São Paulo, domingo, 08 de outubro de 2006

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O nirvana pop

Radicado em Miami, Romero Britto fala da influência de Brennand e Keith Haring em sua formação, considera pintar um "ato religioso" e defende que aquilo que as pessoas buscam na arte é a felicidade

JULIANA MONACHESI
COLABORAÇÃO PARA A FOLHA

Na semana de abertura da 27ª Bienal de São Paulo, quando as atenções se voltam para as pesquisas de ponta no campo da arte contemporânea, a Folha faz o caminho inverso e investiga o fenômeno cultural e comercial Romero Britto.
Sucesso de vendas e público no Brasil e no mundo, sobretudo nos EUA, o artista de 42 anos que saiu de uma família pernambucana pobre para se tornar um "self-made man" modelo nos EUA é criticado no meio especializado das artes visuais, mas incensado (e consumido) pelo público leigo e por um círculo de celebridades internacionais. Isso lhe rendeu, por exemplo, um convite para dar uma palestra no Fórum Econômico Mundial, em Davos, em janeiro passado, sobre arte e globalização.
Sobre o que ele falou na palestra? "Falei de como o que os artistas plásticos fazem está longe de ter um impacto global. As pessoas se beneficiam quando podem ver arte na TV, num outdoor, em produtos que circulam mais do que a arte, restrita a museus e galerias."
É conhecido o projeto "The Most Wanted Paintings" (As Pinturas Mais Desejadas), da dupla de artistas russos Vitaly Komar e Alex Melamid, que empreenderam uma pesquisa do gosto, primeiramente nos EUA (1994) e, nos anos seguintes, com o apoio do Dia Center for the Arts, em vários países do mundo.
Questionário aplicado em larga escala, os artistas produzem a pintura preferida da população de cada país, invariavelmente uma paisagem tranqüila de céu azul. Em registro diverso, Mark Kostabi, o maior oportunista do mercado de arte, que tem um séquito de assistentes que fazem pinturas surrealistas, cubistas, realistas e em qualquer outro estilo que o artista queira, para depois as assinar e vender por uma fortuna, também lida em seu trabalho -de caráter rasgadamente comercial- com questões de gosto e mercado.
A ironia de Komar e Melamid é incensada no campo da arte contemporânea; o cinismo de Kostabi é execrado por críticos e público especializado. Qual o lugar de Romero Britto nesse contexto?
Seis curadores e críticos de arte brasileiros foram ouvidos pela reportagem da Folha a esse respeito (leia textos na página ao lado) e apontaram o hiato entre a inventividade da produção artística contemporânea, como aquela que pode ser vista na atual Bienal de São Paulo, e a diluição comercial da visualidade pop empreendida por Romero Britto.
"O circuito que legitima Romero Britto é o circuito das celebridades políticas e do entretenimento. O circuito da arte não o reconhece porque seu trabalho é ornamento, não é arte. Como a maioria das pessoas não detém informações e um olhar crítico sobre a arte, consome Romero Britto da mesma maneira que consome os valores apregoados pelas revistas de celebridades", afirma a curadora Cristiana Tejo.
De fato, há 20 anos vivendo nos EUA, Romero Britto tem obras em coleções de celebridades que vão de Madonna e Michael Jackson a Bill Clinton e Arnold Schwarzenegger, de quem é amigo pessoal.
Ele participa de diversos projetos sociais, doando para serem leiloadas obras que alcançam cifras na casa das dezenas de milhares de dólares. Recentemente, teve uma obra pública comissionada pelo fundador da feira Art Basel, Ernst Beyeler, para enfeitar a entrada da meca do comércio mundial da arte contemporânea.
Em sua galeria na rua Oscar Freire, em São Paulo, a Britto Central, suas criações são acessíveis a todos os bolsos: vão de R$ 8 (cartões-postais) a R$ 250 mil (telas originais). Na entrevista abaixo, concedida no mês passado em Campinas (SP), na abertura de exposição sua em um hotel da cidade, Britto falou de sua trajetória e de suas influências.

 

FOLHA - A que você atribui o fato de nunca ter sido convidado para uma Bienal de São Paulo?
ROMERO BRITTO
- Eu realmente não sei. Às vezes você tem alguma coisa acontecendo tão perto de você que você não nota. Em geral, o que acontece também é que, pelo fato de eu não estar muito no Brasil, no cenário de arte brasileiro, as pessoas não acompanham tanto meu trabalho. Pode ser por isso, mas eu realmente não sei.

