|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
Ponto de fuga
O corpo do tempo
JORGE COLI
COLUNISTA DA FOLHA
Entre os habitantes do prédio que James Stewart esquadrinha com sua
teleobjetiva, há uma escultora. Ela
trabalha no jardim e sua obra é, claramente, um Henry Moore desastrado. A
cena está no filme "Janela Indiscreta", de
Hitchcock, rodado em 1954. Traz um testemunho da celebridade de Moore, que, ultrapassando os limites de sua Inglaterra natal, se projetou definitivamente com o
grande prêmio obtido na Bienal de Veneza
em 1948.
Após a Segunda Guerra Mundial, o espírito moderno nas artes dilatou-se, atingindo um público muito amplo. Absorveu-se
na vida cotidiana. Em tal clima, a arte de
Moore se impôs com autoridade serena.
Parece surgir sem origens. Já se assinalou a
importância dos "primitivos", de Archipenko, Brancusi, Epstein ou Gaudier-Brzeska em sua formação. Os resultados,
porém, desde o início, demonstram tanta
singularidade e autonomia que essas raízes
não afloram.
Por diversas que sejam as experiências,
Moore soube manter sempre uma coesão
forte: os caminhos podem ser sinuosos,
mas nunca perdem o norte. Centrou-se na
figura humana, seu tema obsessivo. O que
captou nelas foi a plenitude, oferecida pela
forma, expandindo-se como que do interior, e uma vitalidade impregnada na dinâmica dos movimentos. Muito lhe foi sugerido pela vida silenciosa, densa, compacta,
paradoxal que a natureza sabe encerrar em
seixos rolados, ossos ou galhos secos. O artista os acumulou em seu ateliê.
Quando passa à abstração, Moore mantém a alma infusa e perfeita que confere às
suas imagens humanas a generalidade para
além de qualquer circunstância acidental e
que as projeta num tempo muito lento, o
tempo da eternidade.
Amebas
Calder venceu o peso da matéria graças à
magia da estrutura. Por ela, o metal flutua
na atmosfera, oscila, movimenta-se no ar,
delicado. Moore, ao contrário, emprega
massas plenas, plásticas, que se distendem
em epidermes lisas, por vezes brilhantes.
Nada de superfícies abstratas, próprias à
perfeição geométrica, mas uma pele muito
material, que recobre ondulações, que atrai
a mão tentada pela sedução da carícia. Ângulos e arestas diminuem, em benefício da
fluência tátil. As ondulações são acolhedoras, como que "confortáveis" (conforto, essa virtude tão inglesa...). Há maternidades;
há reis e rainhas impondo-se soberanamente com uma certeza do poder interior.
Há também guerreiros, há agressividade
emanando de algumas pontas roliças. Por
vezes, surgem rugosidades, não muito
acentuadas, antes cicatrizes que feridas.
Certas imagens femininas, serradas em
dois ou três pedaços, criam hiatos visuais
menos dolorosos do que surpreendentes.
A limpidez, a cor, o modo de vazar a matéria, permitindo que o olhar atravesse a
obra, completam os impulsos da forma.
Qualquer inércia fica eliminada, mas permanece sempre a majestade da lentidão. É
um universo de detalhes rarefeitos, no qual
a escultura reencontra, em uma de suas vocações primordiais e em maneira profunda, o tom do monumento.
Sonhos
Moore aparentou-se ao surrealismo. A
intensidade "orgânica" de suas obras, mesmo daquelas ditas abstratas, despertam a
sensação de mundos oníricos. Contudo a
gravidade latente que lhes é própria aproxima-se melhor da arte metafísica. Reside
muito longe do efêmero ao qual é condenada a humana condição.
Beleza
A Henry Moore Foundation organizou e
mandou para o Brasil a mais importante
mostra de Henry Moore jamais realizada
fora da Europa. Os curadores são David
Mitchinson e Anita Feldman Bennet. Irá
para o Rio de Janeiro e Brasília. Encontra-se agora na Pinacoteca do Estado de São
Paulo. É um acontecimento maior. Trata-se de retrospectiva constituída por escolhas
perfeitas. Vieram obras em metal mas também as raras e maravilhosas esculturas talhadas no travertino: o espaço da Pinacoteca, com seus pátios nos quais a luz desce do
alto, é perfeito para elas. Vieram ainda desenhos e gravuras sublimes. São 243 obras
ao todo; cada uma delas segura o espectador, impondo o tempo vagaroso que é o delas.
Jorge Coli é historiador da arte.
e-mail: jorgecoli@uol.com.br
Texto Anterior: Os dez + Próximo Texto: Biblioteca básica: Resíduos Seiscentistas em Minas Índice
|