São Paulo, domingo, 08 de agosto de 2004

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LUTA DE CLASSES NA LONA

BOXE É UM APRENDIZADO NOTÁVEL DA TÉCNICA DE ESQUIVAR E PREPARA O INDIVÍDUO PARA SE DEFENDER DIANTE DAS SITUAÇÕES MAIS CRÍTICAS DA VIDA

por Eduardo Suplicy

Dos 8 aos 12 anos passei quatro férias de verão no acampamento Paiol Grande, em Campos do Jordão [SP]. Ali conheci o boxe. Praticava outros esportes, como todos os meninos dessa idade, mas achei que o boxe poderia dar mais instrumentos para minha defesa pessoal. Higino Zumbano, tio do campeão Eder Jofre, era o treinador. Dei-me bem e tornei-me campeão da categoria leve.
Já adolescente, conheci o ex-campeão amador Lúcio Inácio da Cruz por intermédio do meu cunhado Aguinaldo de Araújo Góes. Lúcio passou a ser meu treinador e amigo. Treinei com ele dos 15 aos 21 anos. O porão de minha casa se transformou numa pequena academia. O treino de boxe é muito especial. Fez-me bem para o resto da vida. Pulava corda. Fazia ginástica tipo sueca, saía para correr no parque, fazia rounds com sacos de areia, "punching-ball", sombra e finalmente luvas, ou seja, o treinamento com os adversários. Aprendi também o segredo do relaxamento.
Levava jeito. Lúcio começou a ficar entusiasmado. Levava-me para as academias, onde fiz luvas com pugilistas da época, como Eder Jofre, Fernando Barreto, Paulo de Jesus, Milton Rosa, Abrão de Souza e tantos outros.
Em 1962 participei do campeonato de estreantes de "A Gazeta Esportiva". O ginásio Wilson Russo estava lotado, umas mil pessoas, entre elas meus amigos e amigas da GV [Fundação Getúlio Vargas], do Harmonia, do Paulistano. No vestiário Lúcio disse: "Não vá se impressionar com o tamanho do negrão que vai ser seu adversário".
Ao entrar no ringue senti a vibração da torcida na mais autêntica luta de classes: "Acaba logo com esse filhinho de mamãe".
Começamos a luta dando tudo. De repente, Jorge J. Santos me acerta um direto no queixo. Fui à lona. Olhei para Lúcio. Ele me deu o sinal para que eu aguardasse a contagem, me acalmasse e daí fizesse o que eu sabia. Já ao final do primeiro round a luta estava equilibrada, com o público torcendo muito.
No segundo round me animei e aprimorei minha técnica.
Derrubei meu adversário por duas vezes. No dia seguinte "A Gazeta Esportiva" deu com destaque: "Eduardo Matarazzo Suplicy sai da lona para ganhar por nocaute". O público vibrou, carregou-me no colo.
A luta seguinte foi no Tênis Clube, num ginásio bem maior, com transmissão pela TV, contra Getúlio Veloso, índio do Amazonas. Aumentou a responsabilidade. Na véspera surgiram umas bolhas na língua, tive febre. Era pela tensão. Lotou. Meu pai, irmãos e amigos foram com máquina fotográfica. A luta foi equilibradíssima e dura, com ambos os adversários desferindo socos contundentes, mas não houve quedas nos três assaltos. Percebi que o boxe é um esporte que pode machucar para valer. No final o juiz levantou meu braço, dando-me a vitória por pontos, 2 a 1, segundo os jurados.
Dois dias depois fui chamado à sede da Federação Paulista de Pugilismo. Disseram-me que um dos jurados havia se enganado na papeleta e escrevera o número de pontos de um jeito e colocora o nome do vencedor de outro. Portanto, eu teria perdido. Estranhei o procedimento e propus nova luta. Mas deram a vitória a Getúlio. Decidi então me dedicar intensamente a outras lutas pela vida. Mas o boxe foi um aprendizado notável da técnica de esquivar, dançar, golpear, estar preparado para se defender diante das mais difíceis situações da vida.
Ensinou-me também a me manter em bom estado físico, o que é sempre bom para a mente e a alma.


Eduardo Matarazzo Suplicy é professor de economia na Fundação Getúlio Vargas (FGV-SP) e senador da República (PT-SP). É autor de "Renda de Cidadania" (ed. Perseu Abramo).


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