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Se o golpe de 64 espalhou a droga pela universidade, 68 afetou as relações
amorosas; preocupado, na direção do departamento de filosofia da USP, alertei
meus colegas sobre o perigo de sermos acusados de corrupção de costumes,
o que agravaria a pecha de subversivos; Lebrun se calou
A via da imprudência
Bettina Musatti/Folha Imagem
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O filósofo francês Gérard Lebrun, que foi encontrado morto em seu apartamento em Paris no último dia 10 de dezembro |
por José Arthur Giannotti
Naquele encontro, que seria o último, no meio
da conversa, Lebrun deixou escapar: "Na minha vida cometi muitas imprudências". Referia-se a certos descuidos que teriam ajudado a
colar nele a imagem de debochado explorada pela mídia, que expunha, a seu modo, pormenores de sua vida
privada. Mas o que era denunciado como perversão e
deboche sempre me pareceu um modo perigoso de vida, sendo que sua azeda capacidade de zombar dos outros e sobretudo de si mesmo estava toda posta em função da garimpagem respeitosa daquilo que cada um
tem de mais singular e valioso.
Acredito, porém, que essa imprudência é mais geral e
deve ser vista como virtude que ele cultivava com carinho e sofrimento, antes de tudo como negação da prudência, da "phrónesis" aristotélica, dessa capacidade de
deliberar em relação a um fim que, além do mais,
apreende um particular, inserindo-o corretamente entre a falta e o excesso. Lebrun acreditava nietzscheanamente que essa particularidade só poderia ser apreendida, na sua singularidade inefável, pelo excesso, pela exacerbação da individualidade que se furta aos imperativos do público.
Disso me apercebi desde cedo, no meio de sua segunda estada no Brasil. Se o golpe de 64 espalhou a droga
pela universidade, 68 afetou as relações amorosas.
Preocupado, na direção do departamento de filosofia,
alertei meus colegas sobre o perigo de sermos acusados
de corrupção de costumes, o que agravaria a pecha de
subversivos. Lebrun se calou.
Até a última gota
Naquela época era comum assistir às aulas uns dos outros tão logo corresse o boato
de que um de nós iria desenvolver tema interessante e
novo, e assim fomos a uma esplêndida aula de Lebrun,
para ouvi-lo comentar um texto de Nietzsche sobre a
necessidade de esgotar a transgressão até a última gota.
Aprendi a lição. De seu ponto de vista, toda moralidade
pública, na medida em que esconde uma relação de poder, precisa ser compensada pela ousadia da infração,
mesmo que por isso, em certas circunstâncias, se pague
alto preço.
O que mais me impressionou, entretanto, foi a maneira pela qual conduziu o debate público. Não que ele o
recusasse; sua constante presença na imprensa brasileira o demonstra. Mas, em vez de argumentar no plano
em que a discussão era proposta, em vez de se confrontar comigo, simplesmente tratou de transformar a dificuldade num tema de reflexão filosófica, cabendo a cada um tirar a lição que lhe competisse. Associação, portanto, de dois planos incompatíveis da moral tradicional: de um lado, a infração; de outro, o respeito pela singularidade de cada um.
Se é preciso pagar alto preço por essa ousadia moral,
não conheci ninguém que o tenha quitado tão dolorosamente como Lebrun. Não conheço outro amigo de vida mais infeliz. Seu sofrimento maior, porém, foi ter
acreditado, nos últimos anos, que nada deixara entre
nós de sua aventura brasileira.
Por certo sabia que era um dos maiores historiadores
de filosofia de sua geração, que o pensamento brasileiro
não teria alcançado o nível e a sofisticação de hoje sem
suas lições de prudência interpretativa, de argúcia na
argumentação, de coragem para denunciar nossos preconceitos holísticos. Mas tudo isso para ele era pouco.
Visava antes de tudo aprender e ensinar a ser livre, vale
dizer, autônomo, de sorte que o ensinamento da liberdade consistia basicamente no aprendizado de ensinar.
Desse ponto de vista, basta notar o conformismo das
idéias correntes entre nós, o comportamento conciliador de seus antigos discípulos, para que se reconheça
que a exemplaridade a que ele pretendeu foi engolida
pela medianidade burguesa e provinciana.
No entanto, mais do que derrotado, Lebrun foi alguém que se derrotou a si mesmo. Para se firmar como
o contrário do "winner", destroçou sua vida pessoal.
Como mostrar essa tese sem devassar detalhes dessa vida? Mas isso já foi feito, de sorte que agora importa menos contar este ou aquele episódio, diante da tarefa
maior de reciclar o lixo jogado na rua pela maledicência
da imprensa brasileira.
Relações amorfas
Lebrun chegou ao Brasil casado
e com filho pequeno. Ao retornar para a França, por
causa de umas trapalhadas com a família da esposa, o
casamento termina deixando como saldo o afastamento do menino. "Na sua adolescência", me dizia ele, "serei mais útil como pai". Quando, porém, o reencontro
se deu, quando lhe foi oferecido até mesmo a possibilidade de reconstruir sua família, não havia mais entendimento possível.
