São Paulo, domingo, 08 de agosto de 2004

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

+ memória

Mais importante fotógrafo do século 20, Henri Cartier-Bresson, morto na última segunda-feira, jamais deixou de assumir a condição de autor em uma atividade que se tornou comercial e obcecada pela tecnologia

O FILTRO MÁGICO DE UM SER INVISÍVEL

por Cristiano Mascaro

Sempre imaginei que, assim como sua obra grandiosa, ele também, aos 95 anos, fosse imortal. Sabia que havia deixado de fotografar e passara a se dedicar ao desenho (o que, confesso, me pareceu uma pequena traição), no entanto nunca deixei de imaginá-lo eternamente com uma câmera à espreita de algum momento luminoso que nos pudesse revelar. Portanto, ao saber de sua morte, fiquei um tanto atordoado. Recebi a notícia na fila do cinema e, enquanto aguardava a bilheteira fazer o troco, em poucos segundos minha vida de fotógrafo, como em um filme rápido, passou diante de mim. Desisti da sessão, resolvi voltar para casa e refletir a respeito da importância de Henri Cartier-Bresson para todos aqueles que um dia sonharam ser fotógrafos, inclusive eu mesmo, que devo a ele o meu encanto pela fotografia. Por essa razão, não posso deixar de reverenciá-lo, mesmo que ele não tenha a menor idéia do ocorrido. Lembro-me com a maior clareza e em todos os seus detalhes o momento decisivo da revelação. Fugindo de uma aula aborrecida, refugiei-me na biblioteca da faculdade onde estudava e, entre uma infinidade de livros ali guardados, fui escolher bem aquele. Não sei se foi o desenho da lombada, o título "Images à la Sauvette" [Imagens Não-Autorizadas] ou o nome do autor, Henri Cartier-Bresson, de quem eu já havia mais ou menos ouvido falar, que me atraiu. Puxei-o da estante e, como se estivesse me preparando para o que iria acontecer, sentei-me confortavelmente em uma poltrona que havia por ali e comecei a folhear.

Peça-chave
A capa era em pano-couro marrom, as páginas iniciais de texto, apresentações etc, pelas quais passei rapidamente. E afinal veio a primeira foto que tinha tudo para não impressionar: um jovem e anônimo casal de noivos em um parque parisiense. A segunda fotografia, mais despojada ainda, retratava um velho senhor entre cadeiras vazias de um café, e a terceira era a de uma família fazendo piquenique na beira de um rio. Mas foi o que me bastou. Aquelas situações tão banais e cotidianas, sem brilho, foram observadas de uma maneira tão sensível, construídas de forma tão elaborada e fixadas em momento tão preciso que se tornaram grandiosas, reveladoras de sensações que jamais teria percebido se não estivesse diante daquelas imagens. Senti que a pobre e opaca realidade havia passado por um filtro mágico. Fiquei verdadeiramente muito impressionado e tomado por um sentimento de enlevo e admiração. Jamais imaginara a possibilidade de poder observar o mundo daquela forma. E decidi, naquele instante, que deveria ser fotógrafo. De fato, Henri Cartier-Bresson é um grande mestre, cujo trabalho arrebata e representa, em toda a história da fotografia, sua peça-chave. Senão vejamos: a partir da primeira fotografia realizada por Joseph Nicéphore Nièpce, em 1826, o entendimento do que era o mundo mudou radicalmente. Até então o universo visual das pessoas muitas vezes se encerrava na esquina mais próxima, e foram as imagens dos fotógrafos pioneiros que desvendaram aos olhos dos europeus como eram as cidades do Oriente, as paisagens da África e a fisionomia dos povos distantes com a veracidade que a fotografia oferecia. No entanto eram imagens estáticas, próximas da pintura. Os fotógrafos eram prisioneiros de um equipamento pesado que muitas vezes precisava ser transportado por carroças e apoiados em enormes tripés. Além disso, os filmes eram muito pouco sensíveis, o que obrigava os modelos a posarem, imóveis, durante longos minutos sem piscar os olhos. Surgiram, nesses primórdios, alguns fotógrafos que já desconfiavam que aquela forma extraordinária de fixar as imagens das pessoas e dos objetos não se resumia a uma simples técnica. Retratistas como Nadar e Julia Margareth Cameron e os primeiros fotógrafos de rua, como Eugène Atget e Charles Marville, já revelavam que a fotografia não era simplesmente um registro literal da realidade e exploravam sua capacidade de expressão e de representação. No entanto ainda era pouco.

O acaso
Por volta de 1920 surgiram as primeiras câmeras portáteis e filmes mais sensíveis e longos o suficiente para permitirem inúmeras fotos em seqüência. Pronto, estavam criadas as condições para Henri Cartier-Bresson entrar em cena.
Desde suas primeiras imagens realizadas na África, em 1931, ele percebeu as novas possibilidades que tinha à disposição e não cessou de, a partir dos elementos que fixou para criar suas imagens (a paciência, a reflexão, o acaso, a forma, o tempo), capturar a vida em movimento em um instante decisivo -o que veio a se tornar o fundamento primordial da linguagem fotográfica e que passou a influenciar, desde então, no mínimo cinco gerações de fotógrafos assim como, seguramente, influenciará todas as outras que estão por vir.
Tratá-lo somente como "pai do fotojornalismo", o que não seria pouco, é, no entanto, uma redução. De fato, Cartier-Bresson foi repórter quando cobriu a tomada do poder na China por Mao Tse-tung, a morte de Ghandi, em 1949, e a libertação de Paris pela Resistência francesa e pelos aliados. Mas foi também um retratista excepcional ao nos revelar a fisionomia torturada de Ezra Pound, o vigor de Leonard Bernstein, a bonomia de Jean Renoir, de quem foi assistente em "A Regra do Jogo", a severidade do olhar de André Malraux, a delicadeza de gestos de Truman Capote e o caráter de muitos outros famosos e anônimos, assim como foi também um documentarista perfeito ao viajar pelo mundo.
E o que o torna singular é o fato de ter construído toda sua obra monumental acompanhado unicamente de uma câmera muito simples, sem disparar um flash, em atitudes tão discretas que o transformavam em um ente invisível. Misturava-se com os protagonistas da cena a ponto de fazer parte dela, evitando o papel de simples curioso. Todas essas qualidades podem ser reunidas em uma só verdade: Henri Cartier-Bresson foi grande porque, como fotógrafo, jamais deixou de assumir a condição de autor em uma atividade que se tornou comercial, obcecada pela tecnologia e por atitudes vanguardeiras. Permaneceu fiel a seus princípios do começo ao fim.
Portanto, nada mais justo do que o espaço generoso que os jornais do mundo todo, inclusive os brasileiros, destinaram ao anúncio de sua morte e à reafirmação da importância de sua obra. O que, habitualmente, somente acontece com os grandes vultos da história geral.
Portanto, decididamente, ele não foi simplesmente o mais importante fotógrafo do século 20. Se tivéssemos de elaborar uma lista dos dez fotógrafos mais importantes de toda a história da fotografia, certamente ele estaria incluído. Mas isto diz pouco ainda, pois em uma lista de cinco ele também estaria presente. E para encurtar a história, se tivéssemos de reduzi-la para uma lista de um só personagem, não haveria problema: seria ele, fatalmente, o escolhido.


Cristiano Mascaro, 59, é um dos principais fotógrafos brasileiros. Formado em arquitetura pela USP, seu trabalho retrata sobretudo a cidade de São Paulo, mas também o cotidiano das cidades.


Texto Anterior: + história: A revolução subterrânea
Próximo Texto: Ponto de fuga: Belas trapaças
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.