São Paulo, Domingo, 09 de Janeiro de 2000


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Se o golpe de 64 espalhou a droga pela universidade, 68 afetou as relações amorosas; preocupado, na direção do departamento de filosofia da USP, alertei meus colegas sobre o perigo de sermos acusados de corrupção de costumes, o que agravaria a pecha de subversivos; Lebrun se calou
A via da imprudência

Bettina Musatti/Folha Imagem
O filósofo francês Gérard Lebrun, que foi encontrado morto em seu apartamento em Paris no último dia 10 de dezembro


por José Arthur Giannotti

Naquele encontro, que seria o último, no meio da conversa, Lebrun deixou escapar: "Na minha vida cometi muitas imprudências". Referia-se a certos descuidos que teriam ajudado a colar nele a imagem de debochado explorada pela mídia, que expunha, a seu modo, pormenores de sua vida privada. Mas o que era denunciado como perversão e deboche sempre me pareceu um modo perigoso de vida, sendo que sua azeda capacidade de zombar dos outros e sobretudo de si mesmo estava toda posta em função da garimpagem respeitosa daquilo que cada um tem de mais singular e valioso. Acredito, porém, que essa imprudência é mais geral e deve ser vista como virtude que ele cultivava com carinho e sofrimento, antes de tudo como negação da prudência, da "phrónesis" aristotélica, dessa capacidade de deliberar em relação a um fim que, além do mais, apreende um particular, inserindo-o corretamente entre a falta e o excesso. Lebrun acreditava nietzscheanamente que essa particularidade só poderia ser apreendida, na sua singularidade inefável, pelo excesso, pela exacerbação da individualidade que se furta aos imperativos do público. Disso me apercebi desde cedo, no meio de sua segunda estada no Brasil. Se o golpe de 64 espalhou a droga pela universidade, 68 afetou as relações amorosas. Preocupado, na direção do departamento de filosofia, alertei meus colegas sobre o perigo de sermos acusados de corrupção de costumes, o que agravaria a pecha de subversivos. Lebrun se calou.

Até a última gota Naquela época era comum assistir às aulas uns dos outros tão logo corresse o boato de que um de nós iria desenvolver tema interessante e novo, e assim fomos a uma esplêndida aula de Lebrun, para ouvi-lo comentar um texto de Nietzsche sobre a necessidade de esgotar a transgressão até a última gota. Aprendi a lição. De seu ponto de vista, toda moralidade pública, na medida em que esconde uma relação de poder, precisa ser compensada pela ousadia da infração, mesmo que por isso, em certas circunstâncias, se pague alto preço. O que mais me impressionou, entretanto, foi a maneira pela qual conduziu o debate público. Não que ele o recusasse; sua constante presença na imprensa brasileira o demonstra. Mas, em vez de argumentar no plano em que a discussão era proposta, em vez de se confrontar comigo, simplesmente tratou de transformar a dificuldade num tema de reflexão filosófica, cabendo a cada um tirar a lição que lhe competisse. Associação, portanto, de dois planos incompatíveis da moral tradicional: de um lado, a infração; de outro, o respeito pela singularidade de cada um. Se é preciso pagar alto preço por essa ousadia moral, não conheci ninguém que o tenha quitado tão dolorosamente como Lebrun. Não conheço outro amigo de vida mais infeliz. Seu sofrimento maior, porém, foi ter acreditado, nos últimos anos, que nada deixara entre nós de sua aventura brasileira. Por certo sabia que era um dos maiores historiadores de filosofia de sua geração, que o pensamento brasileiro não teria alcançado o nível e a sofisticação de hoje sem suas lições de prudência interpretativa, de argúcia na argumentação, de coragem para denunciar nossos preconceitos holísticos. Mas tudo isso para ele era pouco. Visava antes de tudo aprender e ensinar a ser livre, vale dizer, autônomo, de sorte que o ensinamento da liberdade consistia basicamente no aprendizado de ensinar. Desse ponto de vista, basta notar o conformismo das idéias correntes entre nós, o comportamento conciliador de seus antigos discípulos, para que se reconheça que a exemplaridade a que ele pretendeu foi engolida pela medianidade burguesa e provinciana. No entanto, mais do que derrotado, Lebrun foi alguém que se derrotou a si mesmo. Para se firmar como o contrário do "winner", destroçou sua vida pessoal. Como mostrar essa tese sem devassar detalhes dessa vida? Mas isso já foi feito, de sorte que agora importa menos contar este ou aquele episódio, diante da tarefa maior de reciclar o lixo jogado na rua pela maledicência da imprensa brasileira.

