São Paulo, domingo, 08 de maio de 2005

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Ponto de fuga

O corpo do tempo

JORGE COLI
COLUNISTA DA FOLHA

Entre os habitantes do prédio que James Stewart esquadrinha com sua teleobjetiva, há uma escultora. Ela trabalha no jardim e sua obra é, claramente, um Henry Moore desastrado. A cena está no filme "Janela Indiscreta", de Hitchcock, rodado em 1954. Traz um testemunho da celebridade de Moore, que, ultrapassando os limites de sua Inglaterra natal, se projetou definitivamente com o grande prêmio obtido na Bienal de Veneza em 1948.
Após a Segunda Guerra Mundial, o espírito moderno nas artes dilatou-se, atingindo um público muito amplo. Absorveu-se na vida cotidiana. Em tal clima, a arte de Moore se impôs com autoridade serena. Parece surgir sem origens. Já se assinalou a importância dos "primitivos", de Archipenko, Brancusi, Epstein ou Gaudier-Brzeska em sua formação. Os resultados, porém, desde o início, demonstram tanta singularidade e autonomia que essas raízes não afloram.
Por diversas que sejam as experiências, Moore soube manter sempre uma coesão forte: os caminhos podem ser sinuosos, mas nunca perdem o norte. Centrou-se na figura humana, seu tema obsessivo. O que captou nelas foi a plenitude, oferecida pela forma, expandindo-se como que do interior, e uma vitalidade impregnada na dinâmica dos movimentos. Muito lhe foi sugerido pela vida silenciosa, densa, compacta, paradoxal que a natureza sabe encerrar em seixos rolados, ossos ou galhos secos. O artista os acumulou em seu ateliê.
Quando passa à abstração, Moore mantém a alma infusa e perfeita que confere às suas imagens humanas a generalidade para além de qualquer circunstância acidental e que as projeta num tempo muito lento, o tempo da eternidade.

Amebas
Calder venceu o peso da matéria graças à magia da estrutura. Por ela, o metal flutua na atmosfera, oscila, movimenta-se no ar, delicado. Moore, ao contrário, emprega massas plenas, plásticas, que se distendem em epidermes lisas, por vezes brilhantes. Nada de superfícies abstratas, próprias à perfeição geométrica, mas uma pele muito material, que recobre ondulações, que atrai a mão tentada pela sedução da carícia. Ângulos e arestas diminuem, em benefício da fluência tátil. As ondulações são acolhedoras, como que "confortáveis" (conforto, essa virtude tão inglesa...). Há maternidades; há reis e rainhas impondo-se soberanamente com uma certeza do poder interior. Há também guerreiros, há agressividade emanando de algumas pontas roliças. Por vezes, surgem rugosidades, não muito acentuadas, antes cicatrizes que feridas. Certas imagens femininas, serradas em dois ou três pedaços, criam hiatos visuais menos dolorosos do que surpreendentes.
A limpidez, a cor, o modo de vazar a matéria, permitindo que o olhar atravesse a obra, completam os impulsos da forma. Qualquer inércia fica eliminada, mas permanece sempre a majestade da lentidão. É um universo de detalhes rarefeitos, no qual a escultura reencontra, em uma de suas vocações primordiais e em maneira profunda, o tom do monumento.

Sonhos
Moore aparentou-se ao surrealismo. A intensidade "orgânica" de suas obras, mesmo daquelas ditas abstratas, despertam a sensação de mundos oníricos. Contudo a gravidade latente que lhes é própria aproxima-se melhor da arte metafísica. Reside muito longe do efêmero ao qual é condenada a humana condição.

Beleza
A Henry Moore Foundation organizou e mandou para o Brasil a mais importante mostra de Henry Moore jamais realizada fora da Europa. Os curadores são David Mitchinson e Anita Feldman Bennet. Irá para o Rio de Janeiro e Brasília. Encontra-se agora na Pinacoteca do Estado de São Paulo. É um acontecimento maior. Trata-se de retrospectiva constituída por escolhas perfeitas. Vieram obras em metal mas também as raras e maravilhosas esculturas talhadas no travertino: o espaço da Pinacoteca, com seus pátios nos quais a luz desce do alto, é perfeito para elas. Vieram ainda desenhos e gravuras sublimes. São 243 obras ao todo; cada uma delas segura o espectador, impondo o tempo vagaroso que é o delas.


Jorge Coli é historiador da arte.
e-mail: jorgecoli@uol.com.br


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