São Paulo, domingo, 08 de setembro de 2002

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+ sociedade

Pressão da reviravolta no mercado de ações está levando os EUA a adotar medidas protecionistas e a abandonar políticas de livre comércio global

O museu ideológico do século 20

John Gray
especial para a Folha

Ao longo dos tempos modernos, Estados liberais coexistiram com muitos tipos de tirania. De modo semelhante, o mundo moderno sempre teve numerosos sistemas econômicos -muitas variedades de capitalismo, economias planejadas e dirigidas e uma série de sistemas econômicos híbridos, de difícil classificação. A diplomacia e o direito internacional se desenvolveram para lidar com a existência de regimes diversos. Ainda assim, durante o século 20 a política global foi moldada por um projeto de unificação do mundo sob um único regime. Até o momento em que permanecia fiel à ideologia marxista, o objetivo a longo prazo do regime soviético era o comunismo mundial. O mundo deveria ter uma única economia socialista, administrada por formas de governança semelhantes em todos os lugares. Esse projeto marxista é agora ampla e corretamente visto como utópico. Mesmo assim, seu desaparecimento como força na política mundial não foi acompanhado por uma aceitação de uma diversidade de sistemas políticos. Com a queda do comunismo, estávamos, na famosa frase de Francis Fukuyama, no "fim da história", um tempo em que os governos ocidentais poderiam dedicar-se a unificar o sistema internacional sob um único regime baseado em livres mercados e governos democráticos. Mas esse projeto é tão utópico quanto o foi uma vez o marxista, e promete ser consideravelmente mais efêmero que a União Soviética.

Dissenso nacionalista
Muitos motivos houve para o colapso do bloco soviético, mas -contrariamente à opinião convencional- as ineficiências econômicas não foram os fundamentais. O bloco soviético desintegrou-se por não poder lidar com o dissenso nacionalista na Polônia e nos Estados bálticos e, de uma forma mais geral, porque um único sistema econômico e político não pôde atender às demandas de sociedades e povos muitíssimo diferentes.
O marxismo é um tipo de determinismo econômico. Ele prediz que as diferenças entre sociedades e povos diminuem no momento em que eles atingem níveis similares de desenvolvimento econômico. Nacionalismo e religião não teriam importância política duradoura, acreditavam os marxistas. No curto prazo, eles poderiam ser usados para inflamar movimentos antiimperialistas. Por fim, eles seriam obstáculos à construção do socialismo.
Guiado por essas crenças, o Estado soviético mantinha uma incessante guerra contra as tradições nacionais e religiosas das pessoas que governava.
Na prática, os governantes soviéticos eram obrigados a fazer concessões para conseguir permanecer no poder. Poucos poderiam ser descritos como ideólogos absolutamente comprometidos com suas causas. Mesmo assim, a rigidez do sistema soviético foi em grande parte resultante do fato de que ele havia sido estabelecido sobre uma premissa falsa.
A base do sistema soviético era a interpretação marxista da história, na qual cada sociedade é destinada a adotar o mesmo sistema econômico e a mesma forma de governo. A União Soviética caiu porque suas monolíticas instituições não puderam acomodar nações -tchecos e uzbeques, húngaros e siberianos, poloneses e mongóis- cujas histórias, circunstâncias e aspirações eram radicalmente divergentes.
Hoje o livre mercado global, construído após o colapso soviético, também está se desfazendo -e por motivos similares. Assim como os marxistas, os neoliberais são deterministas econômicos. Eles acreditam que os países por todo o mundo estão destinados a adotar o mesmo sistema econômico e, portanto, as mesmas instituições políticas.
Nada pode evitar que o mundo se torne um vasto mercado livre; mas o processo inevitável de convergência pode ser acelerado. Governos ocidentais e instituições transnacionais podem atuar como parteiras desse novo mundo.
Por mais que soe implausível, essa ideologia está por trás de instituições como o Fundo Monetário Internacional. A Argentina e a Indonésia têm problemas bem diferentes, mas para o FMI a solução é a mesma: ambos os países precisam se tornar economias de livre mercado. A Rússia, no momento da queda do regime, era um cinturão militarizado e enferrujado, mas o FMI estava convencido de que o país poderia ser transformado em uma economia de mercado no estilo ocidental. Um modelo idealizado do capitalismo anglo-saxão foi promovido por toda a parte.
Como era de esperar, essa abordagem altamente ideológica das políticas econômicas não funcionou. A Indonésia está em ruínas, enquanto a Argentina está deixando de ser um país de Primeiro Mundo. A Rússia já deixou seu período neoliberal para trás e agora está se desenvolvendo num caminho mais adequado à sua história e às suas circunstâncias.
Os países que mais bem resistiram às tempestades econômicas dos últimos anos foram aqueles que -como a Índia, a China e o Japão- receberam o modelo do FMI com muitas ressalvas. Tal como os poucos marxistas remanescentes que ainda defendem o planejamento econômico central, os ideólogos do FMI alegam que suas políticas não falharam; elas não teriam sido implementadas por completo. Mas essa resposta é pouco honesta. Em ambos os casos, as políticas foram testadas e falharam com grande custo humano.
Se a trama do mercado livre global está se desfazendo, não é por causa dos custos humanos de suas políticas em países como a Argentina, a Indonésia e a Rússia. É porque ele deixou de ser adequado aos países que mais ativamente o promoviam. Sob a pressão de uma reviravolta negativa no mercado de ações, os EUA estão abandonando as políticas de livre comércio global em favor de políticas mais tradicionais de protecionismo. Esta virada nos eventos não é surpreendente. Por toda a sua história, os EUA tentaram isolar seus mercados da competição estrangeira. Mais uma vez a história triunfou sobre a ideologia.
Com a perda do interesse norte-americano, o maior propulsor das políticas neoliberais saiu de cena. Os políticos "mainstream" podem ainda concordar reverentemente com a cabeça quando é invocado o mercado livre global, mas na prática o mundo está voltando a um modelo mais velho e mais duradouro. Está sendo tacitamente aceito que no futuro, assim como no passado, o mundo terá uma grande variedade de sistemas econômicos e regimes. O livre mercado global está prestes a se juntar ao comunismo e a demais utopias descartadas no museu da história.


John Gray é professor de pensamento europeu na London School of Economics e autor de "Isaiah Berlin" (Difel). Copyright "Project Syndicate".
Tradução de Victor Aiello Tsu.


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