São Paulo, Domingo, 09 de Janeiro de 2000 |
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+ livros Em "A Teoria dos Sentimentos Morais", o filósofo inglês busca responder como se formam as nossas crenças e em que consiste a virtude Adam Smith e a felicidade do ser humano
Eduardo Giannetti
A ciência destrói o seu passado. Os
clássicos da literatura científica, como os tratados hipocráticos, o "Le Monde" de Descartes ou a "Philosophia Botanica" de Lineu, foram obras que marcaram época, mas que a passagem do tempo reduziu à condição de peças de antiquário e objeto de interesse restrito a especialistas em história da ciência. Nenhum cientista que se preze aprende o
seu ofício destrinchando os clássicos de
sua disciplina.
A origem de nossas crenças morais, segundo Adam Smith, reside na operação espontânea de um hábito mental socialmente adquirido e que ele denomina simpatia: a faculdade humana de se transportar na imaginação para o lugar e a situação dos outros -a começar por aqueles que estão mais próximas de nós afetivamente- e, desse modo, procurar ver e sentir as coisas como supomos que eles estão vendo e sentindo. Isso nos permite julgar a propriedade e o mérito de suas ações e, mais importante, isso nos permite olhar para nós mesmos de fora. Ao ocupar o ponto de vista externo e neutro dos demais ("espectador imparcial"), o indivíduo aprende a moderar a parcialidade que naturalmente nutre por si mesmo. "Nós nos supomos espectadores de nosso próprio comportamento e procuramos imaginar, sob essa luz, que efeito isso produziria em nós. Esse é o único espelho com o qual, em certa medida, conseguimos esquadrinhar, por meio dos olhos alheios, a propriedade de nossa conduta". A tensão básica da qual surge a experiência moral é o conflito entre os desejos, valores e ambições de cada um (ética pessoal) e as exigências da vida em sociedade -o ponto de vista neutro e imparcial da ética cívica. Embora cada indivíduo possa se achar o centro do universo para si mesmo (o que, de certa forma, ele é!), ele também se dá conta de que, para o resto da humanidade, ele não passa de uma parte insignificante dele. Ao buscar se ver como os outros nos vêem, o espectador imparcial atenua e modula os nossos excessos, ainda que muitas vezes falhe em sua missão moderadora. "Se pudéssemos nos ver sob a luz em que os outros nos vêem", sugere Smith, "ou como nos veriam se soubessem de tudo, uma completa reforma seria inevitável -nós não suportaríamos, de outro modo, a visão." As regras impessoais da moral e da lei, assim como as regras gramaticais que ordenam a interação linguística, não são decretos divinos, mas construções sociais gradual e penosamente moldadas na convivência humana. Ao conferirem maior objetividade aos juízos do espectador imparcial, elas reforçam o nosso grau de adesão às exigências da vida em sociedade. Um ponto crucial -e que revela a íntima ligação entre o Smith esotérico da "Teoria dos Sentimentos Morais" e o Smith exotérico da "Riqueza das Nações"- é que ele jamais subestimou a importância de um arcabouço ético-jurídico bem constituído para que o sistema de mercado pudesse funcionar a contento. Na ausência de "leis da justiça" amplamente acatadas, canalizando o egoísmo privado para a criação de valores publicamente reconhecidos, o mercado degenera numa selva predatória de aproveitadores, piratas de renda e trombadinhas. A esperteza das partes conduz, não à opulência, mas à miséria e ao vexame do todo. Ao contrário do que fariam Marx e Spencer no século 19, Smith jamais flertou com a idéia de um possível (ou desejável) desaparecimento do Estado. Enquanto responsável, entre outras coisas, pela "administração da justiça", caberia ao Estado "garantir a proteção de cada membro da comunidade contra a violência e opressão de cada outro membro". O que está em jogo aqui, contudo, é bem mais do que o mercado como regra de convivência definida pela divisão do trabalho e a generalização das trocas. Da manutenção da justiça dependeria, para Smith, a própria ordem social: "A justiça é a viga mestra que mantém de pé todo o edifício. Se ela for removida, o grande, o imenso tecido da sociedade humana irá num momento se esfacelar em átomos. As regras da justiça podem ser comparadas às regras da gramática; e as regras das outras virtudes, às regras que os críticos literários dispõem para a consecução daquilo que é sublime e elegante numa composição. As da justiça são precisas, exatas e indispensáveis. As da virtude são inexatas, vagas e indeterminadas, e nos sugerem mais uma idéia geral de perfeição a que devemos almejar do que direções certas e infalíveis para atingi-la". Sem estilo não há elegância, mas sem gramática não há texto. Sem amor, generosidade e benevolência não há grandeza: a convivência entre os homens se torna aquilo que o próprio Smith descreveria como "um sistema de trocas mercenárias de bons ofícios segundo uma avaliação comum". Mas, se a falta de virtude leva ao frio, a falta de justiça leva ao fogo hobbesiano. Embora cético quanto à importância da riqueza para a felicidade dos homens, Smith soube reconhecer a força do seu apelo na psicologia moral do animal humano. Os pobres não riem da ostentação dos ricos: miram o luxo de "Caras". A garota de Ipanema é a que vem e que passa, não a que fica. Sonhamos com o que nos falta. Quem se dispuser a percorrer pelo menos algumas páginas da "Teoria dos Sentimentos Morais" poderá verificar por si mesmo a pertinência do comentário de Alfred Marshall: "Adam Smith seria a última pessoa no mundo a pensar que a riqueza é o objetivo da vida humana, a última pessoa a supor que os ideais de uma vida elevada devessem ser subordinados ao crescimento da riqueza material por qualquer indivíduo ou nação que se auto-respeita". Eduardo Giannetti é economista, professor da Faculdade de Economia da Universidade de São Paulo e autor, entre outros, de "Auto-Engano" (Cia. das Letras). Texto Anterior: + livros - Nicolau Sevcenko: A sociedade do entretenimento Próximo Texto: Lançamentos Índice |
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