São Paulo, domingo, 08 de outubro de 2006

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Ponto de Fuga

Pobres deuses


A atual mostra "Deuses Gregos", em São Paulo, é um pesadelo; o pior não é a encenação de shopping center, mas o fato de que as obras vêm expostas numa desordem incompreen-sível


JORGE COLI
COLUNISTA DA FOLHA

A Faap, em São Paulo, ofereceu, muitas vezes, belas exposições, inteligentes e estimulantes. Promoveu sólidas retrospectivas, buscou problemas atilados como núcleos de interrogações.
Feitas essas ressalvas, não é possível ir, agora, com meias palavras: a atual mostra "Deuses Gregos" é um pesadelo. De Berlim, veio um conjunto estupendo de obras criadas na Antigüidade clássica. Mas a apresentação parece ter sido concebida para infanto-juvenis desprevenidos, sem nenhum cuidado em lhes formar sensibilidade e conhecimento que valham a pena. Há uma cenografia. Algo como o Caesars Palace, de Las Vegas, mas bem pobrinho, muito elementar e patético (o Ceasars Palace é um hotel temático, ele imita a Roma Antiga, seus teatros, anfiteatros, termas. Há ali pinturas e esculturas que são alucinações kitsch).
Um recinto quer evocar a "rotonda" do arquiteto Schinkel, local que Hitchcock empregou com gênio em "Cortina Rasgada" (1966). Virou uma saleta cercada por imitações de capitéis coríntios. Outra quer reproduzir um jardim, espécie de "impluvium" doméstico, com samambaias de plástico ou coisa que as valha. Enfim, a sala do Pergamon propriamente dita apresenta, em redução, a museografia do grande altar helenístico que se encontra em Berlim. Lá, na Alemanha, a solução para exibir aqueles relevos esculpidos, imaginada na primeira metade do século 20, já é, ela própria, bem envelhecida, muito discutível, meio assustadora e arrevesada. Aqui, virou um palanquinho bobo.

Caos
O pior, porém, não é a encenação de shopping center. É o fato de que as obras vêm expostas numa desordem incompreensível. A idéia de que uma grande coleção de antigüidades tem uma história, que peças diversas foram adquiridas em períodos diversos, segundo diversos interesses, nem passou pela cabeça dos responsáveis.
Ao menos, poderiam ter feito com que a exposição mostrasse essa arte modificando-se em períodos diferentes e também em suas nuanças geográficas. Ninguém se preocupou com isso, e a baderna de séculos, de datas, de origens é total.
Esse desdém pelo rigor se confirma no fato de encontrarem-se misturadas cópias em gesso ou em resina com estátuas verdadeiras. O espiritual "Suplicante" ou "Orante" (título traduzido por "Garoto Suplicante"...), pólo central dessa apresentação disparatada, é uma moldagem em plástico. Pior, e grande atestado de negligência: duas pinturas criadas por Schinkel são apresentadas, nas etiquetas, como óleos. Não passam de grandes reproduções fotográficas.

Inútil
De tudo isso sobra o catálogo, com ótimos textos de especialistas (se o leitor pular a apresentação, na qual se explica que os brasileiros são também gregos). É lamentável fazerem vir, com grandes custos e esforços, arte admirável para que seja assim aniquilada por ambientes indignos. Os organizadores da mostra deveriam ter lido Proust. Ele insiste no fato de que as obras dependem de um clima que as envolve, sob pena de desaparecerem. É assim que a Faap afugentou os deuses. Torna-se quase impossível a concentração diante das esculturas. O esforço para captar a beleza dos ritmos de uma barba, a harmonia de um gesto, o mistério de um fragmento é, o mais das vezes, inútil.
Curioso e triste o modo como esses poderes das artes tornam-se invisíveis com o aviltamento causado pela vulgaridade, pelo didatismo simplório, pela bobagem da concepção.

jorgecoli@uol.com.br


Texto Anterior: Os dez +
Próximo Texto: Biblioteca Básica: Estrela da Vida Inteira
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.