São Paulo, domingo, 08 de maio de 2005

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A TERRA CONTRA-ATACA

por Slavoj Zizek

Quando o terceiro e último episódio da série "Guerra nas Estrelas" ["A Vingança dos Sith", que estréia no Brasil no próximo dia 19] finalmente nos traz o momento crucial de toda a saga, a transformação do "bom" Anakin Skywalker no "mau" Darth Vader, ele se inspira no paralelo entre os níveis individual e político. No nível individual, a "explicação" se refere ao budismo pop: "Ele se transforma em Darth Vader porque fica ligado às coisas. Não consegue se desligar de sua mãe; não consegue se desligar de sua namorada. Não consegue se desligar das coisas. Isso o torna cobiçoso. E, quando você é cobiçoso, está no caminho para o lado das sombras, porque teme perder as coisas" (George Lucas, citado em "Dark Victory", revista "Time", 22/ 4/2002).
A Ordem Jedi é assim apresentada como uma comunidade masculina fechada, que proíbe seus membros de terem ligações românticas -uma nova versão da comunidade do graal do "Parsifal", de Wagner.
Mas ainda mais significativo é o paralelo político: "Como a República se transformou no Império? Isso é comparável a: como Anakin se transformou em Darth Vader? Como uma pessoa boa se torna má e como uma democracia se torna uma ditadura? Não é que o Império tenha conquistado a República, e sim que o Império seja a República". Portanto, o Império surgiu da corrupção inerente da República: "Um dia a princesa Leia e seus amigos entram em acordo e dizem: "Isto não é mais a República, é o Império. Nós somos os bandidos".".

"Nós somos os bandidos"
Não podemos desprezar as conotações contemporâneas dessa referência à Roma Antiga: a mudança dos países-Estado para o Império global. Devemos, portanto, ler a problemática de "Guerra nas Estrelas" (de República para Império) exatamente contra o pano de fundo de "Império" [Record], de Antonio Negri e Michael Hardt: do país-Estado para o império global.
As conotações políticas do universo de "Guerra nas Estrelas" são múltiplas e inconsistentes, e aí reside o poder "mítico" desse universo: o mundo livre contra o império do mal; o recuo dos países-Estado; a contradição sintomática das pessoas de posição "nobre" (princesa, membros da elite da Ordem Jedi) defendendo a república "democrática" contra o império do mal; finalmente, a percepção correta de que "nós somos os bandidos" (o império ruim não está lá fora; ele surge da própria maneira como nós, os "mocinhos", combatemos o império do mal, o inimigo lá fora -na atual "guerra ao terrorismo", o problema é em que essa guerra vai transformar os Estados Unidos).
Quer dizer, um mito político não é tanto uma narrativa com um significado político determinado, mas sobretudo um recipiente vazio de uma multidão de significados inconsistentes e até mutuamente exclusivos; é errado perguntar: "Mas o que significa realmente esse mito político?", pois seu "significado" é exatamente servir de recipiente para uma multidão de significados.


Como o universo ideológico de "Guerra nas Estrelas" é o universo pagão da nova era, é bastante coerente que sua figura central do mal lembre Cristo

