São Paulo, domingo, 08 de abril de 2001

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"A Segunda Via", de Mangabeira Unger, traz prefácio inédito e artigos publicados na imprensa

Um pensamento sem sotaque

Vinicius Mota
Editor de Opinião

Um forasteiro exótico no Brasil; um intelectual de destaque no circuito acadêmico dos Estados Unidos. O clichê é geralmente usado quando se trata de situar o filósofo brasileiro-norte-americano Roberto Mangabeira Unger, que lança "A Segunda Via - Presente e Futuro do Brasil". Como quase toda fórmula pronta, essa pouco esclarece. Presta-se mais à função de estabelecer um juízo inicial que, ao folclorizar, desqualifica. Não são alienígenas nem a relação que o professor de Harvard mantém com os meios de comunicação no Brasil nem a sua inserção nas discussões partidárias por aqui. Antes de tornar-se o ideólogo de Ciro Gomes, Mangabeira vinculou-se ao pedetismo de Leonel Brizola. Sua atuação remonta ao período militar, sempre próxima da esquerda populista. Os textos reunidos em seu livro são artigos e ensaios já publicados na mídia. A parte introdutória, inédita, é uma síntese do que seriam as linhas mestras do programa alternativo de reformas propugnado por Mangabeira para o Brasil, batizado de "segunda via". Trata-se de robustecer as finanças do Estado tributando o consumo e criando uma poupança previdenciária compulsória; investir na capacitação dos cidadãos, garantindo a todos os mínimos sociais para que sejam incluídos no projeto de desenvolvimento nacional; democratizar radicalmente o mercado, redefinindo as formas de propriedade para quebrar o privilégio das oligarquias e generalizar o acesso às oportunidades de negócio; criar um regime de partidos fortes, que marche rumo à agilidade do parlamentarismo, mas que, no início, não prescinda da força plebiscitária do presidencialismo. Curiosamente, a polêmica proposta de reestruturar a dívida interna, que ganhou notoriedade na campanha de Ciro Gomes de 98, desapareceu.

Rebeldia é o mote
Mas destacar o bloco programático de Mangabeira sem remetê-lo ao seu substrato crítico seria injusto. A rebeldia é o mote. Rebeldia contra o fatalismo da elite uspiana-tucana-pefelê.
Para Mangabeira, o que está na base da atitude intelectual e dirigente de aceitar o receituário ditado pelos países centrais é um modelo perverso. Para a massa que não tem acesso ao convescote global, caso perdido, se reservam as políticas sociais compensatórias. Nesse contexto, a distinção entre social-democracia e neoliberalismo é de apenas um tênue grau.
Rebeldia contra a esquerda "organizada", o PT. Para Mangabeira, o oposicionismo calcado nos setores organizados da sociedade tende a pautar-se por uma atitude corporativista e ser tutelado por grupos militantes bem posicionados no aparelho partidário. Esse caráter estaria em choque com os interesses da grande maioria desorganizada da população.
A saída enxergada pelo filósofo está no despertar da classe média não-organizada. De acordo com Mangabeira, a religião mais fervorosa do classe-média "tem sido a da palavra dada e cumprida, a da responsabilidade e da auto-ajuda, e sua experiência mais persistente da vida brasileira, a da impunidade, da dependência e do favor". Aqui resvalamos numa idéia que me parece fundamental no pensamento do filósofo Mangabeira. O destino individual está indissociado do coletivo e do institucional. Há uma energia por ser liberada no indivíduo e ela é capaz de transformar da realidade mais imediata, como as relações interpessoais na família, à mais sofisticada, como as estruturas da representação política. Se Mangabeira confere importância à força do Estado de modificar a organização social -o que postula é um projeto para chegar ao poder e exercê-lo-, é para tornar as instituições conformes a esse indivíduo liberado, que deseja constantemente imprimir sua marca na história, alterar o curso inercial dos acontecimentos.

Modificar o curso inercial
Daí a releitura positiva que faz o filósofo do fenômeno do populismo no Brasil. Trata-se de um modo capaz de conferir temperatura ao jogo do poder, liberar energias transformadoras e atrair para a política setores adormecidos da sociedade, não-contemplados pelas organizações tradicionais. Como se nota, o professor de Harvard e o ideólogo de Ciro Gomes são a mesma pessoa. Mangabeira não caiu de pára-quedas no debate brasileiro nem esqueceu nos EUA tudo o que escreveu. Estigmatizá-lo é uma forma de esquivar-se do incômodo que ele provoca numa certa elite que se quer esclarecida e profunda conhecedora do modo como as coisas funcionam no Brasil. Há o que questionar nas suas formulações. Para citar um elemento, acredito que a sua concepção de classe média "potencialmente" rebelde seja apriorística e não resista à crítica antropológica.

Elevar o debate Mas isso é menos importante do que reconhecer que um contendor como Mangabeira Unger ajuda a elevar o nível do confronto de idéias no período eleitoral. Com ele do lado de Ciro, Luiz Carlos Mendonça de Barros no PSDB e petistas como Tarso Genro e Cristovam Buarque, essa promete ser uma disputa mais qualificada. Ganha o debate democrático.

A Segunda Via
255 págs., R$ 28,00 de Roberto Mangabeira Unger. Boitempo Editorial (av. Pompéia, 1.991, CEP 05023-001, SP, tel. 0/ xx/ 11/3865-6947).

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