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+(L)ivros
O pintor infiel
Tecnologia ajuda a identificar falsificações artísticas,
mas conceito de autoria permanece como problema
ROGÉRIO CEZAR DE CERQUEIRA LEITE
DO CONSELHO EDITORIAL
Foi Svetlana Alpers
quem acertou "definitivamente" a questão
da importância da autenticidade de uma
obra de arte, em seu magnífico
estudo da obra de Rembrandt
[1606-69], de 1988, denominado "Rembrandt's Enterprise"
(O Empreendimento de Rembrandt).
Em começos do século 20, a
obra desse pintor superava o
milhar de quadros.
Foi estimada por sucessivos
especialistas ser de cerca de
700, 630 e 420 pinturas. E continuou decrescendo.
E, depois disso, obras deslumbrantes e universalmente
conhecidas, tais como "O Cavaleiro Polonês", "O Homem com
o Elmo Dourado" e "David e
Saul" (o que está no Museu de
Haia), tiveram sua autenticidade removida pelo Projeto de
Pesquisa sobre Rembrandt, de
Amsterdã.
Algumas das obras desqualificadas são consideradas como
das mais importantes de toda a
história da pintura, citadas inclusive entre as mais características de seu destituído autor.
Ora, se obras reconhecidas
durante três séculos podem ter
hoje sua autenticidade contestada, então como é que fica a
questão dos "valores" intrínseco, financeiro, histórico da
obra de arte?
Quantas análises acadêmicas, quantas profundas reflexões foram feitas sobre o "Homem do Elmo Dourado" que
fazem que o tenham como se
fosse o próprio Rembrandt?
Ele é Rembrandt, Rembrandt é ele. Com ele estamos
destituindo não uma obra, mas
o próprio Rembrandt. Destituí-lo significa negar Rembrandt,
enterrá-lo. Pois bem, a solução
adotada pelos "scholars" de
Amsterdã foi exatamente essa.
As obras para as quais há registro histórico confiável, como é o caso do fabuloso "Vigias
da Noite", são de Rembrandt;
as demais são simplesmente
atribuídas ao "Estúdio de Rembrandt", admitindo-se que assistentes anônimos, estudantes ou simplesmente imitadores contemporâneos as tenham
produzido com maior ou menor êxito e com maior ou menor contribuição objetiva, ou
mesmo subjetiva, de Rembrandt.
Onda revisionista
Pois bem, esse agnosticismo
estético hoje se generaliza por
todo o mundo. Até do nosso
"Aleijadinho", que já teve centenas de pequenas (menores
que 40 centímetros de altura)
estatuetas de santos (ditas "devocionais") a ele atribuídas, hoje somente cerca de dez são reconhecidas como autênticas.
Essa onda revisionista foi desencadeada graças à arrogante
prepotência de um único crítico, aliás, o responsável por um
dos mais generosos catálogos
das obras de Rembrandt. Abraham Bredius [1855-1946] era a
figura dominante da Holanda e
talvez da Europa em meados do
século 20 no que dizia respeito
à pintura do século 17.
No início da década de 30 do
século passado, um pintor e
restaurador pouco conhecido
hoje, mas certamente talentoso, Theo van Wijngaarden, submeteu ao pomposo Bredius
uma obra que havia restaurado
e identificado como de autoria
de Franz Hals.
O restaurador alertou o crítico que, por inadvertência, havia
usado um removedor em excesso, o que havia amolecido o
óleo. Como se sabe, óleos demandam entre 30 e 50 anos para "secar". Bredius não aceitou
a explicação de Van Wijngaarden e rejeitou a obra, caracterizando-a como falsificação.
O quadro, que hoje é reconhecido como legítimo, perdeu
o seu valor e o restaurador ficou
"a ver navios".
Pois não é que, apenas um
ano depois desse incidente,
Van Wijngaarden submeteu a
seu algoz, Bredius, um desenho
de Rembrandt que foi imediatamente reconhecido como autêntico pelo crítico?
Ah, que esplêndida vingança.
Theo van Wijngaarden destrói
publicamente o pseudo-Rembrandt e revela que ele mesmo
o havia pintado.
Esse mesmo crítico elaborara uma teoria segundo a qual,
durante um período obscuro da
vida de Vermeer [1632-75], deveria ter sido por este produzida uma série de pinturas de caráter religioso sobre a influência de Caravaggio [1571-1610].
Essas obras deveriam estar
perdidas em algum porão.
Convite aos falsários
A única razão concreta para
essa teoria, além do vazio de informações e de produção durante um período da vida de
Vermeer, foi o fato de que, durante esse mesmo lapso de
tempo, vários jovens pintores
holandeses haviam passado pelo ateliê do pintor Caravaggio e,
por ele influenciados, teriam
passado a realizar obras inspiradas na Bíblia.
Ora, com isso um prato cheio
foi posto para os falsários. E um
pintor rejeitado, embora competente, se candidatou.
Após quatro ou cinco anos de
estudos das técnicas adotadas
por Vermeer e um estudo próprio e original sobre processos
químicos que produzissem os
sintomas de envelhecimento,
Han van Meegeren [1889-1947]
anunciou a descoberta de uma
obra-prima de Vermeer, os
"Discípulos em Emaús" [ver
"Eu Fui Vermeer", de Frank
Wynne, trad. Hildegard Feist,
Cia. das Letras].
Pois bem, o vaidoso Bredius
tomou essa descoberta como se
fosse a confirmação gloriosa de
sua ousada teoria.
Entusiasmado, Van Meegeren "encontrou" outros seis
vermeers nos anos que se seguiram, todos reconhecidos pelo onipotente Bredius.
E o mais intrigante é que,
sendo a obra de Vermeer tão
reduzida, entre 30 e 40 quadros
ao todo (a autenticidade de alguns desses ainda está em discussão), ninguém tenha se espantado que um único restaurador tenha descoberto 20% de
suas obras 250 anos depois.
A onda revisionista se generaliza por todo o mundo, inclui até o Aleijadinho
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Enganando os nazistas
E, como todo mundo sabe, a
fraude de Van Meegeren só foi
revelada porque ele vendeu a
[Hermann] Göring, o general
nazista, um "Veermer", sendo
consequentemente incriminado por ceder a um inimigo um
patrimônio artístico de seu
país, tendo sido então obrigado
a pintar em público mais um
"Vermeer" para provar sua
"inocência".
Parece que para alguns esse
episódio cômico, quase grotesco, suscita grandes dúvidas sobre a importância da autenticidade. É bom lembrar que hoje
essa fraude seria impossível,
devido a tecnologias atualmente já correntes.
Falsificações dessa natureza
já não são possíveis. Entretanto
casos como os de Rembrandt,
mencionado acima, sim, sugerem uma reflexão mais aprofundada.
De volta ao passado, observamos que, enquanto alguns artistas, como por exemplo Da
Vinci, Michelangelo e o próprio
Vermeer, trabalhavam sozinhos, Rubens, Rafael e Caravaggio -e o próprio Rembrandt à sua maneira- eram
capazes de liderar uma equipe.
Nesse caso será necessário
recorrer ao recurso proposto
por Svetlana Alpers.
Mas essa atitude deveria ser
de contemporização e não de
conformismo, pois, com o contínuo avanço da tecnologia e do
conhecimento histórico, é de
esperar que cedo ou tarde toda
e qualquer obra de valor venha
a ter sua autoria identificada.
Sem essa esperança não estaremos fazendo justiça a Rembrandt, a Vermeer e a tantos
outros, embora "a verdade seja
apenas raramente pura e nunca
simples" (Oscar Wilde, "A Importância de Ser "Autêntico'").
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