FOLHA - Como foi seu início?
BRITTO
- Desde muito jovem eu pintava, mas nunca imaginei que arte pudesse ser uma profissão. Eu imaginava que seria um hobby e que teria um outro trabalho. Já aos 14 anos eu era muito influenciado pelo trabalho de Francisco Brennand; então comecei a pintar coisas bem locais, ligadas ao Nordeste e à natureza.
Acho que até hoje minha arte tem a ver com a natureza, com os sentimentos, e talvez isso explique seu sucesso, o motivo por que as pessoas são tão atraídas pela minha arte. As pessoas, especialmente do mundo das artes, às vezes criticam meu trabalho dizendo que é muito leve.
Um crítico uma vez falou que eu não me preocupava com o que está acontecendo no mundo, mas não é que eu não me preocupe, é que eu acho que, do mesmo jeito que é importante uma consciência sobre o mundo, também é importante pensar na felicidade.
Se você imaginar o que se gasta hoje na procura da felicidade... As pessoas trocam de sexo, trocam de cidade, se casam dez vezes, têm vários filhos, deixam os filhos, constroem pontes, tudo por conta da procura da felicidade, de um momento de paz.
A felicidade é algo importante na vida das pessoas, e acho que deve ser disso que elas mais sentem falta. Na hora de colocar alguma coisa em suas casas, preferem ter algo alegre, e não algo com que vão se sentir mal.

FOLHA - Você é uma pessoa feliz?
BRITTO
- Eu me sinto uma pessoa feliz, sim. Eu me sinto bem comigo mesmo, hoje em dia. Faço o que adoro, acordo de manhã e faço aquilo de que gosto. Claro que a vida tem altos e baixos, mas, quando estou fazendo a minha arte, é como se fosse um ato religioso.

FOLHA - Como foi o caminho das pinturas de cajus e outros temas ligados à cor local do Recife e à obra de Brennand até a linguagem pela qual você é tão conhecido hoje?
BRITTO
- No caso de Brennand, ele tem murais na cidade inteira de Recife. Isso para mim foi uma coisa fascinante, ver e admirar o trabalho de Brennand onde quer que fosse na cidade.
Uma das coisas que achei fascinantes quando eu cheguei aos EUA foi o fato de a arte ser mais democrática, o fato de a arte ser uma coisa que as pessoas vivem mais no dia-a-dia, ao invés de ser algo que as pessoas só vêem no museu.
Então, quando comecei também a ler bastante a respeito de [Andy] Warhol e [Keith] Haring e de outros artistas cujo trabalho pode ser visto em todo canto dos EUA, fiquei fascinado e imediatamente tive esta certeza: quero que a minha arte seja uma coisa que as pessoas possam ver. Quero alcançar o maior público possível.

FOLHA - Mas como é que os trabalhos de Andy Warhol ou Keith Haring, além do aspecto de conseguirem atingir um público mais amplo, influenciaram sua linguagem? Porque existe um diálogo, do ponto de vista plástico, entre sua produção e a de Haring, principalmente, não?
BRITTO
- Acho que o vocabulário dele era um vocabulário que as pessoas podiam entender. Assim também o meu vocabulário. O que estou fazendo, o que estou desenvolvendo nos últimos anos é pegar coisas do meu dia-a-dia, coisas do universo que me rodeia e colocando na minha arte...

FOLHA - Mas por que você define sua obra como neo-cubista-pop?
BRITTO
- Isso foi uma conversa que tive com uma pessoa do meio de arte, Eileen Guggenheim, que falou que minha arte tinha algo do cubismo, algo da pop art, algo novo. Mas, quando você fala em pop art, a referência que temos é de uma produção que aconteceu nos anos 1960, 1970, mas que infelizmente não evoluiu. Aconteceu, alguns artistas levaram para a frente, mas outros artistas não evoluíram, e de lá para cá houve outras tendências que aconteceram, mas que são fragmentadas, cada um fazendo uma coisa. A Eileen falou que havia essas influências e sugeriu que eu chamasse assim.