De seu lado, o extravasamento sexual havia criado tal
rede de relações amorfas que tornava impossível voltar
atrás e retomar o curso de uma vida pautada pelo equilíbrio familiar.
Não que ele não fosse disciplinado, muito pelo contrário. Lebrun possuía uma capacidade de trabalho sobre-humana, fechava-se no escritório por dias, até que,
exausto, saía pelas ruas em busca de aventura.
Parece-me simplório explicar seu comportamento na
base da compulsão, pois ela mesma -que por certo havia- era querida. Transformava as pulsões que ameaçavam seu autodomínio numa arma posta a serviço da
exploração dos meandros de seu microcosmo. E, se para isso precisava da conivência do outro, que, nesse
contexto, não poderia desenhar uma alteridade completa, via nele um cobrador em relação ao qual estava
constantemente em dívida.
A mão na carteira
Em primeiro lugar, a dívida do
respeito, pois a simbiose necessária entre o aprender e o
ensinar, que se exercia até mesmo na sedução e no prazer, implicava que o outro só participaria do relacionamento se lhe fosse preservada a possibilidade da auto-exploração. Em seguida, dívida material, visto que a liberdade de explorar várias parcerias dependia de que o
relacionamento se fizesse contrato, em que cada um tirava seu proveito. Sendo mais velho e relativamente
mais rico, Lebrun acabava financiando seus casos. "Não
posso fazer amor", comentava, "sem pôr a mão na carteira".
Do lado do filho, entretanto, o desastre foi completo.
O jovem pequeno-burguês, já desajustado pelas vicissitudes familiares, mimado pela mãe e sem disciplina, ao
voltar ao Brasil imaginou, como os primeiros conquistadores, que não havia pecado além do Equador. Tomou as explicações do pai como permissão para a vida
desregrada e, de certo modo, passou a competir com ele
num plano em que toda a pedagogia filosófica de Lebrun não tinha sentido.
Agonia longa
Os anos se passaram, Lebrun volta à
França, embora venha constantemente ao Brasil, mas,
logo quando o moço se aquieta, estreita suas relações
com a noiva e começa a preparar-se para entrar na universidade, descobre-se que está com Aids. Depois da
agonia longa e sofrida, quando Lebrun, sua ex-mulher e
seu novo marido, aliás seu amigo mais próximo, formaram um bloco de amizade granítica, sua vida não foi
mais a mesma.
De um lado, a suspeita de que a violência de seu jogo
moral causava muitas baixas. O que era prazer no campo da vida pública convertia-se numa tragédia na esfera
da intimidade. Fazia parte de sua pedagogia seduzir e
chocar o público. Divertia-se defendendo o liberalismo
político mais radical, embora sempre desconfiasse das
virtudes do mercado. Era contra o patriotismo, o racismo e tudo o que cheirasse enaltecimento da comunidade. Se no plano da amizade comportava-se como devedor calado, diante do público era cobrador intransigente. Se o espaço público era alinhavado pelo Leviatã do
poder, importava-lhe, como diria Bakunin, a volúpia do
negativo. Imagino como caçoaria de nossas crenças de
hoje numa política que reconhecesse constrangimentos
orçamentários.
Tudo isso é incompreensível para aquele que se pauta
por uma moralidade arquitetada a partir de princípios
determinantes bem delineados. Se Lebrun participou
da vida pública foi porque dependia dela para poder ensinar e sobreviver, mas nunca reconheceu a possibilidade de uma moralidade pública que não fosse farsa do
poder. Também nunca teve íntimos, cuja existência
prezasse mais do que os relacionamentos que poderia
manter com eles. Lebrun foi antes de tudo o amigo, esse
personagem intermediário entre o homem público e o
íntimo, aquele que se relaciona com outros por contratos tácitos, mas disposto a rompê-los parcialmente se o
relacionamento assim o exigir. Mas tudo com muito
respeito, com muita tolerância no que tange às falhas
alheias. A morte do filho veio mostrar-lhe que seu ensinamento e sua prática morais requeriam uma fortaleza
que o outro nem sempre possui. Quando se prega a moral dos fortes, como proteger os fracos, principalmente
aqueles que amamos?
Alguns amigos
Os anos se passaram e veio o primeiro derrame. Fisicamente nunca mais se recuperou,
embora conservasse intacta sua ilustração filosófica.
Mas o escândalo no Brasil o derrubou mais violentamente do que qualquer doença. Ao longo de suas aventuras, Lebrun conservava alguns amigos, em geral muito simples e pobres, cuja conversa apreciava e que lhe
prestavam pequenos favores. Aliás, desde sua primeira
visita, Lebrun, incapaz de fazer um pacote ou fritar um
ovo, dependia de jovens administradores de sua vida
cotidiana.
