São Paulo, domingo, 08 de novembro de 2009

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A cidade luz

JORNALISTA QUE VIVEU NA ALEMANHA ORIENTAL RELATA AS DIFERENÇAS ENTRE OS DIÁRIOS DAS 2 PARTES DE BERLIM E DIZ QUE A IDEALIZAÇÃO OCORRIA EM AMBOS OS LADOS DO MURO

GRIT EGGERICHS
COLABORAÇÃO PARA A FOLHA, DE COLÔNIA (ALEMANHA)

Berlim Ocidental tinha cheiro de "frutas exóticas", lembra a jornalista Jutta Voigt, que nasceu em 1941 na então capital da Alemanha e vivenciou os dois lados da cidade antes de o muro começar a ser erguido, 20 anos depois.
Ganhadora, em 2000, do prêmio Theodor-Wolff, um dos mais respeitados da Alemanha em sua área, Voigt lembra que ficou feliz com a construção do muro. Para ela, então, os ocidentais se aproveitavam da fronteira aberta para se valer do câmbio mais forte e comprar tudo mais barato do lado oriental -"iam até ao cabeleireiro".
Voigt trabalhava como repórter e crítica de cinema no "Sonntag", jornal semanal editado pelo Kulturbund, associação cultural da Alemanha Oriental [RDA].
Depois da unificação, foi redatora do "Freitag", do "Wochenpost" e colunista do diário "Die Zeit". Acaba de lançar "Im Osten Geht die Sonne auf - Berichte aus Anderen Zeiten" (O Sol Nasce no Leste -Relatos de Outros Tempos, Be.Bra Verlag, 224 págs., °16,90, R$°44), com artigos e reportagens sobre a Alemanha dividida.
Na entrevista abaixo, ela também fala da diferença entre os jornalismos que se praticavam dos dois lados do muro.

 

FOLHA - Antes de 13 de agosto de 1961, a fronteira entre as Alemanhas era permeável. Como a sra. viveu essa experiência?
JUTTA VOIGT -
De minha casa, descendo uma rua, eu já estava em Berlim Ocidental. Achava muito chique ir ao cinema e aos clubes de jazz de lá. Os funcionários da área de cultura na RDA não gostavam de jazz, por isso não era tocado no leste.
O oeste cheirava diferente, a frutas exóticas -laranjas, por exemplo, que não tínhamos.
Nas excursões para lá, não podíamos comprar muito, porque cinco marcos do leste só valiam um marco do oeste.
O que comprava lá, quando era garota, eram caramelos em máquinas, por dois centavos. Mas as "seduções" do capitalismo não me punham em perigo, pois minha família acreditava no socialismo -e eu também.

FOLHA - Em 1961 a sra. tinha 20 anos e estudava filosofia. Sentiu-se infeliz quando o muro começou a ser construído?
VOIGT -
Pelo contrário! Como muitos intelectuais e artistas, vibrei com a construção do muro. Hoje quase ninguém admite que fez isso naquele tempo.
Mas é verdade! Pensava que o muro afastaria os berlinenses ocidentais que vinham aqui, para trocar um marco ocidental por cinco orientais. Compravam tudo mais barato e iam até ao cabeleireiro daqui.
A propaganda [do regime alemão oriental] nos falava de enroladores e agiotas que entravam aqui para tirar proveito da fronteira aberta. Eu e meus colegas achávamos que somente sem essas interferências seria possível montar um socialismo de verdade. E achávamos que, cinco anos após a construção, ele seria dispensável.

FOLHA - O que mudou nas cabeças dos alemães orientais quando ficaram isolados do oeste?
VOIGT -
Eles criaram um oeste na imaginação, um mundo de coisas maravilhosas que não tinham preço. Ainda que assistissem à TV alemã ocidental, não queriam perceber. Só tinham olhos para o paraíso de uma imaginação infantil.

FOLHA - O que aconteceu com o paraíso quando o muro caiu?
VOIGT -
No início era euforia pura. O que aconteceu em 9 de novembro de 1989 já foi descrito como "loucura!". A longo prazo, o paraíso estava perdido, mas os orientais, ingênuos, ficaram zangados por isso.
Mas até hoje os orientais estão corrigindo e redesenhando a imagem do oeste. Tiveram que aprender que as coisas maravilhosas tinham preços. E muitos não conseguiam pagar.

FOLHA - Hoje o paraíso se deslocou do oeste para o leste e da imaginação para o passado? A RDA, vista hoje, tem algo de paradisíaco?
VOIGT -
Quando foi a pique, a RDA ainda não era totalmente podre, de modo que hoje podemos enfeitá-la, na memória. Mas os ocidentais também têm nostalgia, e pensam que tudo era melhor antes da unificação.
Mas não é da RDA real que os orientais têm saudade. As pessoas sabem que esse tipo de socialismo era do gênero diletante. Mas, hoje, quem não tem trabalho, quem não sabe como ganhar a vida, tem saudade da segurança social da RDA.

FOLHA - A sra. era crítica de cinema na RDA...
VOIGT -
Sim, mas no fundo sou jornalista. Trabalhava no "Sonntag" [Domingo], um jornal não partidário, editado por uma associação de cultura e bastante liberal.
Porém não deveríamos descrever a realidade como ela era, mas, sim, como deveria ser. E isso, para uma repórter, é impossível. Então me refugiava na crítica de cinema.

FOLHA - Após a queda do muro, o "Sonntag" virou "Freitag" [Sexta-Feira], em que predominavam notícias do dia a dia e análises da sociedade. Essa combinação era típica do jornalismo da Alemanha Oriental?
VOIGT -
Sim, cultivávamos isso na RDA. Era necessário descrever as coisas sem os funcionários da censura perceberem que se tratava de uma crítica ao sistema. Por isso desenvolvemos uma forma suave de crítica, um jornalismo literário.

FOLHA - Na redação do "Freitag" colaboravam ocidentais e orientais. Quais eram as diferenças entre eles?
VOIGT -
Para fundar o "Freitag", o "Sonntag" fundiu-se com um jornal ocidental de esquerda. Mas os redatores de lá eram ideólogos-chefes! Tinham mais ideologia do que capacidade de redação. Tínhamos que ensiná-los a escrever. Era uma situação excepcional, pois em geral eram os ocidentais que ensinavam os orientais.

FOLHA - Quais eram as maiores diferenças entre jornalistas de um lado e de outro do muro?
VOIGT -
No leste, os editores eram funcionários do partido, sem formação ou talento jornalístico. Eu admirava os editores do oeste por nunca terem dúvidas sobre a própria capacidade.
Eram rápidos e eficientes -e digo isso num sentido positivo.

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