São Paulo, domingo, 08 de maio de 2005

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+ sociedade

Três estudos publicados nos EUA mostram que as mulheres estão hoje enredadas nas premissas de igualdade dos movimentos feministas, que acabaram por levá-las a se ajustar, no lar e no trabalho, ao padrão masculino

A paródia do segundo sexo

SARAH BLUSTAIN

Certa noite neste inverno, oito semanas antes do nascimento de nosso segundo filho, meu marido e eu tivemos uma discussão. Eu tinha arranjado um "tempo livre" em minha agenda para os dois últimos meses de gravidez, basicamente para manutenção familiar e pessoal: encontrar uma creche, pesquisar um carro novo etc. O debate era: devo usar esse tempo como havíamos planejado ou reduzi-lo fazendo a resenha de três livros sobre o cabo-de-guerra entre trabalho e família?
Para meu marido, suponho que parecia uma simples questão de gerenciamento de tempo. Mas para mim era um total desafio de identidade. Minha vida já estava irreconhecível para mim. Eu trabalhava menos horas do que nunca; no entanto também estava mais ocupada do que nunca, fazendo almoços e jantares para nosso bebê, arranjando grupos para brincar.
Como eu havia entregue todas as tarefas "masculinas" -finanças domésticas, consertos na casa, tirar o lixo- para meu marido? Por que eu estava cozinhando e congelando refeições para o período pós-parto, preparando as roupas do primeiro filho, enquanto ele armava seus próximos projetos profissionais? E essa não era a vida antes da libertação. Era uma paródia da vida antes da libertação. E agora ia dispensar um trabalho interessante para procurar creche? Por isso, foi com certa gratidão que li as páginas iniciais de Judith Warner, "Perfect Madness -Motherhood in the Age of Anxiety" [Loucura Perfeita - Maternidade na Era da Ansiedade, Riverhead, 304 págs., US$ 23,95 -R$ 62].
Warner conversara com mulheres exatamente como eu -instruídas, com relativa segurança financeira, que têm a opção de trabalhar ou ficar em casa, que freqüentaram faculdades sérias e começaram carreiras sérias para se verem levadas, por um lado, pela ambição e, por outro, pelo poderoso impulso de ser mãe (e todas as suas tarefas colaterais); algumas escolheram principalmente a primeira, outras a segunda, e a maioria tentou fazer tudo com perfeição, mas acabou apenas exausta e irritada.

Atualização da mística feminina
As conversas que ela cita -entrevistas com cerca de 150 mães de classes média e média alta- são animadoras, uma espécie de grupo de apoio ou de conscientização para pessoas que não têm tempo para essas coisas. Warner sugere uma atualização de "A Mística Feminina", de Betty Friedan, uma "mística da mamãe" que "nos diz que somos as mulheres mais sortudas do mundo" e nos leva a um perfeccionismo que nos faz correr do trabalho para casa, para "futebol e violino e serviço público e fins de semana de treino de beisebol", terminando exauridas.
O livro de Warner não é o primeiro nem o melhor a notar a loucura da maternidade moderna. O dela é simplesmente o último e mais bem-sucedido da nova onda de "libertação feminina", uma espécie de discussão tranqüila (ou talvez apenas resmungos) de que as libertações femininas dos últimos 40 anos não aumentaram a igualdade -aumentaram principalmente a oportunidade de nos esgotarmos em duas frentes.
Cerca de meia dúzia de livros publicados nos últimos anos sobre o assunto -alguns sociológicos, outros confessionais- iniciaram conversas semelhantes. Apesar das mudanças revolucionárias, dizem, a vida das mulheres continua diferente da dos homens -ainda hoje, mesmo com todas as opções, seja você uma mãe rica, de classe média, trabalhadora ou desempregada. Alguns consideram o resultado um equilíbrio. Outros o chamam de compromisso. Nós, "radicais", o chamamos de injusto.
Existe uma certa vergonha em sugerir que ainda não estamos felizes com nossas opções. De maneira exuberante, nossa cultura política adotou a responsabilidade pessoal. Se as mudanças sociais e legislativas dos anos 60 e 70 tentaram nivelar o campo, as mudanças culturais e legislativas desde então disseram: "Agora cabe a vocês. Façam seu próprio destino". Por isso não é fácil admitir, como salienta Warner, que fazer o próprio destino não é tão simples quanto parecia.
É uma pena, portanto, que Warner não tenha escutado as queixas de suas mães e concentrado seu olhar rigorosamente na sociedade. Na verdade, se Warner decidiu libertar as mulheres das amarras da auto-incriminação, acabou gastando a maior parte de seu livro em uma dissecação mesquinha do que as mulheres fazem errado.
Nesse processo, Warner invoca um nauseante "nós": Estamos nos envolvendo em uma "loucura de controle, em última instância, impotente". Nos anos 80, "enquanto nossos precursores da geração "baby boom" continuavam sua busca por destaque no mundos dos negócios e da política, nós começamos a nos fechar" por meio de distúrbios alimentares. "Não buscávamos tanto libertação quanto controle." E, por isso, somos obcecadas por todos os detalhes da vida de nossos filhos.
Ela nos diz que, "na região de Washington, os pais entram em pânico se seus filhos saltam ao ouvir ruídos fortes, se não se interessam por futebol, se se recusam a vestir-se, se frustram seus professores ou se são apenas um pouco estranhos". É mesmo? Na cidade de Nova York, ela diz, "os pais ricos matriculam seus filhos de três anos na fisioterapia se eles não conseguirem descolar e colar adesivos com destreza" (é mesmo? É um fenômeno de Nova York?).