Relações amorfas Lebrun chegou ao Brasil casado e com filho pequeno. Ao retornar para a França, por causa de umas trapalhadas com a família da esposa, o casamento termina deixando como saldo o afastamento do menino. "Na sua adolescência", me dizia ele, "serei mais útil como pai". Quando, porém, o reencontro se deu, quando lhe foi oferecido até mesmo a possibilidade de reconstruir sua família, não havia mais entendimento possível.
De seu lado, o extravasamento sexual havia criado tal rede de relações amorfas que tornava impossível voltar atrás e retomar o curso de uma vida pautada pelo equilíbrio familiar.
Não que ele não fosse disciplinado, muito pelo contrário. Lebrun possuía uma capacidade de trabalho sobre-humana, fechava-se no escritório por dias, até que, exausto, saía pelas ruas em busca de aventura. Parece-me simplório explicar seu comportamento na base da compulsão, pois ela mesma -que por certo havia- era querida. Transformava as pulsões que ameaçavam seu autodomínio numa arma posta a serviço da exploração dos meandros de seu microcosmo. E, se para isso precisava da conivência do outro, que, nesse contexto, não poderia desenhar uma alteridade completa, via nele um cobrador em relação ao qual estava constantemente em dívida.

A mão na carteira Em primeiro lugar, a dívida do respeito, pois a simbiose necessária entre o aprender e o ensinar, que se exercia até mesmo na sedução e no prazer, implicava que o outro só participaria do relacionamento se lhe fosse preservada a possibilidade da auto-exploração. Em seguida, dívida material, visto que a liberdade de explorar várias parcerias dependia de que o relacionamento se fizesse contrato, em que cada um tirava seu proveito. Sendo mais velho e relativamente mais rico, Lebrun acabava financiando seus casos. "Não posso fazer amor", comentava, "sem pôr a mão na carteira". Do lado do filho, entretanto, o desastre foi completo. O jovem pequeno-burguês, já desajustado pelas vicissitudes familiares, mimado pela mãe e sem disciplina, ao voltar ao Brasil imaginou, como os primeiros conquistadores, que não havia pecado além do Equador. Tomou as explicações do pai como permissão para a vida desregrada e, de certo modo, passou a competir com ele num plano em que toda a pedagogia filosófica de Lebrun não tinha sentido.

Agonia longa Os anos se passaram, Lebrun volta à França, embora venha constantemente ao Brasil, mas, logo quando o moço se aquieta, estreita suas relações com a noiva e começa a preparar-se para entrar na universidade, descobre-se que está com Aids. Depois da agonia longa e sofrida, quando Lebrun, sua ex-mulher e seu novo marido, aliás seu amigo mais próximo, formaram um bloco de amizade granítica, sua vida não foi mais a mesma.
De um lado, a suspeita de que a violência de seu jogo moral causava muitas baixas. O que era prazer no campo da vida pública convertia-se numa tragédia na esfera da intimidade. Fazia parte de sua pedagogia seduzir e chocar o público. Divertia-se defendendo o liberalismo político mais radical, embora sempre desconfiasse das virtudes do mercado. Era contra o patriotismo, o racismo e tudo o que cheirasse enaltecimento da comunidade. Se no plano da amizade comportava-se como devedor calado, diante do público era cobrador intransigente. Se o espaço público era alinhavado pelo Leviatã do poder, importava-lhe, como diria Bakunin, a volúpia do negativo. Imagino como caçoaria de nossas crenças de hoje numa política que reconhecesse constrangimentos orçamentários. Tudo isso é incompreensível para aquele que se pauta por uma moralidade arquitetada a partir de princípios determinantes bem delineados. Se Lebrun participou da vida pública foi porque dependia dela para poder ensinar e sobreviver, mas nunca reconheceu a possibilidade de uma moralidade pública que não fosse farsa do poder. Também nunca teve íntimos, cuja existência prezasse mais do que os relacionamentos que poderia manter com eles. Lebrun foi antes de tudo o amigo, esse personagem intermediário entre o homem público e o íntimo, aquele que se relaciona com outros por contratos tácitos, mas disposto a rompê-los parcialmente se o relacionamento assim o exigir. Mas tudo com muito respeito, com muita tolerância no que tange às falhas alheias. A morte do filho veio mostrar-lhe que seu ensinamento e sua prática morais requeriam uma fortaleza que o outro nem sempre possui. Quando se prega a moral dos fortes, como proteger os fracos, principalmente aqueles que amamos?

Alguns amigos Os anos se passaram e veio o primeiro derrame. Fisicamente nunca mais se recuperou, embora conservasse intacta sua ilustração filosófica. Mas o escândalo no Brasil o derrubou mais violentamente do que qualquer doença. Ao longo de suas aventuras, Lebrun conservava alguns amigos, em geral muito simples e pobres, cuja conversa apreciava e que lhe prestavam pequenos favores. Aliás, desde sua primeira visita, Lebrun, incapaz de fazer um pacote ou fritar um ovo, dependia de jovens administradores de sua vida cotidiana.