Era como se todo seu período brasileiro não passasse de aventura de
um degredado incapaz de perceber pecado nos trópicos; passaram-no a
ver como "Dr. Jeckyll e Mr. Hyde", juntando prática perversa com maravilhosa
capacidade teórica
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Acredito que, se soubesse que um deles tivesse se tornado um marginal, teria continuado a vê-lo, embora
tratasse de se precaver. Que esse rapaz o acusasse de encomendar fotos de sexo com meninas, entenderia que
isso estava no horizonte de um pobre acuado, que
transfere para o amigo "rico" e famoso a responsabilidade de seu crime. Mas que a imprensa em geral, pontilhada de jornalistas que tinham sido seus alunos e seus
leitores, fizesse coro a essa acusação, isso para Lebrun
era a prova de que sua estada por aqui, esse cruzamento
muito peculiar entre aprendizado moral e docência, tinha sido em vão.
Jogo de palavras
Do ponto de vista do objeto, a
acusação era ridícula, pois todo mundo sabia que não se
interessava por ninfetas. Mais ainda, se para ele sexo
sempre estava ligado ao amor e ao respeito de si, seja lá
qual fosse a parceria, como poderia ter abusado de
crianças? Se a transgressão não esbarrasse nos limites
do respeito, não estaria em perigo qualquer forma de
sociabilidade?
A acusação se baseou na palavra de um pobre acuado
e num trecho de uma carta onde o jogo de palavras era
mais importante do que qualquer referência a uma situação de fato. Não passara o tempo todo ensinando
que o estilo é mais importante do que o fato bruto? Agora pretendiam que uma liberdade de expressão desse a
pista para um crime. Como confundir sua exploração
sexual com todo o respeito, às vezes até mesmo engraçadamente respeitosa, com puro deboche?
Era como se todo seu período brasileiro, os livros que
publicara somente para nós, não passasse de aventura
de um degredado incapaz de ver pecado nos trópicos.
Passaram-no a ver como "Dr. Jeckyll e Mr. Hyde", juntando prática perversa com maravilhosa capacidade
teórica. Mas o que seria dessa teoria, que não é ciência
que fala do mundo, se não refletisse sobre a própria prática do conhecer e se não sondasse os meandros de uma
individualidade que, a despeito de seus constrangimentos, busca o caminho de sua própria liberdade responsável?
Esquecer o Brasil
Na medida em que a imprensa
transformou seu caso numa notícia dotada de vida própria, por conseguinte independente do que havia acontecido, barrando além do mais qualquer interpretação
alternativa, Lebrun se via esmagado pelas engrenagens
perversas dos moralistas do espaço público brasileiro.
Todos muito amigos, todos tão covardes que só podiam
repetir a versão consumada. Tentou esquecer o Brasil,
evitou receber visitas de brasileiros, era-lhe um suplício
e uma vergonha falar com seu advogado, "maître Barandier", como ele o chamava, embora o admirasse como profissional e como pessoa.
Em maio do ano passado, fui vê-lo no hospital, vítima
de um segundo derrame, e só voltei a me encontrar com
ele no fim do mês, quando chegou cambaleante até o
apartamento onde me alojara. Anunciou sua mudança;
na sua nova residência, onde foi encontrado morto, sua
irmã não descobriu um traço do Brasil, assim como nenhum dos remédios que deveria tomar todos os dias.
Crença boba
Disse-lhe, nessa última vez, que eu e
outros amigos continuaríamos cuidando de seus interesses brasileiros, movidos sobretudo por patriotismo,
como expressão do reconhecimento de quanto lhe devíamos, a despeito de sua deriva.
Na ponta de seu sorriso, li o reproche que sempre me
fez: "Na encruzilhada você procura o caminho mais difícil". Em vez de solidarizar-me com o amigo, eu ainda
buscava algum sentido para um coletivo distante, no
fundo, estava eu mantendo a crença boba na possibilidade de uma moralidade pública.
A mesma crença me leva a escrever este artigo. Não
cumpre apenas ressaltar a enorme contribuição teórica
de Lebrun, é preciso ademais refletir sobre o sentido de
sua vida pública e de sua singular experiência moral, a
enorme grandeza do viés que procurou imprimir a seus
atos, a coragem de viver na aresta da vida, de buscar dar
significado para aquilo que começa afásico. Se, como
acredito, essa experiência não poderia dar certo, precisamente em virtude de uma avaliação defeituosa das
ambiguidades da moralidade pública, não é por isso
que pode ser reduzida a um efeito contingente da vida
de um grande escritor, que cometeu seus pecadilhos.
José Arthur Giannotti é filósofo, professor emérito da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP, presidente do Cebrap (Centro
Brasileiro de Análise e Planejamento) e autor de "Trabalho e Reflexão"
(Brasiliense) e "Apresentação do Mundo", entre outros.
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