São Paulo, domingo, 08 de julho de 2007

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+ Cultura

A cidade das mil contradições

O crítico e escritor italiano Umberto Eco, autor de "O Nome da Rosa", escreve sobre o "Dicionário Apaixonado de Nápoles", que está saindo na França

Mario Laporta - 9.jul.2006/France Presse
Rua de Nápoles decorada com bandeiras da Itália na final da Copa da Alemanha, em 2006


UMBERTO ECO

Quando falamos de viajar pela Itália e de fazer o "grande percurso", certamente evocamos o "gentleman" inglês bem-educado que explorava o continente (europeu), encerrando o percurso na Itália, em geral em Nápoles.
Então nos vem ao espírito o "italienische Reise" dos alemães cultos, pois, apesar de Goethe ter permanecido apenas quatro meses entre Nápoles e a Sicília, sua descida para o sul da Itália ainda é memorável por um verso citado por todos: "Conheces o país onde florescem os limoeiros?".
O mito napolitano é um topos da literatura francesa, razão por que não deveria nos surpreender o livro de outro amante de Nápoles, o último na ordem cronológica: Jean-Noël Schifano.
Só que Schifano é um apaixonado por Nápoles no sentido mais sensual e erótico do termo, um amante violento e ciumento, apaixonado, febril, embriagado.
E essa febre se manifesta numa escrita inflamada e brilhante, que confere a seu ato de amor uma sedução furiosa. O difícil em minha leitura deste livro é que Schifano é meu tradutor francês, e nutro por ele e seu estilo uma admiração sem limites.
Mas sou um italiano do Piemonte (região que, há séculos, é culturalmente mais francesa que italiana), e entre um piemontês e um napolitano existe bem mais diferença que entre um sueco e um brasileiro da Bahia.
Por essa razão, me ver diante de um francês (mesmo que seja um francês de pai italiano) mais napolitano que qualquer outra pessoa é algo que me provoca um sentimento de mal-estar.
Naturalmente (mesmo que isso pareça o caso de um desses anti-semitas que iniciam seu discurso com "alguns de meus melhores amigos são judeus"), também sinto o fascínio de Nápoles.
E falo não apenas da paisagem mas da extraordinária humanidade de seus habitantes e da postura de cavalheiro de muitos de seus intelectuais.
Mas não posso esquecer que o "Dictionnaire Amoureux" [Dicionário Apaixonado] de Schifano está saindo na França pouco depois de "Gomorrhe", de Roberto Saviano, ter sido lançado na Itália -um livro tão violento sobre Nápoles, capital da Camorra, território de uma criminalidade desenfreada, que obrigou seu autor a viajar sob escolta policial para fugir da vingança desse mundo impiedosamente denunciado.
Em quem acreditar? Saviano, que nos fala de um inferno, ou Schifano, que, com seu olhar velado pela nostalgia, nos fala de um paraíso?
É verdade que Saviano vive nesse inferno, enquanto Schifano, no momento, fala dele à distância -mas ele viveu em Nápoles, e por muito tempo, como diretor do Instituto Francês, e outros de seus livros também carregam a marca da cidade.
Seria fácil dizer que acontece com Nápoles o que ocorre com tantas outras cidades: no Rio de Janeiro é possível passar meses em um dos melhores hotéis de Copacabana ou Ipanema sem saber que a alguns quilômetros de distância está o inferno das favelas; é possível desfrutar de Nova York, circulando entre o Village, a Quinta Avenida, ignorando o Bronx; pode-se viver esplendidamente em Paris, ignorando a periferia do quebra-quebra.

Superstição e intelectuais
Mas Schifano não ignora a Nápoles sombria, e a prova disso, neste livro, está no capítulo sobre a Camorra, que retoma sem censura algumas das passagens mais terríveis do livro de Saviano.
Schifano assume a postura de todos os amantes de Nápoles: é a cidade de mil contradições, sede da superstição mais desenfreada e berço de alguns dos maiores filósofos, não apenas da Itália mas do mundo (para citar apenas quatro, Tomás de Aquino, Giordano Bruno, Giambattista Vico e Benedetto Croce), caldo de cultura de uma criminalidade difusa que se autocelebra em suas canções, sua comédia popular, seu cinema licencioso e palco de uma queixa contínua feita à Itália, que critica nela exatamente os defeitos que seus maiores artistas sempre exaltaram.
Como falar de uma realidade tão contraditória?
Schifano optou pela forma da lista alfabética: falar de Nápoles por meio de verbetes intitulados Averne, Caligula, Flaubert, Mozzarella, Murat, Pergolese, Pulcinella, San Severo, Sartre, Stendhal e Vesúvio lhe permite girar diante dos olhos do leitor o caleidoscópio de uma cidade inapreensível sem, aparentemente, chegar a um veredicto.
E o charme da narrativa, das evocações, das lembranças pessoais e eruditas é tão grande que o leitor vai pouco a pouco cedendo a esse encantamento.
E ele faz mal. Porque há uma ideologia subjacente, e, como dizia no passado Mao, há um pensamento-Schifano, em harmonia completa com o espírito mais profundo da napolitaneidade, que Schifano celebra ao nos dizer que "há mais de 3.000 anos os napolitanos são tudo menos revolucionários e (que) as aventuras de uma elite nobre distanciada do povo e da plebe não podem, aqui, ser mais que uma paródia desastrosa ou risível".

Nápoles x Roma
Vem daí a polêmica (certamente justa, mesmo em termos históricos) em torno de um Piemonte que, para realizar a unidade da Itália, humilhou essa cidade e -no sonho de fazer do vilarejo miserável que era Roma, na época a capital do novo reino- degradou Nápoles de seu status de única capital verdadeira da Itália.
O que permite a Schifano -sem subtrair da Camorra e do rancor de Nápoles com relação ao Estado italiano suas características mais repugnantes- enxergar essa queda progressiva na ilegalidade como reação à insensibilidade de um poder que sempre lhe permaneceu exterior.
Argumento principal dos defensores e apaixonados de Nápoles, os quais, entretanto, evitam perguntar-se por que a cidade, no fim das contas, aceitou igualmente bem a opressão e a reação criminosa contra a opressão.
De fato, não houve e não há algo de trágico e de fatal no inconsciente dessa cidade, algo que a impediu de fugir de seu destino? Mas talvez seja justamente esse destino trágico que faz o fascínio perturbador e luminoso de Nápoles.
Schifano sabe que o culto a são Genaro (aquele que a própria Igreja riscou da lista de seus santos) e a fascinante cerimônia da liquefação de seu sangue são a apoteose da superstição e da mentira com a qual se consola um povo infeliz.
Não é por acaso que outro grande amante de Nápoles tenha sido o marquês de Sade, que escreveu: "Como fazer, entretanto, numa terra em que o clima, os alimentos e a corrupção geral convidam tão perpetuamente à devassidão... Que excitação! Que frenesi! Que fúria!".
E Schifano, mais adiante, comenta: "Não terá Sade encontrado seu paraíso infernal sobre a lava napolitana?". Não se julga a paixão dos amantes. E depois, para dizer de Schifano aquilo que ele próprio diz a respeito de Sade, em certo momento: "Merda! Que estilo!".

UMBERTO ECO (1932) é escritor e ensaísta, especialista em semiótica e estética medieval. É autor, entre outros livros, de "O Nome da Rosa" (Nova Fronteira). A íntegra deste texto saiu na revista francesa "Nouvel Observateur". Tradução de Clara Allain.


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