Ao insistirem na igualdade num mundo laboral masculino, as feministas semeiam sua própria irrelevância


Tendência profissional
Felizmente, há outro novo livro que oferece algumas informações reais sobre quem somos nós, as mulheres, e o que estamos lutando para conquistar. Também invocando Friedan, "The Career Mystique -Cracks in the American Dream" [A Mística Profissional - Falhas no Sonho Americano, Rowman & Littlefield Publishers, 304 págs., US$ 22,95 -R$ 59,50] foi escrito por Phyllis Moen, professora de sociologia na Universidade de Minnesota, e Patricia Roehling, professora de psicologia no Hope College, em Michigan.
É um estudo exaustivo de pesquisas sobre mulheres, homens, trabalho, trabalho doméstico, salários, licenças-maternidade, telhados de vidro e todos os outros fatos relevantes sobre como somos pais/mães e trabalhadores hoje. E afirma que as idéias antiquadas de carreira profissional -de um trabalhador partindo diariamente para o escritório com recursos ilimitados porque tem uma mulher em casa- estão prejudicando tanto as famílias norte-americanas quanto as carreiras das mulheres norte-americanas.
Assim como Warner, essas autoras concluem que há algo profundamente desigual no mundo pós-feminista das famílias com dois trabalhadores. Na verdade, elas oferecem os dados que Warner poderia ter usado para compreender a loucura das mães que descreve. Essa desigualdade começa cedo.
Em um estudo que analisaram, eles descobriram que "as garotas da nona série [com idade aproximada entre 14 e 15 anos] gastam em média duas horas a mais por semana fazendo tarefas domésticas do que os meninos da nona série". Com três anos a mais, essa diferença dobra.
Eles também descobriram que as garotas têm mais probabilidade de trabalhar para a família e amigos e receber salários menores que os dos meninos, que tendem a trabalhar em um leque maior de empregos.
E, o mais importante, essas tendências se confirmam ao longo das carreiras: as autoras citam um estudo que "estima que, quando os parceiros se casam, a quantidade de tempo que uma mulher passa fazendo tarefas domésticas aumenta aproximadamente 17%, enquanto a de um homem diminui 33%" (de modo notável, em dois estudos, no Canadá e na Noruega, os pesquisadores descobriram que as mulheres empregadas com maridos desempregados ainda faziam 60% das tarefas domésticas).

Estrutura social
Quando as crianças entram no quadro, essas discrepâncias tornam-se ainda mais marcantes: as mães tendem a trabalhar menos, ganhar menos e progredir menos que seus colegas homens e seus maridos. Os pais, em contraste, tendem a trabalhar mais e ganhar mais (curiosamente, esse aumento salarial entre os novos pais tende a ser maior quando a criança é um menino).
A longo prazo, mesmo quando as mulheres voltam ao trabalho em tempo integral, o fazem com salários menores e promoções mais lentas do que seus colegas homens ou mulheres sem filhos.
Talvez o mais importante é que esse livro nos leva a compreender como esses resultados estão embutidos na estrutura da sociedade, sendo o exemplo mais extremo o sistema reformado de assistência social. Nos EUA, nos anos 60, indicam as autoras, "os políticos consideravam que o papel adequado das mães era criar os filhos", e o Estado dava apoio às mulheres solteiras pobres sem um provedor em casa.
Com a reforma da assistência social nos anos 90, as pessoas só podem receber benefícios durante cinco anos. E o que acontece com a multidão de mães solteiras que recebem assistência? Onde estão as provisões para criar os filhos? "As mães solteiras que esgotaram seus benefícios devem se responsabilizar plenamente pela criação de suas famílias enquanto também trabalham em tempo integral", escrevem as autoras, "muitas vezes com um pequeno ou nenhum outro sistema de apoio".
Logo no início de sua fascinante nova história do feminismo trabalhista -"The Other Women's Movement - Workplace Justice and Social Rights in Modern America" [O Outro Movimento das Mulheres -Justiça no Local de Trabalho e Direitos Sociais na América Moderna, Princeton University Press, 336 págs., US$ 29,95 - R$ 77]-, Dorothy Sue Cobble volta a sua atenção brevemente para a organização das mulheres na indústria de processamento de carnes nos anos 40, um período de relativa força para as trabalhadoras, por causa da guerra.
"Os temas", ela escreve, "variavam de pedidos de pagamento igual a como o trabalho seria organizado para dar períodos de descanso às mulheres com cólicas menstruais".

