São Paulo, domingo, 08 de agosto de 2004

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A SOCIEDADE TOTAL

UM DOS PRINCIPAIS HELENISTAS VIVOS ANALISA EM CINCO VERBETES DE QUE MODO NOÇÕES COMO PROGRESSO, AMOR E RELIGIOSIDADE PASSARAM DA GRÉCIA ANTIGA ATÉ OS DIAS ATUAIS

por Jean-Pierre Vernant

politeísmo

Na Grécia, todos os atos do cotidiano são marcados pela religiosidade: quando as pessoas comem, quando viajam, em todas as ocasiões da vida suas condutas carregam a marca da presença de um universo divino ao qual devem se conformar. Mas não existe uma esfera religiosa que deva imperativamente moldar essas certezas. Não existe credo. Logo, aquilo que, de certa maneira, seria imposto pelo monoteísmo sob sua forma cristã -ou seja, um controle dos espíritos e do conhecimento- não existia. O esforço da filosofia grega para pensar o mundo de maneira completa e complexa foi objeto de uma construção intelectual que não é de tipo religioso. Não apenas nenhum credo era imposto de antemão como tudo era discutido: os sofistas, Platão, Aristóteles, os estóicos não concordavam em suas idéias. A ebulição intelectual entre os politeístas gregos era intensa, mas foi o monoteísmo que difundiu a noção de humanidade e de amor. Entre o "eros" grego e o "ágape" (o amor) cristão existe uma mudança total.

progresso

Houve um período no qual muitas pessoas, no Ocidente, conviveram com a idéia de que passado e presente não tinham outro sentido senão o de preparar um futuro que traria soluções e romperia com os egoísmos nacionais e as injustiças sociais. O que me atraía no marxismo não era apenas o fato de tornar compreensíveis para mim as injustiças chocantes, mas de me revelar os mecanismos sociais, econômicos e técnicos que geraram essa situação. Assim, os caminhos da luta eram fundamentados na razão. Com a crença segundo a qual, por exemplo, era possível fazer um planejamento econômico antecipado, tornava-se possível substituir pela previsão as incertezas das relações de força e das descobertas técnicas ou econômicas. Assim, tornava-se possível imaginar uma humanidade na qual o homem seria livre; passaríamos (aqui retomo uma fórmula de Marx [1818-83]) do "reinado da necessidade" -no qual somos conduzidos pelas coisas- para o "reinado da liberdade" -no qual é o homem quem domina essa necessidade. Eu acreditei nessa idéia. Hoje, não acredito mais. Hoje percebo que existe um elemento temporal de peso capital: a imprevisibilidade. No fim das contas, a física contemporânea tampouco crê na causalidade mecânica. A imprevisibilidade também está presente no campo da vida social ou intelectual, e eu diria que é ela quem nos salva: é tanto mais interessante aquilo que é imprevisível. Ou seja, somos sempre surpreendidos pelo que acontece, e a explicação sempre chega a posteriori. Compreendemos que as técnicas que desenvolvemos, as formas de energia que descobrimos, podem ter conseqüências que seus descobridores em nenhum momento imaginavam. Nosso futuro humano é posto em questão pelo desenvolvimento técnico. Existe o Prometeu de Marx, que quer transformar o mundo. Mas o Prometeu grego não é esse. O progresso é uma idéia grega na medida em que passamos do estágio da barbárie -ou da vida quase animal- para a vida civilizada. O mais importante, para Prometeu, é nunca desistir.

comunidade

Os gregos inventaram a cidade, e o paradoxo é que a grandeza desta é, ao mesmo tempo, sua fragilidade. A cidade não é mais dirigida por um soberano único. Uma sociedade hierárquica tomou o lugar de uma sociedade igualitária na qual todos os homens estão a uma distância igual do centro e participam das discussões. Mas o essencial, em uma comunidade, é o sentimento de "philia" -a amizade- que seus membros nutrem uns pelos outros. É esse o cimento humano. Ora, se existe uma assembléia ou um debate, haverá obrigatoriamente dois discursos contraditórios que serão decididos pelo voto. Conseqüentemente, a cidade se divide, e essa divisão significa que a democracia traz em seu bojo, necessariamente, a possibilidade de negar seu fundamento: a amizade entre pessoas que são todas semelhantes e estão em pé de igualdade. Em dado momento, essa homogeneidade gera a divisão e a luta.
Os gregos nos legaram o sentimento da comunidade. E também o fato de que o essencial na vida do homem não é o trabalho, mas a vida política, o contato com os outros nas assembléias, as discussões nos banquetes. Todo o interesse da vida reside precisamente naquilo que não é utilitário. É uma idéia muito diferente da nossa. O trabalho não é a base do vínculo social. Para os gregos, o fato de cada artesão ser especializado -o fato de que um produza sapatos, outro, fivelas, e, ainda outro, jarros- é a prova de que essa divisão do trabalho não pode constituir o fundamento de uma sociedade, já que o fundamento da sociedade é aquilo que os homens possuem de semelhante.
Logo, o que deve unir os homens é aquilo que mostra o mito de Protágoras, conforme relatado por Platão [428-348 a.C.], quando Protágoras [485-410 a.C.] explica o que aconteceu no momento da criação das espécies. Prometeu e seu irmão Epimeteu são encarregados de dotar cada espécie animal da forma, das qualidades e das forças que vão caracterizá-la. Eles tomam o cuidado de fazer com que essas qualidades se equilibrem. Se um animal ganha força e tamanho, ele não terá rapidez. Se ele é mais frágil, será dotado de rapidez ou da capacidade de voar, para que possa sobreviver. Depois eles criam os homens, e, no momento de sua criação, não restam mais forças e qualidades suficientes. Logo, o homem surge desarmado.
Para que a espécie humana não desapareça em razão de sua fragilidade, o que se faz? Dota-se cada um de saberes técnicos, de modo a compensar por aquilo que lhe falta. Ele é sensível ao frio: as pessoas vão fiar e tecer a lã, produzir tecidos. Ele tem pés frágeis: ganhará sapatos.
Assim, cada saber técnico é dado ao homem, e é ao trocar seus produtos que estes vão poder constituir uma sociedade. Mas as coisas não funcionam direito -porque cada um se ocupa de seus assuntos. Os homens se digladiam. Zeus fica sabendo disso e, para salvá-los, encarrega Hermes de remediar essa situação catastrófica. É assim que Hermes dota os homens do senso da honra e da justiça. Nesse momento, todos poderão constituir uma cidade, não por possuírem os saberes técnicos, mas porque todos compartilham a mesma idéia daquilo que é honrado e justo.