Era como se todo seu período brasileiro não passasse de aventura de um degredado incapaz de perceber pecado nos trópicos; passaram-no a ver como "Dr. Jeckyll e Mr. Hyde", juntando prática perversa com maravilhosa capacidade teórica


Acredito que, se soubesse que um deles tivesse se tornado um marginal, teria continuado a vê-lo, embora tratasse de se precaver. Que esse rapaz o acusasse de encomendar fotos de sexo com meninas, entenderia que isso estava no horizonte de um pobre acuado, que transfere para o amigo "rico" e famoso a responsabilidade de seu crime. Mas que a imprensa em geral, pontilhada de jornalistas que tinham sido seus alunos e seus leitores, fizesse coro a essa acusação, isso para Lebrun era a prova de que sua estada por aqui, esse cruzamento muito peculiar entre aprendizado moral e docência, tinha sido em vão.

Jogo de palavras Do ponto de vista do objeto, a acusação era ridícula, pois todo mundo sabia que não se interessava por ninfetas. Mais ainda, se para ele sexo sempre estava ligado ao amor e ao respeito de si, seja lá qual fosse a parceria, como poderia ter abusado de crianças? Se a transgressão não esbarrasse nos limites do respeito, não estaria em perigo qualquer forma de sociabilidade? A acusação se baseou na palavra de um pobre acuado e num trecho de uma carta onde o jogo de palavras era mais importante do que qualquer referência a uma situação de fato. Não passara o tempo todo ensinando que o estilo é mais importante do que o fato bruto? Agora pretendiam que uma liberdade de expressão desse a pista para um crime. Como confundir sua exploração sexual com todo o respeito, às vezes até mesmo engraçadamente respeitosa, com puro deboche? Era como se todo seu período brasileiro, os livros que publicara somente para nós, não passasse de aventura de um degredado incapaz de ver pecado nos trópicos. Passaram-no a ver como "Dr. Jeckyll e Mr. Hyde", juntando prática perversa com maravilhosa capacidade teórica. Mas o que seria dessa teoria, que não é ciência que fala do mundo, se não refletisse sobre a própria prática do conhecer e se não sondasse os meandros de uma individualidade que, a despeito de seus constrangimentos, busca o caminho de sua própria liberdade responsável?

Esquecer o Brasil Na medida em que a imprensa transformou seu caso numa notícia dotada de vida própria, por conseguinte independente do que havia acontecido, barrando além do mais qualquer interpretação alternativa, Lebrun se via esmagado pelas engrenagens perversas dos moralistas do espaço público brasileiro. Todos muito amigos, todos tão covardes que só podiam repetir a versão consumada. Tentou esquecer o Brasil, evitou receber visitas de brasileiros, era-lhe um suplício e uma vergonha falar com seu advogado, "maître Barandier", como ele o chamava, embora o admirasse como profissional e como pessoa. Em maio do ano passado, fui vê-lo no hospital, vítima de um segundo derrame, e só voltei a me encontrar com ele no fim do mês, quando chegou cambaleante até o apartamento onde me alojara. Anunciou sua mudança; na sua nova residência, onde foi encontrado morto, sua irmã não descobriu um traço do Brasil, assim como nenhum dos remédios que deveria tomar todos os dias.

Crença boba Disse-lhe, nessa última vez, que eu e outros amigos continuaríamos cuidando de seus interesses brasileiros, movidos sobretudo por patriotismo, como expressão do reconhecimento de quanto lhe devíamos, a despeito de sua deriva.
Na ponta de seu sorriso, li o reproche que sempre me fez: "Na encruzilhada você procura o caminho mais difícil". Em vez de solidarizar-me com o amigo, eu ainda buscava algum sentido para um coletivo distante, no fundo, estava eu mantendo a crença boba na possibilidade de uma moralidade pública.
A mesma crença me leva a escrever este artigo. Não cumpre apenas ressaltar a enorme contribuição teórica de Lebrun, é preciso ademais refletir sobre o sentido de sua vida pública e de sua singular experiência moral, a enorme grandeza do viés que procurou imprimir a seus atos, a coragem de viver na aresta da vida, de buscar dar significado para aquilo que começa afásico. Se, como acredito, essa experiência não poderia dar certo, precisamente em virtude de uma avaliação defeituosa das ambiguidades da moralidade pública, não é por isso que pode ser reduzida a um efeito contingente da vida de um grande escritor, que cometeu seus pecadilhos.


José Arthur Giannotti é filósofo, professor emérito da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP, presidente do Cebrap (Centro Brasileiro de Análise e Planejamento) e autor de "Trabalho e Reflexão" (Brasiliense) e "Apresentação do Mundo", entre outros.

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