São Paulo, domingo, 08 de abril de 2007

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+ Cultura

Um inventor no exílio

"Hercule Florence" mostra o papel pioneiro do desenhista francês, que viveu no Brasil no século 19, para o futuro da fotografia

CRISTIANO MASCARO
ESPECIAL PARA A FOLHA

Thomas Wedgewood, Joseph Nicéphore Niepce, Louis Jacques Mandé Daguerre, William Henry Fox Talbot, Hippolitte Bayard, John Frederick William Herschel, Carl August von Steinheil.
Qual desses senhores teria sido o verdadeiro descobridor da fotografia?
Impossível dizer. Todos eles e mais uma multidão de cientistas, pesquisadores ou simples curiosos dedicavam-se, febrilmente, no início do século 19, à descoberta que já se anunciava do almejado processo de "escrever com a luz".
Foi necessário, entretanto, esperar 140 anos para que se pudesse acrescentar mais um nome àquela extensa lista de pioneiros: Antoine Hercule Romuald Florence [1804-1879], ou simplesmente Hercule Florence, como ficou conhecido, graças ao trabalho de pesquisa do incansável e perseverante fotógrafo e professor Boris Kossoy.

Isolado do mundo
Relançado pela Edusp, "Hercule Florence - A Descoberta Isolada da Fotografia no Brasil" (412 págs., R$ 78), em sua 3ª edição, não só comprova o pioneirismo de Florence mas demonstra também como a história, quando contada pelos vencedores, é parcial: durante décadas o trabalho de Florence foi ignorado solenemente pelo resto do mundo.
Afinal ele vivia em lugar remoto, na vila de São Carlos, hoje cidade de Campinas, no Estado de São Paulo, no distante Brasil.
O trabalho ao qual Kossoy se dedicou a partir de 1972 tem, em seu pioneirismo, isolamento e dedicação extrema, muito a ver com o de Hercule Florence.
Nada o impediu de, a partir do momento em que tomou conhecimento das pesquisas de Florence, passar a investigar em tempo integral, e durante quatro anos, as experiências daquele francês que, ainda jovem, em 1824, desembarcou no Brasil.
Dividida em três capítulos e um anexo, com a transcrição das anotações, esta terceira edição de "Hercule Florence", por meio de uma escrita clara e didática e, no entanto, distante das teses acadêmicas que muitas vezes não convidam à leitura, retrata, em minúcias, a saga de um artista e pesquisador ímpar em nossa história.
Desde sua chegada ao Brasil ("A vista desta população mesclada de brancos, negros e mulatos de todas as graduações me entristeceu um pouco") e sua integração à expedição Langsdorff como segundo desenhista até o início de suas pesquisas a respeito dos processos de impressão que o levaram à fotografia.
Em seguida, Kossoy desloca seu foco para a fotografia na Europa, onde Niepce, Talbot e Daguerre davam seus últimos retoques nas experiências que os levaram a dominar o processo fotográfico até o anúncio da compra pelo governo francês de sua patente.
Nesse trecho, o autor, apoiado em narrativa muito bem articulada, revela os sentimentos, compreensíveis, de frustração e, surpreendentes, de resignação e desprendimento de Florence diante da notícia da descoberta, publicada no "Jornal do Comércio", do Rio de Janeiro: "Estas gravuras abertas com o buril dos raios luminosos...".

Escrita com a luz
Adiante, em linguagem técnica, mas mesmo assim capaz de despertar interesse entre leigos, Kossoy relata seu extenso e minucioso trabalho de pesquisa: o exame crítico de todos os documentos que chegaram às suas mãos e a reconstituição, nos laboratórios do Instituto de Tecnologia de Rochester (EUA), dos experimentos de Florence, o que contribuiu, decisivamente, para o reconhecimento, ainda que tardio, das descobertas desse "inventor no exílio".
O extenso trabalho de Kossoy, que nos fala das aventuras e desventuras vividas pelos pioneiros da fotografia na época de seus primórdios, também nos leva a refletir sobre o presente e o futuro dessa "escrita com a luz" no momento em que vivemos uma incrível revolução tecnológica.
Condenando os sais de prata às prateleiras, estamos todos prestes a embarcar ou já estamos embarcados em direção ao universo digital.
No entanto o que tem provocado mudanças significativas na criação das imagens fotográficas nos dias de hoje não é o vertiginoso avanço tecnológico, mas um fenômeno de caráter comercial, desculpem, conceitual...

Culto ao erro, hoje
O resultado é a construção de um novo figurino de fotógrafo com a assessoria de críticos e curadores (não de todos, evidentemente).
Essa nova espécie não se dedica a fotografar, algo tido como antiquado, ultrapassado e esgotado. O que vemos são registros fotográficos rudimentares de instalações ou performances, obrigatoriamente acompanhados de textos tortuosos e vazios que tentam explicar ao espectador o que tem diante dos olhos.
Sem contar outras "sacadas" como desfoque, tremidas, releituras, assemblages e mau acabamento.
Estranhamente, em todas essas manifestações, percebe-se um culto ao erro, talvez pelo temor ao acerto como se não houvesse capacidade para atingi-lo.
Florence, que dedicou boa parte de sua vida à descoberta da fotografia e enfrentou toda sorte de dificuldades para criar e impor o seu trabalho, vendo tudo isso, se aqui ainda estivesse, certamente ficaria mais entristecido, desolado até, do que quando leu no "Jornal do Comércio" a notícia da revelação ao mundo dessas "gravuras abertas com o buril dos raios luminosos...".

CRISTIANO MASCARO é fotógrafo, autor de "São Paulo" (Senac).


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