São Paulo, Domingo, 09 de Janeiro de 2000


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Em "A Teoria dos Sentimentos Morais", o filósofo inglês busca responder como se formam as nossas crenças e em que consiste a virtude
Adam Smith e a felicidade do ser humano

Eduardo Giannetti
especial para a Folha

A ciência destrói o seu passado. Os clássicos da literatura científica, como os tratados hipocráticos, o "Le Monde" de Descartes ou a "Philosophia Botanica" de Lineu, foram obras que marcaram época, mas que a passagem do tempo reduziu à condição de peças de antiquário e objeto de interesse restrito a especialistas em história da ciência. Nenhum cientista que se preze aprende o seu ofício destrinchando os clássicos de sua disciplina.
Com a filosofia é diferente. Os clássicos da literatura filosófica, como os diálogos platônicos, as "Meditações" de Descartes ou o "Leviatã" de Hobbes, são obras que parecem dotadas do dom da eterna juventude. Embora também se prestem à lupa antiquária do historiador de idéias, elas conseguem de algum modo driblar o tempo e falar diretamente aos espíritos vivos das novas gerações. A filosofia, como a arte, não enterra o seu passado.
A diferença, é certo, resulta em parte da ausência de um critério bem definido de progresso na história da filosofia. Mas não é só. A consciência da nossa ignorância cresce de mãos dadas com o avanço do saber científico. Como observa com certa malícia Adam Smith na "Teoria dos Sentimentos Morais", ao comentar a dificuldade de refutar conclusivamente teorias no campo da ética, a progressividade das ciências naturais também reflete a sua maior vulnerabilidade e propensão ao erro.
"Quando um viajante descreve um país distante", argumenta Smith, "ele pode fazer nossa credulidade aceitar as ficções mais infundadas e absurdas como se fossem os fatos mais seguros". Mas, quando se trata de compreender algo que cada um pode verificar por si mesmo, "somos incapazes de dar crédito a qualquer explicação que não conserve um mínimo de verdade... e mesmo os mais exagerados precisariam ter algum fundamento, do contrário até a inspeção descuidada que nos dispomos a fazer descobriria a fraude".
Da mesma forma, prossegue, "um sistema de filosofia natural pode parecer muito plausível e encontrar aceitação generalizada no mundo por muito tempo, e mesmo assim não ter fundamento na natureza nem guardar nenhuma espécie de semelhança com a verdade... O mesmo não se dá, porém, com os sistemas de filosofia moral, pois um autor que pretenda explicar a origem de nossos sentimentos morais não pode nos enganar de modo tão grosseiro, nem afastar-se tanto de toda a semelhança com a verdade".
O contraste delineado por Adam Smith se ajusta como uma luva à sua própria filosofia moral e ajuda a desvendar o segredo de sua permanência e atualidade. Publicada originalmente em 1759 e amplamente revisada pelo autor no ano de sua morte, em 1790, a "Teoria dos Sentimentos Morais" que agora chega ao público brasileiro é uma obra cuja perspicácia, clareza e elegância a passagem do tempo só faz revelar. Ao contrário dos clássicos da ciência, que o tempo devora e sepulta - e apesar de datada em aspectos secundários-, ela não perdeu a capacidade de nos falar diretamente do essencial.
De que trata a "Teoria dos Sentimentos Morais"? O argumento central do livro procura responder a duas questões básicas. A primeira é de ordem cognitiva e pertence ao campo do que chamaríamos hoje de psicologia moral: de que modo se formam as nossas crenças morais? O que nos leva a aprovar ou condenar determinadas condutas? Como julgamos o mérito ou demérito das ações?
A segunda questão é normativa e se aloja no centro da reflexão ética: em que consistem a virtude e a justiça? O que define a felicidade e a plenitude do ser humano -considerado não só como indivíduo, mas também como membro de uma sociedade complexa- e de sua espécie?

A garota de Ipanema é a que vem e que passa, não a que fica; sonhamos com o que nos falta