Feminismo esquecido
Períodos de descanso para mulheres com cólicas menstruais -que conceito! Essa história notável fala do "outro" feminismo, um feminismo esquecido que combateu a Emenda da Igualdade de Direitos porque suas adeptas -em sua maioria, da classe trabalhadora e sindicalizadas- acreditavam que ela obrigaria as mulheres a se adaptarem aos papéis e padrões masculinos e abandonarem as proteções que a lei oferecia às mulheres.
As trabalhadoras, depois dos anos 30, escreve Cobble, acreditavam que "o mundo do trabalho havia sido construído tendo em mente as necessidades dos homens, seus corpos e seus papéis sociais". O objetivo, dizia Frieda Miller [ativista trabalhista], era "alcançar uma igualdade que leve em conta as diferenças entre homens e mulheres".
Isso me fez pensar, lendo o livro em meu oitavo mês de gravidez: que tal macas no escritório, onde meu corpo dolorido e inchado pudesse dormir por meia hora? Que tal lugares de trabalho que acreditassem que 17h é uma hora saudável para deixar o trabalho e voltar para as famílias, e não transformar a casa em um concorrente natural do escritório? Que tal um sistema de bem-estar social que não obrigue as mães solteiras a voltarem ao trabalho e também ter de cuidar dos filhos?
É claro, a mente feminista bem treinada se revolta. Quem contrataria uma mulher que quisesse um lugar de trabalho feminil? De fato, por que feminizar o local de trabalho quando há muitos outros homens e mulheres que ficariam felizes em ter meu emprego num local de trabalho masculino tradicional? Como eu poderia admitir os conflitos de interesse entre cuidar de meu filho e trabalhar e, ainda assim, merecer meu salário? A própria premissa do feminismo moderno é que podemos fazer tudo o que eles podem. Qualquer outra coisa é fraqueza.
No entanto, uma geração e meia depois das primeiras lutas, agora está evidente -como testemunham Warner, Moen e Roehling e todas as suas compatriotas nesse assunto- que as mulheres não podem fazer tudo o que os homens podem. Pelo menos não da mesma maneira, nas mesmas estruturas.
E onde estão as feministas organizadas? Continuam negando a diferença (como Cobble indica, as feministas trabalhistas basicamente abandonaram suas plataformas de feminismo da diferença em 1960). Pior ainda, ao insistirem na igualdade de oportunidades num mundo laboral estruturalmente masculino, as organizações feministas estão semeando sua própria irrelevância.
De fato, nós da esquerda cedemos alegremente o feminismo da diferença para as conservadoras. São elas agora que nos lembram -com uma satisfação nauseante- de que as mulheres não são homens. Elas nos dizem que a revolução teve sucesso na medida em que era necessária e que os meninos, e não as meninas, hoje são a "minoria" oprimida. Christina Hoff Summers popularizou esse argumento em seu livro de 2000, "The War against Boys" [A Guerra contra os Meninos]. E ela tem razão: as meninas estão obtendo melhores notas, a maioria das formandas em faculdade são mulheres e assim por diante.

Sumiço misterioso
Diante desses fatos, você poderia esperar um sucesso semelhante em todo o trajeto até o topo. Mas é exatamente quando as mulheres estão chegando a sua melhor fase -justamente quando chegam os filhos- que todo esse progresso desaparece misteriosamente e o telhado de vidro cai sobre elas. E para as conservadoras isso está bem. Elas dizem que é onde a biologia realmente conta, a hora de respeitar a diferença das mulheres e abandonar os objetivos revolucionários.
É claro, eu não vou aonde essas "feministas" conservadoras vão, mas onde está o movimento de feministas liberais admitindo que as mulheres não são homens e que, no entanto, ainda vivemos em um mundo masculino? Onde estão as que pedem a segunda metade da revolução -a metade que trará verdadeiras mudanças estruturais a um mundo de trabalho construído originalmente -como Cobble escreveu sobre os anos 30- "tendo em mente as necessidades dos homens, seus corpos e seus papéis sociais"? E, falando nisso, onde estão as ativistas pressionando para terminar as outras revoluções legais da segunda metade do século passado?
Eu adoto uma versão do feminismo de igualdade, mas não estou prendendo o fôlego para ver isso em minha vida. Temos um longo caminho a percorrer. E, mais importante, apesar dos resmungos das pós-feministas, não há energia política lutando por essa visão. Em curto prazo, vamos lembrar nossas antepassadas feministas trabalhistas, que viram com tanta clareza que o mundo do trabalho não era feito à sua imagem -e decidiram mudá-lo. Precisamos escapar da "mística da mamãe" e da "mística profissional". Mas, principalmente, devemos reconhecer que a "mística da igualdade" da segunda onda talvez não seja a ideologia mais progressista que podemos imaginar. Onde encomendar
Livros em inglês podem ser encomendados, em SP, na livraria Cultura (tel. 0/xx/ 11/ 3170-4033) ou no endereço eletrônico www.amazon.com

Sarah Blustain é subeditora da "The American Prospect", onde este texto foi publicado, e foi editora da "New Republic".
Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves.

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