"Guerra nas Estrelas - A Ameaça do Fantasma" já dá uma pista crucial para nos orientar: primeiramente, as características "cristológicas" do jovem Anakin (sua mãe afirma que engravidou dele em uma concepção imaculada; a corrida que ele vence lembra claramente a famosa corrida de bigas em "Ben Hur", essa "história de Cristo"). Como o universo ideológico de "Guerra nas Estrelas" é o universo pagão da nova era, é bastante coerente que sua figura central do mal lembre Cristo -no horizonte pagão, o evento de Cristo é o escândalo definitivo.
Não apenas a figura do Diabo é específica da tradição judaico-cristã; na medida em que "diabolos" (separar, dividir o um em dois) é o oposto de "symbolos" (juntar e unificar), o próprio Cristo é a figura diabólica máxima, na medida em que traz "a espada, e não a paz", perturbando a união harmoniosa existente: "Se alguém vier a mim e não odiar seu pai e sua mãe, sua mulher e filhos, seus irmãos e irmãs -sim, até sua própria vida- não pode ser meu discípulo" (Lucas 14:26). O próprio Cristo é, portanto, o gesto "diabólico" básico do Espírito Santo enquanto comunidade propriamente "simbólica", a reunião dos crentes.
Devemos ter em mente quão totalmente heterogênea é a posição cristã em relação à da sabedoria pagã: em claro contraste com o horizonte da sabedoria pagã -a coincidência dos opostos (o Universo é o abismo do solo primordial em que todos os "falsos" opostos coincidem -bem e mal, aparência e realidade, a própria oposição entre sabedoria e a loucura de ser apanhado na ilusão de "maya")-, o cristianismo afirma como ato mais elevado exatamente o que a sabedoria pagã condena como fonte do mal, isto é, o gesto de separação, o apegar-se a um elemento que perturba o equilíbrio do todo.
O que isso significa é que a abrangente compaixão budista (ou hindu, nesse sentido) tem de ser contrária ao amor cristão, violento e intolerante. A posição budista é, em última instância, a da indiferença, a de extinguir todas as paixões que tentem estabelecer diferenças, enquanto o amor cristão é uma paixão violenta para introduzir uma diferença, uma lacuna na ordem de ser, para privilegiar e enaltecer um objetivo à custa de outros.
Em março de 2005, ninguém menos que o próprio Vaticano fez uma declaração altamente divulgada, condenando nos termos mais fortes o livro "O Código da Vinci" [ed. Sextante], de Dan Brown, como uma obra baseada em mentiras e que disseminava falsos ensinamentos (de que Jesus teria sido casado com Maria Madalena e que eles teriam tido descendentes), especialmente lamentando o fato de o livro ser tão popular entre a geração mais jovem, que busca orientação espiritual.

"Código Da Vinci"
O ridículo dessa intervenção do Vaticano -sustentada por uma saudade mal escondida dos bons velhos tempos, quando o infame índex de livros proibidos estava em ação- não deveria nos cegar para o fato de que, enquanto a forma está errada (quase suspeitamos de uma conspiração entre o Vaticano e a editora para reforçar as vendas do livro), o conteúdo está basicamente certo: "O Código Da Vinci" efetivamente reinscreve o cristianismo no tema da nova era do equilíbrio entre os princípios masculino e feminino.
E, voltando ao novo episódio da saga, o preço por se ater a esses mesmos motivos da nova era é não apenas a confusão ideológica do filme mas, simultaneamente, sua qualidade narrativa inferior: esses motivos são a causa principal da reversão de Anakin em Darth Vader -o momento central de toda a série- não alcançar a grandiosidade trágica adequada.
Em vez de se concentrar no orgulho de Anakin como um desejo avassalador de intervir, de fazer o bem, de ir até o fim por aqueles que ele ama (Amidala) e, portanto, cair no lado das sombras, Anakin simplesmente é mostrado como um guerreiro indeciso que gradualmente escorrega para o mal ao ceder à tentação do poder, ao cair sob as garras do imperador maligno. Em outras palavras, Lucas não teve força para realmente aplicar o paralelo entre República para Império e Anakin para Darth Vader que ele mesmo se propôs: Anakin deveria ter-se tornado um monstro por causa de sua própria insistência em ver o mal em toda parte e combatê-lo.
Aonde tudo isso nos leva? A ironia pós-moderna máxima é o estranho intercâmbio entre Europa e Ásia: no exato momento em que, no nível da "infra-estrutura econômica", a tecnologia e o capitalismo "europeus" estão triunfando em todo o mundo, no nível da "superestrutura ideológica" o legado judaico-cristão é ameaçado no próprio espaço europeu pelo ataque do pensamento "asiático" da nova era, que sob suas diversas formas -desde o "budismo ocidental" (atual contraponto ao marxismo ocidental, em oposição ao marxismo-leninismo "asiático") até os diversos "taos"- está se estabelecendo como a ideologia hegemônica do capitalismo global.