A origem de nossas crenças morais, segundo Adam Smith, reside na operação espontânea de um hábito mental socialmente adquirido e que ele denomina simpatia: a faculdade humana de se transportar na imaginação para o lugar e a situação dos outros -a começar por aqueles que estão mais próximas de nós afetivamente- e, desse modo, procurar ver e sentir as coisas como supomos que eles estão vendo e sentindo.
Isso nos permite julgar a propriedade e o mérito de suas ações e, mais importante, isso nos permite olhar para nós mesmos de fora. Ao ocupar o ponto de vista externo e neutro dos demais ("espectador imparcial"), o indivíduo aprende a moderar a parcialidade que naturalmente nutre por si mesmo. "Nós nos supomos espectadores de nosso próprio comportamento e procuramos imaginar, sob essa luz, que efeito isso produziria em nós. Esse é o único espelho com o qual, em certa medida, conseguimos esquadrinhar, por meio dos olhos alheios, a propriedade de nossa conduta".
A tensão básica da qual surge a experiência moral é o conflito entre os desejos, valores e ambições de cada um (ética pessoal) e as exigências da vida em sociedade -o ponto de vista neutro e imparcial da ética cívica. Embora cada indivíduo possa se achar o centro do universo para si mesmo (o que, de certa forma, ele é!), ele também se dá conta de que, para o resto da humanidade, ele não passa de uma parte insignificante dele.
Ao buscar se ver como os outros nos vêem, o espectador imparcial atenua e modula os nossos excessos, ainda que muitas vezes falhe em sua missão moderadora. "Se pudéssemos nos ver sob a luz em que os outros nos vêem", sugere Smith, "ou como nos veriam se soubessem de tudo, uma completa reforma seria inevitável -nós não suportaríamos, de outro modo, a visão."
As regras impessoais da moral e da lei, assim como as regras gramaticais que ordenam a interação linguística, não são decretos divinos, mas construções sociais gradual e penosamente moldadas na convivência humana. Ao conferirem maior objetividade aos juízos do espectador imparcial, elas reforçam o nosso grau de adesão às exigências da vida em sociedade.
Um ponto crucial -e que revela a íntima ligação entre o Smith esotérico da "Teoria dos Sentimentos Morais" e o Smith exotérico da "Riqueza das Nações"- é que ele jamais subestimou a importância de um arcabouço ético-jurídico bem constituído para que o sistema de mercado pudesse funcionar a contento. Na ausência de "leis da justiça" amplamente acatadas, canalizando o egoísmo privado para a criação de valores publicamente reconhecidos, o mercado degenera numa selva predatória de aproveitadores, piratas de renda e trombadinhas. A esperteza das partes conduz, não à opulência, mas à miséria e ao vexame do todo.
Ao contrário do que fariam Marx e Spencer no século 19, Smith jamais flertou com a idéia de um possível (ou desejável) desaparecimento do Estado. Enquanto responsável, entre outras coisas, pela "administração da justiça", caberia ao Estado "garantir a proteção de cada membro da comunidade contra a violência e opressão de cada outro membro". O que está em jogo aqui, contudo, é bem mais do que o mercado como regra de convivência definida pela divisão do trabalho e a generalização das trocas. Da manutenção da justiça dependeria, para Smith, a própria ordem social:
"A justiça é a viga mestra que mantém de pé todo o edifício. Se ela for removida, o grande, o imenso tecido da sociedade humana irá num momento se esfacelar em átomos. As regras da justiça podem ser comparadas às regras da gramática; e as regras das outras virtudes, às regras que os críticos literários dispõem para a consecução daquilo que é sublime e elegante numa composição. As da justiça são precisas, exatas e indispensáveis. As da virtude são inexatas, vagas e indeterminadas, e nos sugerem mais uma idéia geral de perfeição a que devemos almejar do que direções certas e infalíveis para atingi-la".
Sem estilo não há elegância, mas sem gramática não há texto. Sem amor, generosidade e benevolência não há grandeza: a convivência entre os homens se torna aquilo que o próprio Smith descreveria como "um sistema de trocas mercenárias de bons ofícios segundo uma avaliação comum". Mas, se a falta de virtude leva ao frio, a falta de justiça leva ao fogo hobbesiano. Embora cético quanto à importância da riqueza para a felicidade dos homens, Smith soube reconhecer a força do seu apelo na psicologia moral do animal humano. Os pobres não riem da ostentação dos ricos: miram o luxo de "Caras". A garota de Ipanema é a que vem e que passa, não a que fica. Sonhamos com o que nos falta.
Quem se dispuser a percorrer pelo menos algumas páginas da "Teoria dos Sentimentos Morais" poderá verificar por si mesmo a pertinência do comentário de Alfred Marshall: "Adam Smith seria a última pessoa no mundo a pensar que a riqueza é o objetivo da vida humana, a última pessoa a supor que os ideais de uma vida elevada devessem ser subordinados ao crescimento da riqueza material por qualquer indivíduo ou nação que se auto-respeita".


Eduardo Giannetti é economista, professor da Faculdade de Economia da Universidade de São Paulo e autor, entre outros, de "Auto-Engano" (Cia. das Letras).


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