São Paulo, domingo, 08 de dezembro de 2002

Texto Anterior | Índice

+poema

O último vagão some, os trilhos e a música




de Joca Reiners Terron

ilustração por Edgard de Souza

Trem é uma coisa que não existe. Assim como condutor, destino ou máquina de escrever. Alguns escritores acreditam que escrever à máquina faz a literatura existir mas se condutor e destino desapareceram, o que dizer da literatura? Mesmo escritores são raros, quase tanto como locomotivas ou duas crianças sob a nevasca. Esse acordeom tocando agora é ilusão. Não faz mal então que dancemos, aquelas estrelas em breve serão ex-astros ou algo assim: lavar a louça suja do almoço, ouvir violinos e contar com que narcotraficantes não sumam com a sobremesa antes da última música. E datilografo com fúria como se escavasse a neve, as unhas roxas, os braços hirtos, até as crianças surgirem novamente de sob a avalanche, que também não existe, pois é uma palavra bela demais para nomear a catástrofe. E escrevo neve e escrevo avalanche e escavo a terra sob o gelo e espero as crianças surgirem, mas só há a lua encimando paisagem e neblina, neblina, que também não pode existir, pois há beleza excessiva em neblina, repito as vogais e consoantes pela última vez, neblina, e ela desvanece. Na planície é visível agora apenas a poeira do rastro dos cavalos dos bandoleiros a acompanhar o trem correndo nos trilhos e o túnel e a montanha e escrevo para congelar o tempo e rivalizar com a montanha, para que as crianças consigam escalar a janela da locomotiva em movimento e cheguem ao teto. E castigo com raiva as teclas da máquina de escrever que sucessivamente some e desaparece enquanto letras de chumbo ferem a superfície porosa do papel e as manchas de tinta nas mãos como gotas de sangue pois a tinta que uso é vermelha então as manchas em minha pele parecem sangue.
Levanto a palma das mãos até os olhos e a máquina de escrever desaparece sem ao menos se despedir, mas resgato em tempo a folha de papel presa entre suas bobinas e escrevo com o sangue das mãos. Penso então que nada mais pode permanecer e não há chances de edulcoração pois agora escrevo com sangue, minhas mãos e também há escritores que acreditam ressuscitar a literatura ao escrever à mão e então empunho a caneta como um instrumento cirúrgico e escavo minha carne e a folha branca de papel como se fosse neve revirada em busca das crianças perdidas sob a nevasca e as letras vermelhas vão surgindo enquanto os salteadores desistem e o trem desaparece túnel adentro. Minha escrita agora cresce a ponto de atingir a montanha e vejo as crianças de novo, seus rostos sujos de fuligem, correndo em cima dos vagões, e a literatura que volta a respirar numa nova folha em branco enquanto a neve é escavada e acima a noite azul pode ser vista. Há um fio de fumaça no horizonte branco sob a noite azul e as estrelas que ainda insistem e a paisagem aos poucos se apaga como se uma camada fina de neve caísse ou folha de papel que se rasga, interrompendo a visão da paisagem e a nevasca a despencar e há, afinal, duas crianças soterradas pela avalanche, uma linda imagem, tão bela quanto uma gota de sangue a diluir-se no gelo branco e os salteadores em fuga carregam ao longe a sobremesa e o trem desaparece dentro do túnel, dentro da noite, a neblina e a catástrofe incomparáveis, tão raras como a montanha e o último vagão some, os trilhos e a música. E resta apenas a louça suja do almoço. Nada mais.

Joca Reiners Terron é poeta e romancista, autor de "Não Há Nada Lá" e "Animal Anônimo" (ed. Ciência do Acidente), entre outros.
Edgard de Souza é artista plástico. Expôs na 24ª Bienal de São Paulo e na Jack Shainman Gallery



Texto Anterior: José Simão: Lula lança o Ministério do Orgasmo!
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.