Wijngaarden, submeteu ao pomposo Bredius uma obra que havia restaurado e identificado como de autoria de Franz Hals.
O restaurador alertou o crítico que, por inadvertência, havia usado um removedor em excesso, o que havia amolecido o óleo. Como se sabe, óleos demandam entre 30 e 50 anos para "secar". Bredius não aceitou a explicação de Van Wijngaarden e rejeitou a obra, caracterizando-a como falsificação.
O quadro, que hoje é reconhecido como legítimo, perdeu o seu valor e o restaurador ficou "a ver navios".
Pois não é que, apenas um ano depois desse incidente, Van Wijngaarden submeteu a seu algoz, Bredius, um desenho de Rembrandt que foi imediatamente reconhecido como autêntico pelo crítico?
Ah, que esplêndida vingança. Theo van Wijngaarden destrói publicamente o pseudo-Rembrandt e revela que ele mesmo o havia pintado.
Esse mesmo crítico elaborara uma teoria segundo a qual, durante um período obscuro da vida de Vermeer [1632-75], deveria ter sido por este produzida uma série de pinturas de caráter religioso sobre a influência de Caravaggio [1571-1610]. Essas obras deveriam estar perdidas em algum porão.

Convite aos falsários
A única razão concreta para essa teoria, além do vazio de informações e de produção durante um período da vida de Vermeer, foi o fato de que, durante esse mesmo lapso de tempo, vários jovens pintores holandeses haviam passado pelo ateliê do pintor Caravaggio e, por ele influenciados, teriam passado a realizar obras inspiradas na Bíblia.
Ora, com isso um prato cheio foi posto para os falsários. E um pintor rejeitado, embora competente, se candidatou.
Após quatro ou cinco anos de estudos das técnicas adotadas por Vermeer e um estudo próprio e original sobre processos químicos que produzissem os sintomas de envelhecimento, Han van Meegeren [1889-1947] anunciou a descoberta de uma obra-prima de Vermeer, os "Discípulos em Emaús" [ver "Eu Fui Vermeer", de Frank Wynne, trad. Hildegard Feist, Cia. das Letras].
Pois bem, o vaidoso Bredius tomou essa descoberta como se fosse a confirmação gloriosa de sua ousada teoria.
Entusiasmado, Van Meegeren "encontrou" outros seis vermeers nos anos que se seguiram, todos reconhecidos pelo onipotente Bredius.
E o mais intrigante é que, sendo a obra de Vermeer tão reduzida, entre 30 e 40 quadros ao todo (a autenticidade de alguns desses ainda está em discussão), ninguém tenha se espantado que um único restaurador tenha descoberto 20% de suas obras 250 anos depois.


A onda revisionista se generaliza por todo o mundo, inclui até o Aleijadinho


Enganando os nazistas
E, como todo mundo sabe, a fraude de Van Meegeren só foi revelada porque ele vendeu a [Hermann] Göring, o general nazista, um "Veermer", sendo consequentemente incriminado por ceder a um inimigo um patrimônio artístico de seu país, tendo sido então obrigado a pintar em público mais um "Vermeer" para provar sua "inocência".
Parece que para alguns esse episódio cômico, quase grotesco, suscita grandes dúvidas sobre a importância da autenticidade. É bom lembrar que hoje essa fraude seria impossível, devido a tecnologias atualmente já correntes.
Falsificações dessa natureza já não são possíveis. Entretanto casos como os de Rembrandt, mencionado acima, sim, sugerem uma reflexão mais aprofundada.
De volta ao passado, observamos que, enquanto alguns artistas, como por exemplo Da Vinci, Michelangelo e o próprio Vermeer, trabalhavam sozinhos, Rubens, Rafael e Caravaggio -e o próprio Rembrandt à sua maneira- eram capazes de liderar uma equipe.
Nesse caso será necessário recorrer ao recurso proposto por Svetlana Alpers.
Mas essa atitude deveria ser de contemporização e não de conformismo, pois, com o contínuo avanço da tecnologia e do conhecimento histórico, é de esperar que cedo ou tarde toda e qualquer obra de valor venha a ter sua autoria identificada.
Sem essa esperança não estaremos fazendo justiça a Rembrandt, a Vermeer e a tantos outros, embora "a verdade seja apenas raramente pura e nunca simples" (Oscar Wilde, "A Importância de Ser "Autêntico'").


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