São Paulo, domingo, 08 de agosto de 2004

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A CESTA SANTA

MARCA DA CULTURA HEGEMÔNICA NORTE-AMERICANA, BASQUETE ENCONTRA NO ARO O SÍMBOLO PERFEITO DA ACUMULAÇÃO

por Moacyr Scliar

Jogo basquete há muitos anos na Associação Cristã de Moços de Porto Alegre. Não posso dizer que tenha sido uma trajetória brilhante, a minha; para falar a verdade, até hoje nunca recebi uma proposta da NBA [liga de basquete profissional dos EUA]. Talvez seja uma espécie de boicote, não sei.
Na verdade, mais que jogador, sou um espectador privilegiado. Posso fardar-me, posso entrar na quadra, posso correr de um lado para o outro (afinal, exercício é necessário), mas não posso ir muito além. Cestas, para mim, são um acontecimento fortuito, com uma exceção: a cesta de Natal.
Meus companheiros sabem muito bem que o ano não pode terminar sem que eu faça ao menos uma cesta e, assim, passam-me repetidamente a bola para que o ritual seja cumprido.
A pergunta que se pode fazer é: qual a razão de minha insistência? Por que não arranjo uma atividade menos frustrante? A resposta está na mística do basquete, que é apenas uma variante da mística do esporte em geral. Como muitos esportes, o basquete envolve uma bola, esse objeto esférico que pode simbolizar a Terra, o universo, a própria existência. E envolve competição, aquela mesma competição que, em tempos remotos, opunha os homens de caverna na briga por território ou os senhores feudais na luta pelo poder e pela glória.
Mas o basquete traz também a marca da modernidade; no caso, a marca da cultura hegemônica em nosso tempo, a cultura norte-americana. O basquete foi inventado nos EUA, mais precisamente na ACM de lá. Tratava-se de encontrar um esporte que pudesse ser disputado em lugar fechado, durante o rigoroso inverno do hemisfério Norte. E aí um prosaico objeto, que é também um símbolo de acumulação, foi usado: a cesta. Era uma cesta mesmo e ficava no chão (sou dos que lamentam a transferência dessa cesta para as alturas).
Diferentemente do futebol, que depende do pé, o basquete privilegia a mão, e trabalhar com as mãos foi coisa que os norte-americanos sempre valorizaram, como postura ética e forma de gerar riqueza. O basquete permite escores elevados; nada daqueles minguados resultados do futebol. Não, há muito ponto. E muita emoção: número, seja no placar, seja nas cotações da Bolsa, é, sim, emoção.
A bola é importante; igualmente importante é o aro. Ali está ele, a materialização do objetivo a ser alcançado. Fazer uma cesta exige habilidade, exige precisão. Há duas maneiras de fazer cesta. A primeira é atirar de longe. A bola descreverá uma curva no ar, encontrará a tabela e, batendo nela, penetrará a cesta. Ou então irá diretamente para o aro. E aí pode ocorrer um instante de suspense, a bola dançando no aro, indecisa se vai entrar ou não. É um momento decisivo, extremamente simbólico para uma cultura que adora decisões tomadas em frações de segundo; equivale ao momento em que, nos filmes de faroeste, o mocinho e o bandido sacam suas armas e disparam.
A outra forma de fazer cesta é enterrar a bola. E enterrar a bola corresponde a uma dramática inflexão na história do basquete, resumida na frase que dá título a um filme: "Homens Brancos Não Sabem Enterrar". Quem enterra a bola são os negros. Das plantações do Sul, onde trabalhavam como escravos, às canchas dos estádios, onde brilham como heróis, os negros americanos percorreram um longo caminho, que representa uma espécie de justiça poética.
O basquete ajudou a revelar os negros como brilhantes esportistas, o que não deixa de ser desconcertante para os racistas e acrescenta um elemento adicional à complexa realidade norte-americana.
Nos Estados Unidos comprei uma camiseta que diz "Basketball is life". Não há dúvida: o basquete fala da vida, fala do mundo em que vivem aqueles que fazem cestas e aqueles que são, no máximo, espectadores privilegiados.


Moacyr Scliar é escritor, autor de "Saturno nos Trópicos" (Companhia das Letras), em que fala do futebol como antídoto brasileiro contra a tristeza herdada dos europeus. Mas não fala em basquete.


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