cultura

Ainda pensamos um pouco como os gregos. O que alguém faz para tornar-se filósofo? Lê os gregos, depois lê Descartes [1596-1650] e Espinosa [1632-77], mas existe uma continuidade. Lemos os gregos, mas não lemos os filósofos chineses nem os da Índia. Nos campos estéticos, isso ainda é verdade. A pintura do Renascimento teve origem nos modelos gregos. O teatro e a tragédia são a mesma coisa. Excetuando esse legado, porém, nos distanciamos dos gregos. Eu diria que a Grécia foi redescoberta. Quando eu era jovem, todos os que não eram burros demais estudavam grego na escola. Hoje em dia acontece o contrário. Aqueles aos quais designamos como a elite (os magistrados, advogados, médicos...) tinham os dois pés plantados na cultura grega. Hoje, as elites zombam dela. No entanto não é por acaso que, quando Freud [1856-1939] criou uma nova disciplina, foi buscar Édipo e Antígona. Quando os astrônomos descobrem uma constelação, é a mesma coisa: dão a ela um nome grego. Quando alguém acaba de criar um novo perfume, me pergunta se posso lhe redigir uma lista de personagens gregos que ficariam bem sobre o rótulo. Quer dizer então que, se dão aos frascos de perfume os nomes de "Héracles", "Hércules" ou "Perseu", isso mexe com o quê? Com nada de preciso, mas com um sentimento ambíguo, de algo ao mesmo tempo familiar e distante. É verdade que, para alguém que não é "religioso" -ou seja, alguém que pensa que o mundo é o que é e que, se existe algo além do mundo, esse algo está dentro deste mundo aqui, que é neste mundo mesmo que existe essa experiência que ultrapassa o cotidiano (é o meu caso)- a Grécia é importante. É muito útil. Pois a Grécia é uma civilização essencialmente construída sobre a base do mundo como ele é, sobre a aceitação e a transmutação desse mundo em valores de beleza, inteligibilidade, de afeto, de amor, de riso... E, por conseguinte -já que é preciso que as coisas tenham sentido, algo de que não é fácil lhes dotar-, existe a arte. Não é uma sociedade para a qual a vida só faz sentido em relação com outra vida, com o além. De maneira nenhuma. É a vida, com seu lado trágico. Façamos o que fizermos, a morte é radicalmente ininteligível. Foi o que compreenderam os gregos quando criaram a cabeça de Medusa, que transforma quem a olha em pedra -ou seja, o contrário do que é humano. Eles explicam que essa Górgona, que não pode ser descrita, pintada ou expressa por palavras, é o incompreensível, o absurdo total. Isso dito, eles a expõem por toda parte e não param de falar dela. É o paradoxo da Górgona: fazer ver aquilo que não pode ser visto, dizer o que não pode ser dito, figurar o que não é figurável. É uma das partes de nossa condição humana.

resistência

Para os gregos, não existe questão que não possa ser submetida ao exame intelectual. Essa é nossa herança.
Existe um livro do poeta Yves Bonnefoy [poeta francês, nascido em 1923] intitulado "L'Arrière-Monde" [O Mundo de Trás] que mostra que, em uma paisagem, existe algo atrás dela que faz parte dela, mas não está ali. A mesma coisa acontece na vida. Os gregos o diziam. Aquiles disse isso a Agamênon: "Você é um covarde porque não está disposto a entregar sua alma em cada momento". Retomo o ideal de Aquiles. Existem coisas e valores que contam no mundo, mas que são valores mundanos. Isso significa que os temos, que podemos perdê-los, negociá-los, reconquistá-los. São os valores que circulam. A única coisa que não podemos nem trocar nem recuperar é nossa própria vida. É isso que Aquiles diz a Agamênon. E, como ela é o que existe de mais precioso, existe nela algo que transcende. Não podemos aviltá-la pela conciliação. Existem momentos em que não existe escolha, em que não existe conciliação possível, não existem meias medidas.


Este texto foi publicado na "Nouvel Observateur".
Tradução de Clara Allain.


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