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São Paulo, domingo, 08 de junho de 2003

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Com Gadamer, me libertei da camisa-de-força do debate ideológico que envenenou muitas cabeças filosóficas no Brasil

UMA PONTE ENTRE A CONSCIÊNCIA E O MUNDO

1. Não posso dizer que minha formação intelectual se deveu apenas à filosofia ou a um filósofo. Para ela convergiram, entre outras influências, meus três cursos feitos na universidade -direito, filosofia e psicologia- e minha paixão pela literatura. Cheguei a Heidegger, primeiro, através de um semestre sobre Kant ("Crítica da Razão Pura"), em 1955, do qual me vem o problema da relação entre sensibilidade e entendimento. Na tradição aristotélico-tomista, de onde eu vinha, isso não era resolvido satisfatoriamente. A questão do fundamento da síntese no juízo se tornara um problema central. Kant me ensinara algo sobre os limites da metafísica. Em segundo lugar, um curso sobre Wittgenstein ("Tractatus Logico-Philosophicus"), em 1956, trouxe-me a afirmação de que as proposições metafísicas são sem sentido. Wittgenstein afirmava o vazio da metafísica. Quando li "Ser e Tempo", de Heidegger, em 1958, sobre o qual aprendera rudimentos na história da filosofia contemporânea, topei com a questão não-resolvida da pergunta pelo ser. Para mim, isso era o problema central da metafísica. Heidegger se propunha a examinar o sentido do ser a partir de sua analítica existencial. Com isso se abria, para mim, um campo inteiramente novo e fantástico para a filosofia: pensar a questão do ser ligada ao "ser-aí" e, assim, a partir do tempo. Disso resultou minha tese, que traz o título "Compreensão (do Ser) e Finitude", na qual um certo idealismo da compreensão salvava ainda um realismo que liga o homem ao ser. O problema do conhecimento não deveria ser resolvido nem por uma espécie de iluminação que vinha de cima, como se afirmava na metafísica, nem pelo dualismo kantiano que perdia o mundo. A abertura do "ser-aí" enquanto "ser-no-mundo" se deveria tornar o precário fundamento (sem fundo) de qualquer conhecimento. À medida que apareciam as obras do segundo Heidegger, realizando a destruição da metafísica e uma nova apropriação por meio da história das diversas teorias do ser que o confundiam com um determinado ente, passei a ligar o problema do fundamento do conhecimento na tradição com sua identificação com uma concepção do ente. Pareceu-me, então, ser tarefa para a solução do problema do conhecimento pensar aquilo que já sempre nos acompanha em qualquer experiência e que é uma implícita (pré-)compreensão de ser. Assim, se juntavam ontologia e conhecimento para a (dis-)solução da questão transcendental de Kant numa concepção de transcendental não-clássico, como elemento estruturante e organizador do conhecimento.

2. Tendo aprendido essa lição de Heidegger sobre a metafísica e sua história, estava aberto o espaço para a aceitação da obra de Gadamer, "Verdade e Método" (1961). Descobri aí o exame da historicidade do sentido e da impossibilidade de recuperá-lo inteiramente pela consciência histórica. Essa compreensão da hermenêutica filosófica apresentou-se como um caminho para uma certa "aplicação" da filosofia ao mundo da cultura. É claro que Gadamer visava a uma verdade que se manifesta na arte, na história e na linguagem e que precede e acompanha qualquer questão de verdade e método nas ciências humanas. Mas as lições de Gadamer pareciam irrecusáveis para pensar de uma outra maneira que a ortodoxia as idéias de Marx, Nietzsche e Freud. Foi assim que me libertei da camisa-de-força do debate ideológico que envenenou muitas cabeças filosóficas no Brasil. Lendo, concordando e às vezes discutindo com Habermas e sua recepção de Heidegger, Gadamer e da hermenêutica, consegui desenvolver muitas reflexões sobre o projeto da modernidade que se reflete nas ciências humanas. Perdi por esse caminho o otimismo que pretende continuar o projeto inacabado da modernidade com uma filosofia da história. Assumi a necessidade de solapar o dualismo e o subjetivismo da modernidade, como, de certo modo, Heidegger fizera na sua crítica à metafísica tradicional. Mas cedo descobri que a hermenêutica filosófica de Gadamer não é filosofia. O universo de autores e problemas que aparecem dispersos por meio século -e que são devedores de uma tradição que foi tomando forma por meio das interpretações e evolução da fenomenologia hermenêutica de Heidegger- impõe a preparação de instrumentos de avaliação desse paradigma filosófico e de critérios para poder separar tantos discursos irrelevantes, de núcleos efetivamente produtivos para a filosofia atual. Não posso deixar de citar com especial apreço a presença das idéias de Karl-Otto Apel, sobretudo, em suas interpretações de Peirce, Heidegger, Gadamer e Wittgenstein. Mesmo que eu perceba os limites de um tipo de filosofar baseado nas análises da autocontradição performativa, não posso deixar de ver a seriedade do filósofo que opera com elas.

