UOL


São Paulo, domingo, 08 de junho de 2003

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Foram de Kant, Hegel e Marx os textos com os quais me agradava passar as noites de trabalho e os dias de descanso

A FILOSOFIA EMBRUTECEDORA DE BUSH

Adi Leite - 30.out.1990/Folha Imagem
O alemão Karl-Otto Apel durante visita a São Paulo


1. É difícil dizer. Lembro-me de minha adolescência filosófica como uma experiência de imersão em águas profundas e dos muitos filósofos que lá apareciam como peixes que eu tentava agarrar. Devo dizer que não tive nenhum interesse pela filosofia medieval, o que foi uma coisa estúpida, evidentemente, mas foi assim. Isso resultou, acredito, do fato de eu ter vivido em um ambiente clerical e de ter confundido a adesão à filosofia com a liberdade e a revolta. Quanto às figuras que permanecem em minha cabeça estão Niccolò da Cusa e Pico della Mirandola, Bovillus (Charles de Bouelles) e Erasmo e depois a grande filosofia da natureza do humanismo e da Renascença italianos, de Bernardino Telesio a Giordano Bruno, de Tommaso Campanella a Giacomo Zabarella a Galileo Galilei. Quando então saí definitivamente da água e as sombras se fizeram obras, foram de Kant, Hegel e Marx os textos com os quais me agradava passar as noites de trabalho e os dias de descanso. Se foram esses os filósofos que mais me influenciaram, não sei ao certo dizer. Todavia foram essas as figuras com as quais, adolescente, eu mais debati.

2. É estranho reconhecê-lo, mas não são filósofos contemporâneos aqueles aos quais se refere o meu questionamento atual: são acima de tudo Maquiavel, Espinosa e Nietzsche. Isso pode ser resultado de duas situações diversas: na primeira, os meus problemas são problemas antigos, que se colocaram na Idade Moderna, os quais hoje me prendem; de outra forma pode ser que aqueles filósofos a que me refiro continuem ativos na pós-modernidade, tanto quanto ou mais do que o foram na modernidade. Há sempre em nosso resgate do passado um anseio pelo devir. Quem não for submetido pela história da filosofia (Deleuze erroneamente acreditava pertencer à ultima geração que por ela fora violentada) sabe que aqui e ali, sobre esse mar de ordem e submissão, de tradição de poder, de violência ordenativa e teleológica, é possível encontrar alguma ilha de liberdade crítica e de desejo incontinente. Provavelmente esses três autores a que me refiro fazem parte dessa vegetação insular selvagem: não é escandaloso que as minhas questões atuais, ontológicas e políticas, sejam repropostas a eles. "Que coisa é uma instituição que nasce das lutas?", pergunto a Maquiavel. "Que coisa é uma democracia que nasce da vontade e do desejo de todos", pergunto a Espinosa. "Que coisa é a vontade de poder em um mundo biopolítico global e sem limite, e o não-repouso da razão", pergunto a Nietzsche.

3. Alguns dos filósofos contemporâneos que mais leio hoje já morreram. Outros, como eu, envelhecem. Falo de Foucault, Deleuze, Guattari, Derrida, Nancy, Agamben. São todos gente expatriada, mas que foi capaz de viver a mudança pós-moderna em sentido pleno, positivo e construtivo.
Acredito que o elemento fundamental que me aproxima desses autores seja o nexo contínuo e comum que ontologia e ética, imersão no ser, descrição do presente e decisão política encontram no agir filosófico deles. Estranho: agora me vem à mente um outro autor, não de todo contemporâneo, mas quase, norte-americano, que, nesta época embrutecida pela filosofia de George W. Bush, desperta a consciência da reforma necessária: John Dewey.

Antonio Negri é filósofo italiano, autor de "O Poder Constituinte" (DP&A) e, com Michael Hardt, de "Império" (Record).
Tradução de Victor Aiello Tsu.



Texto Anterior: saiba +
Próximo Texto: Jürgen Habermas: O salva-vidas Kant
Índice

UOL
Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.