O choque do futuro
Aí reside a maior identidade especulativa dos opostos na civilização global de hoje: embora o "budismo ocidental" se apresente como remédio contra a tensão estressante da dinâmica capitalista, permitindo-nos desligar e manter a paz interior, na verdade funciona como seu suplemento ideológico perfeito. Devemos mencionar o conhecido tema do "choque do futuro", isto é, como hoje as pessoas não são mais psicologicamente capazes de encarar o ritmo alucinante do desenvolvimento tecnológico e das mudanças sociais que o acompanham.
O recurso ao taoísmo ou budismo oferece uma saída que definitivamente funciona melhor que a fuga desesperada para antigas tradições: em vez de tentar enfrentar o ritmo acelerado do progresso tecnológico e das mudanças sociais, devemos renunciar à própria tentativa de controlar o que acontece, rejeitando-o como expressão da lógica da dominação moderna -deveríamos, ao contrário, nos "liberar", flutuar, enquanto mantemos uma distância interior e indiferença da louca dança do processo acelerado, uma distância baseada na percepção de que toda essa comoção social e tecnológica é em última instância apenas uma proliferação insubstancial de aparências que realmente não envolvem o núcleo mais íntimo de nosso ser...
Somos quase tentados a ressuscitar aqui o infame clichê marxista da religião como "ópio do povo", como suplemento imaginário da miséria terrestre: a atitude meditativa do "budista ocidental" é possivelmente a maneira mais eficaz de participarmos totalmente da dinâmica capitalista, ao mesmo tempo mantendo a aparência de sanidade mental.
O verdadeiro companheiro de "A Vingança dos Sith" é, portanto, "Sandcastles - Buddhism and Global Finance" [Castelos de Areia - Budismo e Economia Global], um documentário de Alexander Oey (2005) que é um indicador maravilhosamente ambíguo de nosso atual predicamento ideológico, misturando comentários do economista Arnoud Boot, do sociólogo Saskia Sassen e do mestre budista tibetano Dzongzar Khyentse Rinpoche.
Sassen e Boot discutem o âmbito e o poder gigantescos, os efeitos sociais e econômicos da economia global: os mercados de capital, hoje estimados em US$ 83 trilhões [R$ 210 trilhões], existem dentro de um sistema baseado puramente no interesse próprio, no qual o comportamento de rebanho, muitas vezes baseado em boatos, pode inflar ou destruir o valor de companhias -ou economias inteiras- em questão de horas. Rinpoche responde com ruminações sobre a natureza da percepção humana, a ilusão e a iluminação. Sua declaração ético-filosófica ("abandonem sua ligação com algo que não existe na realidade, é apenas uma percepção") deveria supostamente esclarecer a louca dança das especulações de bilhões de dólares.

Leitura humanista
O problema aqui é como devemos entender essa comparação entre a ontologia budista e a estrutura do universo do capitalismo virtual. O filme tende para a leitura humanista: vista pela lente de um budista, a exuberância da riqueza financeira global é ilusória, divorciada da realidade objetiva -o sofrimento humano muito real gerado por acordos feitos nas Bolsas e nas salas de conselho invisíveis para a maioria de nós.
Se, no entanto, aceitarmos a premissa de que o valor da riqueza material -e nossa experiência da realidade- são subjetivos e que o desejo tem um papel decisivo na vida cotidiana e na economia neoliberal, não é possível tirar disso exatamente a conclusão oposta? Nosso mundo da vida tradicional não se baseia nas noções substancialistas ingênuo-realistas de uma realidade externa composta de objetos fixos, enquanto a dinâmica inédita do "capitalismo virtual" nos confronta com a natureza ilusória da realidade? Que melhor prova do caráter insubstancial da realidade do que uma fortuna gigantesca que pode ser dissolvida em poucas horas por um súbito boato?
Conseqüentemente, por que nos queixarmos de que as especulações financeiras com futuros são "divorciadas da realidade objetiva", quando a premissa básica da ontologia budista é que não há "realidade objetiva"? A única lição "crítica" a tirar da perspectiva budista sobre o capitalismo virtual de hoje, portanto, é que devemos ter consciência de que estamos lidando com um mero teatro de sombras, com entidades virtuais insubstanciais e, conseqüentemente, não devemos nos envolver totalmente no jogo capitalista.
O capitalismo virtual poderia funcionar, portanto, como um primeiro passo para a libertação: ele nos confronta com o fato de que a causa de nosso sofrimento e escravidão não é a realidade objetiva em si (não existe isso), mas nosso desejo, nossa ânsia pelas coisas materiais, nossa dependência excessiva delas; tudo o que temos a fazer, depois de nos livrarmos da falsa noção de realidade substancial, é renunciar a nosso próprio desejo, adotar a atitude de paz interior e distanciamento...
Não admira que esse budismo funcione como o suplemento ideológico perfeito para o capitalismo virtual de hoje: ele nos permite participar com um distanciamento interior, como se estivéssemos de dedos cruzados. É para enfrentar essa tentação que devemos nos manter fiéis ao legado cristão.

Slavoj Zizek é filósofo esloveno e autor de "Um Mapa da Ideologia" (Contraponto) e "O Mais Sublime dos Histéricos" (Jorge Zahar).
Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves.


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