FOLHA - Pergunto isso porque chamar simplesmente de neo-pop já daria o sentido de que você pretende levar adiante o legado da pop.
BRITTO
- A referência ao cubismo vale para a composição de alguns trabalhos que fiz, está muito mais voltada para o que fiz antes do que para o que faço agora. Uma coisa é o que as pessoas falam, porque diante do que estou fazendo você pode ver uma coisa completamente diferente daquilo que estou imaginando.
Eu me lembro que, na última vez em que vi [o marchand] Marcantonio Vilaça [1962-2000], ele disse: "É engraçado, Romero, que no seu trabalho de agora eu vejo mais figuras surgindo". E aquilo foi para mim uma surpresa, porque eu nem tinha prestado atenção.

FOLHA - Na exposição há obras sobre tecido. Isso é uma novidade?
BRITTO
- Sim, isso é novo, usar apenas o desenho em trabalhos bem monocromáticos. Foi um experimento, gosto muito de tecido, de texturas, já fiz projetos em parceria com designers e estilistas, mas usando todas as cores. Então tive vontade de pegar tecidos diferentes e trabalhar só o desenho.

FOLHA - Esta é uma característica muito marcante na sua trajetória: a opção por trabalhar também em outros "circuitos" que não só o da arte, produzindo objetos utilitários, transpondo suas pinturas para estampas de roupa etc. Por que a opção por esse trânsito?
BRITTO
- Acho que como tudo está relacionado no mundo, em termos de comunicação, comportamento, arquitetura, acho que a arte pode também participar disso, ela pode realmente acrescentar muito ao dia-a-dia das pessoas, então se até os músicos, hoje em dia, estão usando instrumentos digitais, novas tecnologias, por que não a arte, por que não aplicar a arte de outras maneiras?
Eu gostaria muito de em breve fazer alguma coisa diferente, além de estar pintando para colocar na parede. Estou sempre pensando nisso: onde mais dá para a arte aparecer, por onde mais a arte vai poder circular?
Porque em geral a arte é uma coisa muito exclusiva, que se faz para a elite, e um artista, quando realiza seu trabalho, quer que as pessoas o vejam, quer dividir sua arte com as pessoas. Como é que eu poderia alcançar um milhão de pessoas com uma única exposição?

FOLHA - Qual a repercussão de seu trabalho junto ao público? BRITTO - É fantástica. É como ter um instrumento, uma imagem que as pessoas vêem, imediatamente codificam na cabeça e aquilo já pertence à pessoa, é algo que lhe faz bem.

FOLHA - E no meio de celebridades em que você circula?
BRITTO
- Acho fantástica a história do governador da Califórnia, Arnold Schwarzenegger, filho de militares que foi exilado, que se tornou um ator, o que é uma coisa difícil, e tornou-se governador de um dos maiores estados americanos... Para mim, alguém como ele colecionar o meu trabalho é uma enorme honra.

FOLHA - Por que optou por abrir um espaço próprio, em vez de trabalhar com alguma galeria no Brasil?
BRITTO
- As galerias no Brasil e na América Latina como um todo trabalham em consignação com os artistas, mas não vendem, o que deixa o artista muito preso. Então como o artista vai sobreviver? Então, quando tive a oportunidade de abrir um espaço próprio aqui, com base na experiência de ter feito o mesmo em Miami Beach, abri. Também queria que minha arte se tornasse parte do cenário cultural do Brasil.

FOLHA - Como você definiria o gosto americano por arte? É diferente do gosto brasileiro?
BRITTO
- O que acontece é que no Brasil, por causa da exuberância da natureza, do sol e das cores, o público acaba não querendo trazer isso para dentro de casa. Você vê o Carnaval, vê que o amarelo é tão amarelo que pode acabar achando que amarelo não é elegante.
Nos EUA a vida é muito diferente; lá os filhos crescem e vão embora, então fica aquele espaço que as pessoas querem preencher. Então quem tem dinheiro compra uma casa, um carro, vai viajar... Está chateado, então vai para um spa. E acaba resolvendo comprar arte, se rodear de coisas estimulantes. O poder aquisitivo nos EUA ajuda muito.

FOLHA - E onde você vende mais?
BRITTO
- Nos EUA, depois na Alemanha, na Suíça e França.


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