São Paulo, domingo, 08 de abril de 2007

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A VOLTA DOS MORTOS-VIVOS

Utilização de métodos de interrogatório como a tortura bate de frente com dogmas éticos estabelecidos e corrompe a moral do Ocidente

SLAVOJ ZIZEK
COLUNISTA DA FOLHA

Quando a confissão de Khalid Shaikh Mohammed [responsabilizando-se pelos atentados do 11 de Setembro, segundo depoimento de 10/3 divulgado pelo Pentágono] dominou as manchetes dos jornais, o sentimento de ultraje moral diante da extensão de seus crimes se misturou à dúvida: é possível confiar em sua confissão?
E se ele tiver confessado mais do que realmente fez, seja pelo desejo vaidoso de ser lembrado como o grande arquiteto terrorista, seja porque se dispôs a confessar fosse o que fosse para deixar de ser submetido ao afogamento simulado ou outras "técnicas de interrogatório reforçadas"?
O que atraiu muito menos a atenção foi o fato simples de que, pela primeira vez, a tortura estava sendo normalizada, apresentada e aceita como tal.
A resposta popular e aparentemente convincente dada a quem se preocupa com esse fato é: "Para que essa reação toda? Os EUA estão agora admitindo (semi)abertamente não só o que vinham fazendo o tempo todo mas o que todos os outros Estados fazem e vinham fazendo o tempo todo. No mínimo se pode afirmar que agora a hipocrisia é menor".
A isso, devemos replicar com uma contrapergunta simples: se os altos representantes dos EUA querem dizer apenas isso, então por que estão nos contando isso? Por que não continuam simplesmente fazendo isso em silêncio, como fizeram até agora?
Na comunicação humana, afirmar abertamente algo que "todos sabemos" nunca é um fato neutro. Um ato desse tipo sempre suscita a pergunta: "Você diz isso, mas por que me está contando abertamente agora?".
Imaginemos um marido e uma mulher que vivem dentro do acordo tácito de que podem manter casos extraconjugais discretos. Se, de uma hora para outra, o marido contar abertamente a sua mulher sobre um caso que está tendo, ela terá bons motivos para entrar em pânico: "Se é apenas um caso, por que você está me contando isso? Deve ser mais do que isso!".

Elegância retórica
Do mesmo modo, no mundo acadêmico, uma maneira cortês de dizer que achamos a palestra ou a intervenção de um colega estúpida ou maçante é dizer: "Foi interessante". Se, em lugar disso, disséssemos ao colega francamente "foi maçante e estúpida", ele estaria plenamente justificado se ficasse espantado e indagasse: "Se você a achou maçante e estúpida, por que não disse simplesmente que foi interessante?".
O colega infeliz estaria certo ao interpretar que a declaração mais direta envolve algo mais, não só um comentário sobre a qualidade de sua fala mas um ataque contra sua própria pessoa.
A mesma coisa se aplica às recentes admissões abertas de tortura. Quando, em novembro de 2005, o vice-presidente dos EUA Dick Cheney disse que derrotar terroristas implica que "também precisamos trabalhar (...) mais ou menos do lado escuro... Muito do que precisa ser feito aqui terá que ser feito na surdina, sem qualquer comentário", deveríamos ter lhe perguntado: "Se o sr. quer apenas torturar secretamente alguns suspeitos de terrorismo, por que o está dizendo publicamente?".
O que está acontecendo aqui de fato? Alguns observadores perspicazes tomaram nota do fato esdrúxulo de que, com todo o ultraje público em torno dos crimes hediondos de Mohammed, muito pouco foi ouvido sobre o destino que nossas sociedades reservam aos criminosos mais endurecidos: serem julgados e punidos com severidade.
Foi como se, pela própria natureza de seus atos (e também pela natureza do tratamento ao qual foi submetido pelas autoridades americanas), não fosse possível fazer a Mohammed o que podemos fazer até mesmo ao mais vil dos assassinos de crianças.
É como se a conseqüência da infame designação "combatentes ilegais" fosse que a luta contra eles também precisa ser travada na zona cinzenta da legalidade, usando meios ilegais. Assim, na prática, temos criminosos "legais" e outros "ilegais": aqueles que devem ser tratados com procedimentos legais (usando advogados etc.) e os que ficam fora da legalidade.
Será que temos consciência de que o julgamento e a punição legal de Mohammed perderam o sentido? Que nenhum tribunal que opera dentro da estrutura de nosso sistema legal pode lidar com detenções ilegais, confissões obtidas por tortura etc.?
Num debate transmitido pela NBC, dois anos atrás, sobre o destino dos detentos em Guantánamo, um dos argumentos esdrúxulos para justificar a aceitabilidade ético-legal do status deles era que "eram aqueles a quem as bombas deixaram de matar": já que tinham sido alvos de bombardeios americanos e tinham sobrevivido a eles acidentalmente e como esses bombardeios faziam parte de uma operação militar legítima, então não se podia condenar o que foi feito com eles depois de terem sido feito prisioneiros, após o combate -fosse qual fosse sua situação, era melhor, e menos grave, do que estarem mortos.