3. Ernst Tugendhat (1930) é o autor que em grande parte acompanhei no desenvolvimento de sua filosofia. Não fosse a sua percepção de filosofia analítica e de crítica da ontologia e da fenomenologia, dificilmente eu teria encontrado (e em parte permanecido fiel), a grande tradição do pensamento analítico e da teoria do conhecimento. Agrada-me muito a maneira como esse filósofo trilhou um caminho entre a fenomenologia e a filosofia analítica da linguagem e do conhecimento.
A presença de um estilo descritivo-estrutural revela influências da fenomenologia -sobretudo nos seus ensaios descritivos de antropologia filosófica aparecem questões centrais de "Ser e Tempo". A tradição anglo-saxônica dificilmente aceita sem crítica seus estudos de filosofia analítica. Reconheço exatamente aquilo que a ela causa arrepios: uma visão de totalidade que pretende responder a questões centrais do problema do conhecimento e explorar as bases da moral, por meio da análise da linguagem e da dimensão de profundidade que torna único o lugar do ser humano no mundo dos seres vivos. Não sei se é meu difuso contato com a tradição analítica anglo-saxônica que me revelou ângulos novos de meus velhos conhecidos da fenomenologia e que representam uma pequena legião. Devo, no entanto, confessar que progressivamente fui percebendo que a hermenêutica sem a analítica pode ser cega, mas disso também se segue, para mim, que a analítica sem a fenomenologia hermenêutica ameaça ser vazia.
Ou melhor, a analítica deve, nas minhas inquietações, enfrentar-se com um velho trauma que percorre a filosofia até hoje, desde a modernidade, e que consiste na ameaça de um dualismo, na teoria da subjetividade, e que ainda é típica herança metafísica. Uma vez estabelecida a ruptura entre entendimento e sensibilidade, entre predicação e percepção, entre as palavras e as coisas entre consciência e mundo, como encontrar uma unidade para o conhecimento? Nisso permaneço fiel a uma marca que me vem de Heidegger.
É um escândalo estarmos ainda à procura de uma ponte entre a consciência e o mundo, pois desde sempre, enquanto somos ser-no-mundo, nos é dada uma unidade na pré-compreensão do ser e de nosso modo de ser. É essa pré-compreensão que acompanha, como dimensão antecipadora, toda a discussão de sentido e significado, toda a relação entre filosofia e conhecimento empírico. Nesse ponto, Heidegger nos deu uma lição insuprimível: toda a teoria do conhecimento deve ser acompanhada de uma analítica existencial como espaço para uma ontologia fundamental. Tugendhat, entretanto, me ensinou que as intuições de Heidegger devem ser levadas à clareza pela analítica da linguagem.


Ernildo Stein é professor de filosofia na Pontifícia Universidade Católica (PUC-RS) e autor de "Compreensão e Finitude".


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