"Homo sacer"
Esse raciocínio revela mais do que pretende revelar: ele coloca o prisioneiro quase literalmente na posição de morto-vivo, alguém que, de certa maneira, já está morto (tendo sido destituído de seu direito à vida pelo fato de ter sido alvo legítimo de um bombardeio assassino).
Assim, ele e outros prisioneiros semelhantes hoje são casos do que o filósofo político italiano Giorgio Agamben descreveu como "homo sacer", aquele que pode ser morto com impunidade, já que, aos olhos da lei, sua vida já deixou de ter validade.
Se os prisioneiros de Guantánamo estão situados no espaço "entre duas mortes", ocupando a posição de "homo sacer", legalmente mortos (ou seja, privados de um status legal determinado) enquanto ainda estão biologicamente vivos, as autoridades americanas que os tratam dessa maneira também estão numa espécie de status legal intermediário que forma a contrapartida ao "homo sacer".
Agindo como potência legal, seus atos deixaram de ser cobertos e limitados pela lei -operam num espaço vazio que é sustentado pela lei, mas não é regulamentado pelo Estado de Direito.
Então como fica o contra-argumento "realista", segundo o qual a guerra contra o terror é suja, sim; e somos colocados em situações em que as vidas de milhares de pessoas dependem de informações que podemos arrancar de nossos prisioneiros?
Seguindo a urgência brutal do momento, devo simplesmente "fazer". Apenas dessa maneira, na própria incapacidade ou proibição de elevar o que eu fui obrigado a fazer ao nível de princípio universal, é que eu posso conservar um senso de culpa, uma consciência da inadmissibilidade do que foi feito.

Ética primitiva
De certa maneira, aqueles que não advogam a tortura diretamente, mas apenas a aceitam como tópico legítimo de debate, são mais perigosos que os que a endossam explicitamente: enquanto -pelo menos nesse momento- o endosso explícito seria chocante demais e, assim, seria rejeitado, a mera introdução da tortura como tópico legítimo de discussão nos permite cortejar a idéia e, ao mesmo tempo, conservar nossas consciências puras.
A legitimação da tortura como tópico de debates modifica o pano de fundo das premissas e opções ideológicas de maneira muito mais radical do que faz a defesa direta da tortura: ela transforma o campo inteiro, sendo que, sem essa transformação, a defesa direta da tortura continua a ser um ponto de vista idiossincrático.
A moralidade nunca é apenas uma questão de consciência individual; ela viceja apenas se for apoiada por aquilo que Hegel chamou de "espírito objetivo" ou "a substância dos valores fundamentais": o conjunto de normas não escritas que formam o pano de fundo da atividade de cada indivíduo, nos dizendo o que é aceitável e o que é inaceitável.
Por exemplo, um sinal de progresso em nossas sociedades é o fato de que não é preciso argumentar contra o estupro: está "dogmaticamente" claro para todos que o estupro é errado, e todos sentimos que até mesmo argumentar contra ele é demais.
Se alguém defendesse a legitimidade do estupro, seria um sinal lamentável se tivéssemos que argumentar contra ele -essa pessoa deveria desqualificar-se imediatamente, parecendo ridícula.
E o mesmo deveria aplicar-se à tortura.
É por isso que as maiores vítimas da tortura publicamente admitida somos todos nós, o público informado sobre isso.
Mesmo que a maioria de nós continue a se opor à tortura, todos temos consciência de que uma parte preciosa de nossa identidade coletiva foi irrecuperavelmente perdida.
Estamos no meio de um processo de corrupção moral: aqueles que estão no poder estão literalmente tentando quebrar uma parte de nossa espinha ética, desfazer e enfraquecer algo que pode ser visto como a maior conquista da civilização: o crescimento de nossa sensibilidade moral espontânea.
Em nenhum lugar isso fica mais claro do que num detalhe significativo da revelação pública da confissão de Mohammed.
Foi relatado que os agentes que o interrogaram se submeteram ao afogamento simulado e foram capazes de suportá-lo por apenas dez a 15 segundos antes de se disporem a confessar tudo e qualquer coisa, enquanto Mohammed conquistou a admiração relutante deles por ter suportado a tortura por dois minutos e meio, o tempo mais longo que eles se recordaram de ver alguém submetido a ela.
Será que temos consciência de que a última vez em que declarações desse tipo fizeram parte do discurso público foi na Idade Média, quando a tortura ainda era um espetáculo público? Será que realmente precisamos desse tipo de ética primitiva de guerreiros?
Quando, na quinta temporada do seriado "24 Horas", ficou claro que o autor intelectual da conspiração terrorista era ninguém mais, ninguém menos que o próprio presidente dos EUA, muitos de nós aguardamos, ansiosos, para ver se o agente Jack Bauer iria aplicar também ao presidente seu procedimento-padrão no trato com terroristas que se recusam a divulgar um segredo que pode salvar as vidas de milhares.
Será que ele vai torturar o presidente? Infelizmente, os autores do seriado não arriscaram esse passo redentor.

Além da imaginação
Mas nossa imaginação pode ir mais longe ainda: e se uma parte dos procedimentos empregados para testar os candidatos à Presidência dos EUA fosse a tortura pública dos candidatos?
Por exemplo, um afogamento simulado dos candidatos realizado no gramado da Casa Branca e transmitido ao vivo para milhões de telespectadores? Serão qualificados para o cargo de líder do mundo livre apenas os candidatos capazes de resistir por mais tempo que os dois minutos e meio de Mohammed...

SLAVOJ ZIZEK é filósofo esloveno e autor de "Um Mapa da Ideologia" (Contraponto). Ele escreve na seção "Autores", do Mais!. Tradução de Clara Allain


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